O fascínio de tomar o rumo nas próprias mãos
Algumas transformações pessoais pedem não só outros ares, como também certa dose de solidão para que aconteçam.
Algumas transformações pessoais pedem não só outros ares, como também certa dose de solidão para que aconteçam. Decidi viajar sozinha.
Eu aguardava a decolagem já com o cinto afivelado. Que demora! Esperei anos para embarcar numa viagem sozinha e agora não saía do chão. Meu assento ficava na primeira fila e eu era única passageira. Notei minha mãe acenando na pista. Vinha me dar um último adeus. Pediu licença ao piloto, entrou no avião e dirigiu-se a mim carregando uma bebê. Disse que eu precisava observar muita coisa nessa viagem – por isso, a aeronave era transparente (?!). E que a bebê eu levaria junto porque cuidar dela era parte da minha missão. Nos despedimos.
Só lá no alto é que notei: a bebê, acomodada ao meu lado, era eu mesma.
Acordei com meus pais me chamando para o último café da manhã naquela casa. Nos próximos 5 anos eu não voltaria pra lá. Ou melhor, eu nunca voltaria. Pelo menos, não como a pessoa que havia partido. Meu voo de verdade mesmo decolou à tarde. Na poltrona à esquerda, um francês ouvia repetidamente uma canção no volume máximo. E a cada vez que o refrão crescia vazando pelos fones de ouvido, ele me olhava sorrindo e convidando a cantar junto “é a minha vida, é agora ou nunca, não vou viver pra sempre”.
Sozinha confrontando medos
Dizem que sonhos são uma via de acesso a conteúdos reprimidos em nosso inconsciente. Não importa. Antes daquela viagem, eu só tinha a consciência de ser alguém com muitos medos. Medo de estar sozinha, de não ser amada, de não me encaixar…Também tinha medo do escuro, o que me levava ao ridículo de chamar pela minha irmã quando abria os olhos no breu da madrugada.
Um dia, achei que seria boa ideia confrontar os medos até vencê-los. E viajar sozinha daria cabo de todos os meus temores juntos. Então, parti para uma longa temporada sabática pelo mundo, sem companhia. E não foi uma nem duas vezes que, dormindo em hotéis estranhos e quartos coletivos de albergue, gritei sem querer o nome da minha irmã. Com o tempo, venci o escuro e parei de passar essa vergonha.
Do medo da solidão eu fugia muito bem, fazendo amigos viajantes aqui e ali e me encaixando em seus roteiros. Até ser largada sozinha em Valência, na Espanha. Irene e Gernot, intercambistas austríacos da região do Tirol em busca de “fiesta”, me convidaram para um final de semana prolongado e, chegando lá, sumiram.
Sumiram.
Abrir um mapa para buscar outro destino – de preferência popular entre mochileiros – onde eu pudesse me pendurar em outro grupo de viajantes? Ou dar uma chance à pulsante e mediterrânea Valência, a terra da paella, cidade de dois mil anos e de estruturas futuristas? Com raiva de Gernot e Irene, vontade de voltar pra casa e frio na barriga, experimentei o gosto azedo da primeira decisão tomada exclusivamente por mim.
Gradativamente, meus passos inseguros em Valência ganharam a firmeza com a qual empreendi minha marcha solitária pelo mundo nos próximos anos.
Um passo para frente, um passo para dentro
Um ano após o sumiço dos austríacos, voltei à Espanha, desta vez para um encontro especial. Escolhi uma pensão barata no País Basco como pausa estratégica: dia de lavar roupas e descansar. E foi no ato aparentemente banal de me dirigir ao vestiário compartilhado, carregando meus pertences – agora reduzidos ao essencial – que notei refletidos no espelho meu poder interno e independência. Finalmente.
Eu vinha da Turquia e seguia para um vilarejo na rota do Caminho de Santiago para interpelar uma certa peregrina: minha mãe. Comprara uma bata cor laranja para usar na ocasião. É que descobri, convivendo tão somente comigo, que o laranja valoriza minha personalidade. Queria que ela me encontrasse em toda minha plenitude.
Passamos poucos dias juntas. Logo nos despedimos e continuei meu rumo por conta própria ainda por muitos anos. Com o tempo, comecei a conversar com minhas coisas e a falar sozinha, o que considerei um exercício saudável de autodesenvolvimento.
O fascínio de ir sozinho, acredito, mora na ideia de que uma viagem solo é um percurso terapêutico. É como a toada de um peregrino: um passo para frente, um passo para dentro. A maneira como enfrentamos as provas que uma viagem solitária nos apresenta define nosso poder de reagir aos contratempos diários da vida em diante.
A maior transformação de viajar sozinha foi a possibilidade de descobrir quem eu sou verdadeiramente. Foi preciso ir longe – e só – para entender o que está dentro.
Hoje já não tenho mais tanta vontade de viajar sem companhia. Quero compartilhar a trajetória com os que amo, dividindo ideias, gargalhadas e até alguns medos que aparecem no caminho. Mas depender totalmente do outro para progredir é algo a ser considerado com cautela. O equilíbrio continua sendo minha solução favorita.
Dia desses reencontrei Irene e Gernot nas redes sociais. Parecem sãos e salvos, de volta ao Tirol. Perguntei onde haviam se metido, afinal! Pelo menos até a publicação desta coluna, não obtive resposta. Mas isso já não importa.
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