Ficção terapêutica
É intrigante como muitas vezes preferimos parar a vida para estarmos imersos a uma tela ou livro acompanhando a história de personagens. É o fascínio e poder da ficção
É intrigante como muitas vezes preferimos parar a vida para estarmos imersos a uma tela ou livro acompanhando a história de personagens. É o fascínio e poder da ficção
Substituímos sair e ter experiências verdadeiras, ou pelo menos, completamente nossas, por maratonas de séries. Nos emocionamos com o câncer de alguém que nunca existiu e torcemos por bandidos serem bem-sucedidos ao assaltarem bancos, quando nunca faríamos isso na realidade. Incontáveis vezes deixei de ir a um evento ou encontro para ter o prazer de estar em casa assistindo filmes.
Acredite, esse não é um texto crítico a improdutividade ou ao escape que usamos através da ficção. Faz parte e todos merecem ter pequenos prazeres na vida. Tudo bem cancelar os compromissos sociais para assistir a nova temporada da série favorita, terminar aquele capítulo do livro tão animado ou simplesmente deixar a imaginação correr solta no papel.
Você tem o poder de escolher entre a realidade ou parar um pouco o tempo e fantasiar, se te faz bem.
O que tem a ficção afinal?
Ou a pergunta seria: o que acontece para querermos esquecer de nós e mergulharmos em outras vidas? Woody Allen, o contador de histórias incansável, já dizia em Meia-Noite em Paris: “O presente é assim. É um pouco insatisfatório porque a vida é insatisfatória”.
Mas o encanto pela ficção vai muito além disso. Se trata também, da necessidade inerente ao homem de contar histórias e entender sua realidade. Muitas vezes a ficção é terapêutica e nos ajuda a processar aquilo que é a existência.
Suzi Frankl Sperber escreve sobre a “pulsação de ficção”, uma teoria associada às pulsações de vida e morte de Freud. Sua fundamentação é na indispensabilidade que todo ser humano tem de elaborar a experiência vivida através da efabulação.
A ficção se torna, assim, instrumento de transferência. Não de sentido, mas de deslocamento de sujeito e uma ferramenta poderosa de autorreflexão.
O desenvolvimento humano, psíquico e do conhecimento, parece ser revelado por jogos, imaginário e simbolização. A essência do processo parece estar vinculada a uma extrema urgência de compreensão. Godard já havia matado a charada em “A Chinesa”: tudo bem, é ficção, mas me deixa mais próxima da realidade”.
A complexidade é tão grande que é preciso considerar a questão da possibilidade. Provavelmente eu nunca irei morar na Grécia ou terei uma conversa séria sobre vestidos com ratos, mas posso vivenciar assim. Nos realizamos através dessas histórias e aprendemos lições incontáveis.
Universo fabulado
A professora Dra. Ivânia Campigotto Aquino acredita que a ficção é parte integrante da nossa formação como sujeitos, uma vez que, diariamente, mesmo que de maneira inesperada, nos retiramos do real e nos transportamos ao universo fabulado.
Ao olhar no dicionário, ficção significa: “Criação de imaginação, invenção fabulosa, opõe-se ao que é real”. De modo semelhante, em uma abordagem Freudiana da questão, ao considerarmos criações ficcionais como arte, ela se torna uma gratificação substitutiva apresentada como ilusões à realidade.
Sobre a importância da fantasia na vida mental, o pai da psicanálise acredita que são muito eficazes psiquicamente, o que resulta em uma distração passageira da multiplicidade do mundo.
A ficção tem uma dupla armadilha de trazer compreensão e escape. Afinal, todos precisam de uma pitadinha de esquecimento de si mesmo.
Ficção do bem-estar
Essas experiências fictícias fazem parte do que Aristóteles chamou de catarse ao se referir à purificação das almas por meio de uma descarga emocional provocada por um trauma.
Ainda sobre arte, se acredita que através dela é possível que ocorra esse fenômeno. É como assistir a um filme, espetáculo, show ou até mesmo uma pintura quando esses elementos provocam grande descarregamento sentimental. Nietzsche dizia que “temos a arte para não morrer da verdade”.
A cineterapia, por exemplo, pode ser usada como ferramenta psicoterapêutica. É uma verdadeira oportunidade de aprendizagem para a cura e evolução. Utilizada cada vez mais por profissionais de saúde e em terapias complementares para melhorar o bem-estar mental, é capaz de agir como catalisador para mudanças de hábitos e desenvolvedor de empatia.
Da mesma forma, a escrita ficcional e o desenho são atos terapêuticos e imaginativos que pela expressão transforma perspectivas e coloca o sujeito no lugar ativo de criador.
O psicólogo Julio Peres entende que essa é uma maneira eficaz de superar situações difíceis. Segundo ele, crianças e adultos precisam atribuir significados às experiências dolorosas para conseguir explicar o que ocorreu. Assim, é possível reestruturar o trauma, processar os sentimentos envolvidos e os superar.