Arte feita de chocolate para um doce Ano Novo
Nessa coluna tentadora, ainda em clima de início de ano, Iasmine desvenda uma obra de arte produzida com um material de apelo universal: o chocolate.
Mal entramos em 2023 e alguns já estão vivendo a pressão de começar com tudo. Pau na máquina, vociferam apressados nas redes sociais. Aqui, entre um ou outro intervalo de trabalho, sigo aceitando preciosos momentos de introspecção, nem sempre tão meditativos, quando, por exemplo, perco-me no piloto automático lendo coisas de qualquer tipo na internet. Foi em uma dessas pausas aparentemente desimportantes, logo nos primeiros dias de janeiro, que me deparei com a notícia de uma mostra individual que o Museu de Arte Moderna de Nova York, o MOMA, prepara para sediar em setembro deste novo ano. Entre as obras que pretendem expor, uma instalação chamou a minha atenção.
Uma sala de chocolate
“Chocolate Room” é o nome dela. O alimento nunca foi o meu ponto fraco, mas fechei os olhos, puxei com força o ar pelo nariz e tentei imaginar a sensação, especialmente olfativa, de estar de pé em uma grande sala coberta com chocolate. O cheiro não me agrada. Não consigo fantasiar um êxtase próximo de quando, no ano passado, me deixei inebriar pelo aroma do azeite de dendê lançado à parede da Pina Estação, em São Paulo, por Ayrson Heráclito, mas insisto e sigo a leitura (se há uma coisa que exercitei nestes anos estudando arte é que o jogo da interpretação e da conexão espectador-obra nunca está totalmente ganho ou perdido). Descubro que a sala multissensorial forrada com centenas de folhas papel cobertas de uma macia pasta de chocolate foi montada pelo artista Edward Ruscha pela primeira vez na 35ª Bienal de Veneza de 1970. Na ocasião, ele adquiriu tubos de chocolate Nestlé, cobriu mais de 300 impressões com o material e preencheu as paredes do espaço.
O ataque das formigas
Aquele foi um ano conturbado. Quando Ruscha exibiu o seu chocolate, uma porção de artistas americanos já havia boicotado a participação na Bienal em protesto ao envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. E que calor fazia em Veneza naquele verão… o chocolate que derretia dia após dia terminou servindo de suporte para as frases de protesto deixadas pelos milhares de visitantes do evento, que usavam os dedos para marcar no material palavras contra a participação americana no conflito. Pediam o fim da guerra. Ironicamente, pouco tempo depois, um exército organizado de formigas invadiu o espaço da instalação.
Cultura e desejo
Não era a primeira vez que o artista preferia materiais inusitados a tintas convencionais. Ed Ruscha já havia utilizado feijões cozidos, ketchup, gema de ovo, suco de amora, e até Coca-Cola. Essa gama de substâncias destacou-se em trabalhos com manchas em folhas de papel, como na série “Stains”, de 1969. Nada que não estivesse em perfeita harmonia com movimentos como o da pop art e da arte conceitual, que se desenvolviam na década de 60 nos Estados Unidos. Por isso, além de observar o efeito dessas substâncias no papel, o artista provoca o seu observador com o uso de códigos massificados da cultura popular americana, acessíveis a todos, mas não por isso medíocres ou irrelevantes para a arte. A proposta de Ruscha envolve proporcionar um experimento que, ao ironizar a sociedade do consumo, recupera memórias dos nossos mais profundos valores emocionais e apetites carnais. Em Chocolate Room, os chocólatras são consumidos pelo desejo, mas não há como executá-lo. Podem até salivar, pobres almas, mas não lhes será permitido comer a obra de arte.
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Um doce e absurdo 2023
Alegro-me que insisti nessa obra. Como um estalo, ela evocou tudo o que me fez apaixonar pela arte, tão doce quando nos convida a confrontar o inesperado. Alegro-me com a simplicidade gráfica despropositada que cutuca desejos, sensações e o fantástico absurdo que, à primeira vista carecido de graça, reafirma a nossa posição de humanos no mundo, frágeis, seduzidos, sedutores. Nada é tão tolo assim, afinal. Nunca subestime o poder do chocolate!
“Até os homens mais sábios, de vez em quando, apreciam pequenos absurdos”
Trecho de texto do filme A Fantástica Fábrica de Chocolate
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