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    O que aprendi numa viagem de bicicleta pela Europa
    (ARQUIVO PESSOAL)
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    Acordei mal-humorado e pouco disposto naquela manhã chuvosa na Áustria. Até aquele momento, no início do quarto dia da viagem de bicicleta entre Milão e Es­tocolmo, nada acontecia como eu planejava. E tudo estava bem dife­rente das duas primeiras ciclovia­gens que fiz nos anos anteriores (Porto Alegre-Santiago, em 2018, Barcelona-Amsterdã, em 2019).

    Depois de três dias na estrada, eu ainda me sentia muito debilitado por causa de um problema intesti­nal que me acometeu ainda na Itá­lia, na véspera da partida. Cheguei até a percorrer oito quilômetros, mas tive de ser resgatado por uma ambulância, de tão mal.

    Passei uma noite em um hospital de Va­rese e precisei de mais quatro dias para me recuperar minimamente. Uma lástima para quem fez planos exatos e odeia ficar trancado em quartos de hotéis.

    Minha ideia era pedalar aproxi­madamente 2.300 quilômetros, de Milão a Estocolmo, em 28 dias. O imprevisto, porém, acabou com todo esse planejamento, feito nos mínimos detalhes, ainda em São Paulo, ao longo dos últimos me­ses.

    Mudança de planos

    Agora, na nova realidade, eu teria 23 dias para atravessar a Eu­ropa – meu voo de volta ao Brasil sairia menos de 48 horas depois da chegada a Estocolmo. Dessa forma, não havia espaço para mais atrasos. Nem novos imprevistos. O único caminho era pedalar.

    Refiz, então, o trajeto. Encurtei­-o para 2.050 quilômetros: em vez de alcançar a Dinamarca pelo extremo norte da Alemanha, eu pedalaria rumo ao Nordeste, até a Ilha de Fehmarn, de onde pega­ria uma balsa até o país nórdico.

    Além disso, eu teria de recorrer a duas caronas, escolhidas por mim no momento em que eu achasse necessário para seguir viagem. Tudo parecia bem encaminhado, apesar de tudo. Mas meu intesti­no ainda teimava em dar trabalho, causando uma insegurança rara na estrada.

    Nem mesmo os dias tinham sido agradáveis até ali. Eu sofri para deixar a Itália em meio às subidas na fronteira com a Suí­ça. Logo no primeiro dia, perdi mi­nha câmera em um paredão à beira do Lago Maggiore e, pouco depois, fui picado por uma formiga.

    No terceiro dia, uma tempestade me pegou na saída de Liechtens­tein, com direito a vento e frio. Com o pensamento forte, entre­tanto, consegui alcançar a cidade de Bregenz, já na Áustria. Dormi cansado, mas com esperança de a chuva, enfim, dissipar-se. Nada feito. Havia realmente motivos para aquele mau humor matinal.

    Na foto, tudo o que Diego levou para sua recente cicloviagem, de 28 dias. Na bagagem, já atravessou dois continentes e passou por 16 países de bike

    Comida que dá força psicológica

    Bregenz fica a apenas oito qui­lômetros da Alemanha. Alheio à beleza da cidade e à chance de conhecer mais caminhos pelo mundo, pedalei até a fronteira decidido a abandonar a travessia – e quem me conhece sabe que desistir nunca está entre as minhas escolhas.

    Aquela viagem defini­tivamente não estava sendo fácil. Decidi, então, comer um hambúr­guer com refrigerante, que havia dias desejava – e evitava, em meio ao problema intestinal.

    Como já havia entregue os pontos, não fa­ria diferença e, com sorte, poderia até me dar uma força psicológica. E foi justamente isso o que acon­teceu. Naquele dia, eu teria de pe­dalar 72 km até Bad Waldsee, na Alemanha, em um trajeto repleto de subidas.

    Com a cabeça mais forte, completei o caminho e ainda encontrei um camping maravilho­so para passar a noite, com uma recepção calorosa e amorosa. Era tudo o que eu precisava.

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    Enfim, a conexão com a viagem de bike

    E foi só no quinto dia que eu me senti realmente conectado com a viagem, pela primeira vez. Era como se eu estivesse ainda nas minhas viagens inaugurais, tudo o que me fazia ter vontade de pla­nejar novas travessias pelo mun­do.

    Generosa, a Alemanha ainda me apresentou mais pessoas que fizeram a diferença, seja com um simples cumprimento com a cabe­ça ou uma palavra de ajuda. Sem contar, claro, as paisagens magní­ficas pelo interior.

    Eu atravessei a Alemanha de ponta a ponta em 12 dias, com média de 80 quilômetros por dia. Prestes a chegar à Dinamarca, tive mais um motivo para seguir firme rumo a Estocolmo.

    Encontros da estrada

    Encontrei um ciclovia­jante que era pura inspiração, sem nenhuma pretensão, apenas com palavras e atitudes simples. Paolo, um italiano de 63 anos, também havia saído do norte da Itália. A travessia dele era Veneza-Nordkapp, no extremo norte da Noruega.

    Paolo virou um grande companheiro. E um exemplo: ele pedalava com muita força mental, com rapi­dez e calma, além de nunca achar o trajeto complicado, por mais que fosse.

    Atravessamos a fronteira jun­tos e decidimos acampar no mesmo lugar. Trocamos ideias sobre a vida, ajudamos um ao outro e combina­mos os passos dos próximos dias. Por gostar de acordar cedo, Paolo partiria antes no caminho rumo a Copenhague. Eu sairia à tarde e o encontraria no próximo camping.

    Na capital, ele faria uma pausa de um dia, enquanto eu seguiria. Todos os dias, compartilhava meu trajeto com ele, mostrando que a escolha dos campings tinha sido acertada; isso já na Suécia, onde eu teria mais seis dias até finalizar minha travessia.

    Em território sueco, já com tudo encaminhado, tive mais tempo e tranquilidade para pensar em tudo o que havia acontecido até ali. Eu ti­nha a sensação de estar na estrada por meses. E era como se fosse mes­mo, pois todas aquelas experiências perdurariam em mim por muito tempo, seja na cidade ou em novos caminhos de bike pelo mundo.

    Cheguei a Estocolmo ao fim do 23º dia de pedalada. Paolo alcançou a capital horas depois e, dali a 24 dias, finalizou seu caminho até Nor­dkapp – até hoje trocamos mensa­gens e combinamos de encarar uma cicloviagem na América do Sul.

    No centro de Estocolmo, fiz uma festa solitária em frente aos barcos. Tirei fotos, fiquei emocionado com aquele momento especial em mi­nha vida. E constatei mais uma vez que nunca retornamos os mesmos para casa. De alguma forma, tudo o que vivi naqueles dias voltarão à tona em outras travessias, como um belo exemplo de força, vontade, su­peração e amizade.

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    DIEGO SALGADO é jornalista, repórter esportivo e ciclista. @diegosalgadobike


    Conteúdo publicado originalmente na Edição 247 da Vida Simples

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