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Não lemos mulheres
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Neste artigo:

Desde pequeno gosto de ouvir falar de literatura. Não sei porquê. Simplesmente adoro. Talvez porque, como escreveu Barthes, “ler é encontrar sentidos”. Sentidos que nem sempre estão no mundo real. Menos ainda quando se trata de justificar a persistência dos preconceitos em sociedades ditas desenvolvidas

Ainda há pouco soube de um evento que aconteceria na zona mais nobre da capital portuguesa. Um novo “café inaugura sessões mensais de poesia. Motivados pela partilha da experiência de leitura de cada um, vamos conversar sobre temas prementes da sociedade, aproximando ilustres autores aos nossos leitores num espaço acolhedor”. O tema de hoje é as mulheres na literatura. “Tragam livros escritos por mulheres”, dizia o anúncio.

Eu, que acreditava não existir discriminação nas minhas prateleiras, acerquei-me delas, olhei, mirei espantado, esbugalhei os olhos, e nada. Persisti na busca. Desci ao depósito e lá encontrei um exemplar de Virgínia Woolf. E de Maria Teresa Horta. E de Jane Austen. E de Paulina Chiziane. E de Isabel Figueiredo. E de Djaimilia Pereira de Almeida. Descritos assim até parecem formar um belo corpus. Mas, seis nomes entre mais de uma centena de livros da minha modesta biblioteca pessoal equivale a nada. Um nada que assusta.

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Para que serve a literatura?

Chego atrasado. Faço uma entrada silenciosa, como compete a quem chega depois da hora. Sorrio para os demais, enquanto busco com os olhos onde me sentar. Ali está, uma mesa ao fundo, no canto. Agrada-me a luz enfuscada que lhe chega — condiz com o meu recato, com o meu gosto por passar despercebido em lugares públicos. Caminho sorrateiramente para lá, murmurando

— peço desculpas

sob a voz altiva do escritor.

Estranho terem convidado um homem para falar da condição da mulher na literatura. Um homem branco, bem-sucedido, comum. Penso “que experiência ele terá sobre a anulação, sobre a discriminação que afeta as minorias, em geral, as mulheres, em particular, nos dias de hoje?” Sentado, ouço-o com atenção explicar que

— a literatura é um universo de homens, temos de o reconhecer, porque também nela se reflete o machismo que ainda não fomos capazes de erradicar das nossas sociedades, alinhadas ainda com o pensamento do homem-alfa, que vem da infância, nos lares mais e menos conservadores, mas também das escolas.

Literatura divinal

Sem querer, olho para o pomo de Adão entalado sensivelmente no meio do pescoço do escritor, enquanto fala. Lembro-me do nome de Eva. E de como a sua imagem ficou escrita depreciativamente face ao do seu homem. Se ela existe é porque ele a pediu. Ele foi expulso porque ela o traiu. A ele deus castigou com uma lembrança indolor no pescoço. A ela o senhor puniu com sangue e dor recorrentes. A narrativa bíblica assenta em grande medida na construção do homem como protetor e da mulher como tentação, como problema. Mas,

— e se a bíblia tivesse sido escrita em sua maior parte por mulheres, a narrativa seria a mesma? Quero dizer, se a narrativa fosse, porventura, a inversa, predominaria no mundo uma hegemonia da mulher em detrimento do homem?

Todos os olhos voltam para mim. Não me preparei para esta atenção. Por isso oculto-me quanto posso na sombra do canto da sala, recuando a cadeira, cruzando as pernas, os braços. Esboço um sorriso acabrunhado. Há silêncio na sala. Rostos pensativos. Outros sorridentes, ansiosos por ouvir qualquer coisa mais da minha boca. Sinto-me pressionado para continuar, para desenvolver a ideia. Por isso acrescento

— teríamos hoje mais escritoras do que escritores, se os livros sagrados contassem que uma deusa fez primeiro a mulher e da sua costela o homem?

Revelações

O ilustre convidado sorri como quem hesita entre o gozo perante uma questão idiota e a surpresa ante um tema bem colocado. Procuro retirar imediatamente a minha questão, mas alguém se antecipa e responde. Começa por dizer que é uma excelente perspetiva a que apresentei. Mas, que infelizmente não se pode pensar no que não aconteceu. Que a história ficou escrita assim, nada há a fazer. E, que não é por deus ser um nome masculino e Adão o primeiro, à frente de Eva, que o mundo ficou,

— é!,

mais ou menos machista. Por fim, conclui a mulher, não é justo imputar responsabilidades à literatura ou a deus, uma vez que os livros sempre estiveram acima deste tipo de problemas sociais e a Bíblia contribuiu enormemente para a literacia do mundo.

Descruzo os braços e as pernas. Chego a cadeira à frente. Indignado. Estou pronto para argumentar. Lançar lenha e muitos nomes de livros machistas à fogueira que já flameja na sala. Quando o escritor toma a palavra e diz

— desafio-vos, a todas e a todos, a procurarem nos manuais da disciplina de português do ensino fundamental dos vossos filhos textos de autores do sexo feminino. Descobrirão a triste realidade sobre o ensino da literatura em contexto de igualdade de gênero. E posso adiantar-vos desde já o que encontrarão. Nenhuma autora no décimo ano. No décimo primeiro, também nenhuma. No décimo segundo, um conto de Maria Judite de Carvalho, quatro poemas de Luiza Neto Jorge e outros quatro de Ana Luísa Amaral. Mas, nenhum dos textos destas autoras é sequer de leitura obrigatória, pelo que podem nem constar dos manuais. Eis como a escola, o Estado, dão às gerações mais novas uma consciência de literatura portuguesa totalmente enviesada. Feita só de homens.


DIDIER FERREIRA é escritor, professor de Língua e Literatura Portuguesa, doutorando em Estudos de Literatura na Universidade Nova de Lisboa (Portugal), fundador do movimento Jovens Poetas Vadios e autor de Nada Faz Sentido (Associação Poetas Almadenses) e O Diário Poético de um Empregado de Balcão (Esfera do Caos). Neste texto, o autor reflete sobre a consciência de gênero na sociedade portuguesa implícita na literatura e nas nossas bibliotecas aqui de casa.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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