Tirar fotos é um registro de apoio às memórias
Quantas vezes escutamos a seguinte frase: 'Guarde na memória, não precisa tirar foto'? No entanto, nem tudo fica preservado nas lembranças e registrar momentos dá sentido à vida
Você percebe um momento especial ou apenas uma cena bonita esteticamente, e o ato de tirar o celular do bolso para fotografar vem logo em seguida. Esse instante, captado pelo seu olhar, despertou algo em você e, de alguma forma, te marcou. No entanto, quantas vezes já escutamos a seguinte frase: “Viva o agora e guarde na memória, não precisa tirar fotos!”
Precisamos mesmo armazenar tudo somente na lembrança? Nosso cérebro consegue preservar todos os instantes bonitos que vivemos e que nos fazem ser quem somos? Sabemos se pessoas, locais ou paisagens estarão ali amanhã? E se tudo se perder na memória com o passar do tempo?
O artista porto-riquenho Bad Bunny lançou o álbum “Debí Tirar Más Fotos” (“Eu devia ter tirado mais fotos”) em janeiro de 2025. Parte do disco gira em torno do que o próprio nome sugere. Na música “DtMF”, ele diz: “Debí tirar más fotos de cuando te tuve. Debí darte más beso’ y abrazo’ las vece’ que pude. Ey, ojalá que los mío’ nunca se muden”.
Traduzido, o trecho fica assim: “Eu devia ter tirado mais fotos quando te tive. Devia ter te dado mais beijos e abraços sempre que pude. Tomara que os meus nunca se mudem”. Para além de um entendimento de amor romântico, a música e o álbum ultrapassaram essa interpretação.
(Foto: Divulgação) Capa do álbum ‘Debí Tirar Más Fotos’, do artista Bad Bunny
Um exemplo: a canção virou trilha sonora de uma trend nas redes sociais de vídeos da população retornando para Gaza, epicentro da guerra entre Israel e o Hamas, após o cessar-fogo em janeiro. Mesmo em outro idioma, a música representou a volta pra casa. Mas, no lugar dos lares, apenas destruição.
O sentimento de que deveriam ter eternizado em fotografias os momentos em que suas casas ainda estavam de pé marcou a volta. Retornamos à pergunta do início: No dia a dia, sabemos se pessoas, locais e paisagens estarão ali amanhã?
Registrar momentos dá sentido à vida
Psicanalista da SBPSP (Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo), Bruna Paola Zerbinatti afirma que tirar foto é importante para o bem-estar emocional, já que nem tudo fica guardado para sempre na lembrança. “Nossas memórias não registradas se perderão assim como nós mesmos findaremos um dia. O registro também é uma forma de dar sentido à vida. O compartilhar das memórias é deixar uma herança, é não estar sozinho com aquilo que se viveu”, diz.
Ela explica que mesmo que alguém tire fotos “apenas para si mesmo”, de alguma maneira está compartilhando aquele registro com um “eu do futuro”. “Seja como for, o afeto está presente e queremos guardar aquilo que nos é importante.”
Professora de psicologia da Faculdade Arnaldo Janssen, de Belo Horizonte, em Minas Gerais, Rachel Sette acrescenta que o cérebro é projetado para processar e armazenar informações visuais, e a “fotografia pode ser uma forma de reforçar a memória e a emoção associada a um determinado evento”.
“Além disso, a liberação de dopamina, um neurotransmissor associado ao prazer e à recompensa, pode estar envolvida na motivação para registrar momentos importantes e que nos tocam de uma maneira peculiar”, diz.
De volta ao passado
Recentemente, houve um boom do retorno das máquinas fotográficas que revelam a foto na hora. Aquelas no estilo Polaroid. Outras pessoas começaram a revelar as fotografias do celular para guardar ou montar álbuns. Retirar da galeria do smartphone para transformar em algo físico. Algo que dê para tocar e sentir.
Antes das máquinas fotográficas digitais e dos celulares, fotografar era um ato calculado e pensado. Cada clique das 36 ou 24 poses da câmera analógica exigia cuidado na escolha. Depois, vinha a espera do processo de revelação. Dias de expectativa até finalmente ter em mãos as lembranças capturadas. Isso, claro, quando o rolo de filme não queimava.
Atualmente, podemos tirar infinitas fotos que raramente são revisitadas na galeria do celular. A psicanalista Bruna Paola Zerbinatti explica que essa diferença pode ser analisada pela relação entre “quantidade e qualidade”.
“Um número gigantesco de fotos é quase a mesma coisa que nenhuma, acabamos por nos perder e não encontrar aquilo que nos motivou a fotografar. O álbum físico vem para revelar nossas escolhas. Fazemos uma seleção do que é mais importante, do que queremos guardar. No fim das contas, as fotos do álbum físico é que acabam sendo as ‘que ficam na memória’. Priorizamos assim a qualidade em detrimento da quantidade”, afirma.
A psicóloga Rachel Sette acrescenta que a “necessidade do real e do concreto se faz presente nas revelações da foto, assim como a ideia de perenidade. Algo que se contrapõe a um momento tão efêmero que a nossa sociedade de encontra”.
Identifique quando tirar fotos é genuíno
Em um mundo cada vez mais digital em que o celular nos contamina com vícios, também é importante saber identificar quando o ato de tirar fotos é um movimento genuíno ou um hábito não tão saudável assim. Rachel ressalta que “podemos subestimar registros importantes ou subutilizar a possibilidade de uma curadoria afetiva quando armazenamos fotos irrelevantes, o que gera sobrecarga cognitiva”.
“A exposição excessiva a telas pode levar a problemas como ansiedade e depressão. É importante considerar os males dos tempos atuais, como o uso abusivo de telas, e encontrar um equilíbrio entre o registro de memórias e a conexão com o presente”, finaliza.
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