Crescer não é escolher uma profissão, mas lembrar quem você já é
Aos 31 anos, respondi a pergunta: 'O que você quer ser quando crescer?'

Eu tinha seis anos quando perguntaram o que eu queria ser quando crescesse. Respondi, com toda confiança que cabia nos meus 120 centímetros de altura, que seria médica de manhã, cabeleireira à tarde e aeromoça à noite. Esse futuro promissor durou até eu ganhar um microscópio de plástico maneiríssimo, com dez lâminas inclusas, e decidir que cientista era muito mais legal. Até o dia em que me ensinaram um truque para fazer desaparecer a carta de um baralho, e como alguém pode não querer ser mágico depois desse episódio sobrenatural?
A resposta para essa pergunta nunca foi fixa. Conforme fui crescendo, entraram na lista atriz da Broadway, sacoleira do Brás e roteirista da Turma da Mônica – essa última, quando redação se tornou minha disciplina favorita na escola.
Quando a realidade atropela o encanto
Durou até o primeiro dia de aula do ensino médio, quando a professora mudou o tom da conversa: “Se você estava acostumado a ir bem em redação, se prepare. A partir de agora, suas notas vão cair”. Fiquei arrasada. Ela não poderia estar falando sério, né?
Só que estava, sim. A rigidez da dissertação pré-vestibular passou por cima das minhas notas como um rolo compressor. Escrever ficção não me faria passar na faculdade. Agora era a hora de encarar a realidade. Hora dos simulados, dos textos dissertativos-argumentativos, de tirar o atraso em física, química e matemática. Hora de ser alguém na vida. Não dá mais para sonhar, Marina. O que você quer ser quando crescer, hein?
Parecia certo escolher uma profissão estável, de bom salário e que desse orgulho à minha família. Uma carreira que amasse de corpo e alma, acima de tudo. Mas o que eu amava, afinal? Eu não queria errar. Eu não podia errar! A decisão que definiria o resto da minha vida estava sendo carregada nos ombros de uma garota de 17 anos.
Alta performance, rotina exaustiva e a desconexão com si mesma
O início da minha vida profissional foi traçado no piloto automático. Me disseram que ingressar em tal faculdade garantiria um futuro promissor, cheio de portas abertas. Mas não pode parar de estudar, então é bom emendar uma pós-graduação. Se quiser se destacar de verdade, faça um mestrado, não tem erro! Só não esqueça de programar o despertador para às 5h, hein? O termo do momento é a alta performance, e quem não empreende tá dormindo no ponto.
Segui o caminho obedientemente. Até que, um dia, percebi que estava perdendo o rumo. Já teve a sensação de estar no lugar errado? De viver uma vida que não é sua?
Pois é, aconteceu. A criança tão cheia de sonhos e possibilidades virou um zumbi inconsciente. Eu passava a maior parte do tempo preocupada com o que os outros pensavam de mim. Queria provar o meu valor para o mundo desesperadamente, e conquistar alguma coisa que eu nem sequer sabia, de fato, o que era.
A vida obriga a redescoberta
Era confortável viver assim. Parece contraditório, eu sei, mas vamos ser sinceros: precisa de muita coragem para erguer as mangas, calçar as botas e se aventurar dentro de si até os pântanos mais profundos, enlameados e repletos de cobras (e de outras criaturas não catalogadas).
Lá, no meio do lodo, precisaria lidar com a profissão que escolhi e não gostei. Mais apavorante ainda, seria admitir que eu nem sabia do que gostava de verdade.
Não tive muita opção. A vida me atirou de cabeça no meio desse brejo através de uma síndrome do pânico que me deixou com muito medo de morrer. Conforme as sessões de psicoterapia avançavam, aprendi a baixar o volume estridente do ego para ouvir o sussurro do coração. Esse era o mapa que me orientava dentro da lama e mostrava onde estavam escondidos meus talentos, paixões e habilidades.
Encontrando a resposta além da pergunta
Percebi que eu era criativa, que gostava de desenhos animados, fotografia, artes, de ler romances, tocar piano e cantar no chuveiro. Lembrei que, anos atrás, existia uma menina que passava horas inventando histórias. Uma criança que gostava muito de escrever.
Comecei a criar crônicas e contos, a frequentar bienais e feiras do livro. Durante um curso de escrita criativa nasceu o “Clay”, um personagem que parte em uma jornada na tentativa de descobrir que forma geométrica quer ser quando crescer.
Hoje, quase dois anos depois da sua criação, publico um livro infantil pensando que aquela Marina, pequena em altura, mas grande em personalidade, ficaria muito feliz.
A pergunta que nunca precisou existir
Queria que ela soubesse que nós vamos experimentar, se arriscar, errar e se reinventar quantas vezes forem necessárias. Gostaria de contar para ela que temos talentos e paixões legais demais para levarem o nome de uma profissão.
Acima de tudo, adoraria que ela entendesse que a famigerada pergunta “o que você quer ser quando crescer” não faz o menor sentido, porque ela já é, e isso basta.
Te convido a deixar a porta que leva para dentro sempre aberta e, as botas, sujas de lama. Sempre prontas para um reencontro com a pessoa mais importante da sua vida: você.
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Marina Cyrino Leonel, paulistana de 31 anos, é formada em medicina veterinária pela Unesp de Botucatu, com especialização e mestrado em reprodução animal. Após anos atuando na área, decidiu resgatar seu amor pela escrita. “Clay” é sua estreia no mundo literário.
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