O que é o amor? Um conto sobre sentidos
Na escuridão da plateia em um teatro, o escritor Didier Ferreira nos mostra uma história de duas pessoas que acompanham um espetáculo lado a lado.
Na escuridão da plateia em um teatro, o escritor Didier Ferreira nos mostra uma história de duas pessoas que acompanham um espetáculo lado a lado. Neste conto, percebemos o quão difícil é demonstrar sentimentos e, quando finalmente são revelados para o mundo, também não é fácil lidar com a resposta que vem em seguida.
Apagam-se as luzes. Começa o espetáculo. No palco, entram os bailarinos numa correria calculada. Colocam-se em posição. Movimentam-se. E a música soa numa entoação monótona, lenta, muita lenta, um cantabile semplice.
Sinto cada corda raspada do violoncelo. Os dedos do artista e os músculos no palco. Sinto a simbiose do som e dos corpos, com tanta precisão quanto o meu ser mais próximo do dela. Lenta, muito lentamente, numa gentileza sedutora, volto-me para ela e sinto uma confiança absurda, como se estivéssemos na rota um do outro desde sempre, atraídos por algum íman superior.
Sem saber como, tanto que o meu instinto se sobrepõe à razão, dou por mim a passar da palavra íman para a palavra ámen sem me ter apercebido imediatamente da voz. Pareceu-me tê-la ouvido dalgum lugar dentro da sala mas não lhe dei importância. Agora ela diz-me persistentemente
— amem, amem, amem, amem-se,
tão nítida que não tenho como a ignorar. Involuntariamente, pouso o pulso direito sobre a perna dela, disponho a palma da mão voltada para cima. No lusco-fusco, assisto pelo canto do olho ao espetáculo do corpo sentado ao meu lado. Os movimentos da cabeça pausados. Queixo ao peito. Olhos esbugalhados, primeiro, semicerrados, como os vejo. Conto um, dois segundos em cada movimento. Ainda tenho a mão vazia sobre a perna dela. Virei a palma para baixo, não sei porquê. Ela olha-me à espera de um sinal, uma explicação. Pudera!
Busca-me o olhar na penumbra da sala. A música soa alto. Os bailarinos e as bailarinas brilham que nem estrelas cintilantes marcando um céu escuro. A solista está à boca de cena, dançando mais alto. E esta, ao meu lado, morde as palavras esquisitas, assim me parece, e deixa-se levar pela mágica sensação do momento: desliza dois dedos sobre o dorso da minha mão ainda espalmada na sua perna direita, pousa a mãozinha, quentinha, na sua totalidade sobre a minha e enlaça-me os dedos. Ficamos assim, enquanto a voz fala de amor ao meu ouvido.
Falemos, então, de amor
Regressamos aos nossos lugares. No intervalo, acenderam-se as luzes. Tudo ficou claro, o palco vazio de artistas, as cabeças dos espectadores mais altas, os seus corpos surgindo, cobrindo-se de agasalhos. A mim faltava-me a força nas pernas para me erguer e discernimento para agir em conformidade com o que aconteceu. Achei-a bonita. Não pensei em mais do que isso.
“Preciso fazer uma chamada”, disse ela, e de seguida saiu da sala. Não sei quanto tempo passou até eu ter caído em mim, decidir seguir-lhe o caminho, tentar encontrá-la, falar-lhe de nós. Mas, no átrio desencontrámo-nos. Fui ao bar comprar qualquer coisa e, estando na fila, vi-a do outro lado do vidro, do lado de fora do teatro, ao telefone. Olhava para mim. Depois afastou-se.
Quando entrei na sala, após a segunda chamada, não a encontrei sentada no seu lugar. Alguns minutos depois, apagaram-se as luzes, e logo a voz recomeçou.
— Sabes o que é o amor?
Bem sei, no princípio, o amor era deus, é isso que queres ouvir, que o amor no seu estado mais puro é sinónimo de fé, de confiança no absurdo, no desconhecido,
— deus é amor,
tal como diz a bíblia, ele leva-nos pela mão no caminho da paz, ensina-nos a perdoar, nele posso confiar.
— Confiar, esse é o sentido do amor…
Dizes-me tu que o amor tem fundamento na fé, não é? E que a fé é a confiança absoluta no absurdo. Não sei se confio nele, mas nela eu confio
— por quê, se também não a conheces?
com todo o meu ser. Não a conheço, é verdade. Mas, nunca conhecemos verdadeiramente alguém. Porque, se assim fosse, confiar deixaria de ser necessário. Passaríamos a dispor do outro, como reflexo de nós mesmos no espelho.
— Vê como ela volta…
É ela, chegando silenciosamente, o corpo curvado, como que num esforço para se ausentar do raio de visão da plateia. Senta-se ao meu lado, novamente. Trocamos olhares. Estendo-lhe a mão. Ela segura-a imediatamente.
Nesta segunda parte, a peça em palco é outra. Há um novo cenário. Outro ambiente lá em baixo. Nenhuma voz me interpelando desde que ela voltou. Então, confiando absurdamente no que acontece neste precioso momento, aproximo-me do ouvido dela, sussurro
— amo-te
e estranho a resposta que ela me dá, instantaneamente. Ela diz-me igualmente baixinho,
— amém!
Alguns sinônimos para ampliar a sua compreensão do português de Portugal:
íman: grafia local para ímã.
ámen: uma das formas de escrever “amém”.
sinónimo: grafia local para sinônimo.
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DIDIER FERREIRA (@didier.ferreira) é escritor, professor de Língua e Literatura Portuguesa, doutorando em Estudos de Literatura na Universidade Nova de Lisboa (Portugal), fundador do movimento Jovens Poetas Vadios e autor de Nada Faz Sentido (Associação Poetas Almadenses) e O Diário Poético de um Empregado de Balcão (Esfera do Caos).
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