Nas redes sociais se tornou muito comum falar sobre hiperfoco, tão comum que o significado do termo até se perdeu: o estado relacionado com transtornos psiquiátricos “passou a significar” que alguém tem interesse por algo. Mas não é tão simples assim.
O hiperfoco é um estado de atenção intensa e prolongada em uma única atividade ou interesse. Está relacionado ao TEA (Transtorno do Espectro Autista) – associado a interesses restritos e específicos, muitas vezes com profundidade e detalhamento acima da média –, ao TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade) e também pode ocorrer, em menor escala, em transtornos do humor.
O que diferencia esse estado do padrão de interesse que pessoas neurotípicas experimentam é que a pessoa em hiperfoco perde a noção do tempo, pode esquecer de comer, dormir, realizar outras tarefas básicas e obrigações.
Para pessoas neurotípicas, os interesses e obsessões são mais brandos. “A obsessão em pessoas neurotípicas pode ser comparada a um grande interesse ou paixão momentânea por um tema. Ela geralmente é voluntária e flexível: a pessoa consegue parar, mudar de assunto, adaptar-se ao contexto”, explica Flávio Sallem, neurologista do Hospital Japonês Santa Cruz.
O estado de hiperfoco surge de forma involuntária e automática, segundo o neurologista. É difícil de interromper e interfere na rotina e nas relações sociais. “Ou seja, o hiperfoco não é só “gostar muito de algo”, mas sim um estado alterado da atenção que pode trazer tanto benefícios (como produtividade e aprofundamento) quanto prejuízos funcionais.”
Há acolhimento?
Rafaela Macedo tem 22 anos, e só foi diagnosticada com autismo e TDAH aos 20 anos. Para ela, os hiperfocos são muito mais do que apenas interesses: “Não é só algo que gosto muito, sou eu.”
Durante a vida teve diversos interesses, uns que duraram mais tempo (os interesses especiais), outros menos. Na infância, ela conta que só conseguia brincar se a brincadeira fosse temática de farinha de mandioca – por exemplo, brincadeiras de casinha em que a família era produtora da farinha. Na adolescência, hiperfocou em metrôs e pelo grupo de pop sul-coreano BTS. E, um pouco antes de receber o diagnóstico, se interessou por autismo.
Apesar dos interesses muito variados, ela se sentia solitária quando cada um começava. Não é possível parar de pensar neles, não há mais nada a fazer a não ser consumir tudo sobre eles. “É horrível querer compartilhar sobre algo que é a minha vida e ter pessoas fazendo pouco caso disso. Nem sempre tem alguém para te escutar, mas sempre tem alguém pra cortar o assunto assim que você consegue falar um pouco sobre”, desabafa.
“Compartilhar sobre um hiperfoco é como dar um pedaço muito grande da minha alma e esperar que as pessoas cuidem com carinho”
Essa falta de acolhimento gerou o medo de incomodar toda vez que a conversa rumava para o assunto que ela gostava. Mesmo feliz com a atenção, depois das interações ficava com a impressão de ser repetitiva e “chata”.
Mas o acolhimento é possível. “Em vez de interromper ou desvalorizar o hiperfoco, é importante respeitar e valorizar o interesse da pessoa. Muitas vezes, o que parece ‘exagerado’ para uns é o que dá sentido ou estabilidade emocional para o outro. Evite frases como ‘você só fala disso’ ou ‘isso é perda de tempo’”, aconselha Sallem. Outras dicas são:
- Crie pontes com esse interesse: se a pessoa está imersa num tema, tente entender e dialogar a partir dali. Isso gera conexão, confiança e mostra que você a vê por completo;
- Ofereça estrutura e apoio, não controle: às vezes, o hiperfoco pode prejudicar a rotina. Nesses casos, em vez de impor limites de forma brusca, ajude com estratégias para equilibrar esse foco com outras necessidades da vida cotidiana.
- Evite julgamentos e estereótipos: neurodivergência não é sinônimo de desorganização ou isolamento. Muitas vezes, o hiperfoco é uma manifestação de talento.
“Ter pessoas que me dão atenção sobre isso [o hiperfoco], que tratam com carinho, me deixa muito feliz. A maioria das reações é um incômodo, é sempre um “de novo falando disso”. Quando as pessoas realmente respeitam e se interessam em saber, eu fico genuinamente feliz e animada de poder compartilhar”
A banalização
A utilização constante do termo nas redes sociais pode trazer consequências negativas para os transtornos relacionados com o hiperfoco.
Quando o termo passa a ser usado fora de contexto, como sinônimo de produtividade intensa ou como gostar muito de algo, isso pode deslegitimar a experiência de pessoas neurodivergentes, reduzindo suas dificuldades a traços interessantes ou desejáveis. A romantização desse estado, que às vezes é visto como uma habilidade extraordinária, ignora todo o sofrimento que pode vir com a desregulação da atenção.
Além disso, por não saber identificar o que realmente é hiperfoco, o autodiagnóstico se tornou muito comum. “Pessoas podem se identificar com o hiperfoco e concluir precipitadamente que têm TDAH ou autismo, sem avaliação profissional”, diz Sallem.
Esse autodiagnóstico apresenta riscos significativos para diagnósticos errados ou incompletos, sem considerar as comorbidades dos pacientes, e até mesmo para uso inadequado de tratamentos. Em caso de identificação com sintomas de transtornos psiquiátricos, a recomendação é procurar profissionais que possam conduzir uma avaliação.
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