Aisha Maria da Silva Camara, 21, é filha de brasileira com um costa-marfinense e mora no Brasil desde 2016, quando se mudou do país africano com a mãe. Mesmo morando aqui há quase 10 anos, a jovem ainda não experimentou a fama de que o Brasil é um país acolhedor, e o que ela experimentou no lugar foi a xenofobia.
Nos primeiros momentos em território brasileiro, no início da adolescência, a barreira linguística foi um problema e ela não encontrou empatia. Quando iniciou a escola, logo depois de chegar ao Brasil, as pessoas acreditavam que ela mentia sobre não falar português bem, e não tinham paciência para incluí-las nas conversas. Além disso, em debates, ela não conseguia expressar sua opinião porque os colegas a interrompiam constantemente.
O tratamento que recebia era bem diferente de outros estrangeiros. Enquanto eles eram alvo da curiosidade das pessoas, ela era escanteada. “Durante o ensino médio, estudei com uma pessoa dos Estados Unidos e o jeito que a tratavam era completamente diferente do jeito que me tratavam. As pessoas pediam a ela para falar algo em inglês, e duvidavam que eu era fluente em francês”, relembra.
Aisha crê que o tratamento que recebe está relacionado ao racismo, muito forte no Brasil. “O Brasil se mostra ser um país acolhedor para europeus, mas se você não é branco, loiro, tem olhos azuis, não te tratam bem. Se o estrangeiro for de outro local, como a África, as pessoas não gostam. É racismo”, comenta.
No Brasil, xenofobia e racismo andam juntos
Quem também teve que lidar com a realidade hostil do país foi o angolano Randi Manari, 30 anos. Ele veio para o Brasil em março de 2020 para estudar administração na Universidade Federal do Ceará. Por acompanhar a questão racial ao redor do mundo, ele já tinha conhecimento do racismo histórico e estrutural no país e que, eventualmente, seria alvo desse crime.
Ele conta que fez muitos contatos bons com brasileiros, especialmente na sua carreira de administração, mas que já teve de ouvir comentários maldosos em diferentes ocasiões. Para Randi, há uma explicação para a discriminação que faz parte de sua rotina no Brasil. “No meu caso, aliás, existem dois fatores: sou africano e sou preto”, comenta.
Carolinne Mendes da Silva, mestra e doutora em história e pós-doutoranda pelo Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos (FFLCH-USP), explica que a ideia de que o Brasil é um país acolhedor é um mito. Essa ilusão está relacionada com a noção falsa de que existe uma convivência harmônica entre europeus e outros povos (como os africanos e os indígenas).
Entretanto, a sociedade brasileira foi fundada com relações de violência, que nunca deixaram de acontecer. “Por mais que algumas pessoas se entendam como acolhedoras, é preciso considerar que somos marcados por discriminações que estruturam nossa sociedade. Muitas vezes nossa educação normaliza preconceitos e violências, como o racismo e a xenofobia. Naturalizar e não encarar essas questões faz com que esses casos continuem existindo”, defende.
A supervalorização da branquitude
Carolinne aponta que a xenofobia, no Brasil, combina-se ao racismo e isso se reflete em como a sociedade brasileiras recebe os estrangeiros. Isso tem relação com as origens de formação do Brasil, que estabeleceram uma valorização de um certo povo (branco, europeu) em detrimento de outros (africano, indígena e oriental). Nesse sentido, algumas nacionalidades e culturas são inferiorizadas, não só por serem estrangeiras mas também pela questão da cor de pele.
“Na lógica racista que nos formou, o branco é entendido como o ‘universal’, enquanto os outros grupos são racializados, por seu fenótipo e por suas culturas. Assim, migrantes dos países da América do Sul são lidos socialmente como indígenas e sofrem esse racismo combinado à xenofobia. Essa dupla discriminação também ocorre com migrantes negros, vindos, muitas vezes, de países de África ou da América Central, como o Haiti. Pode ocorrer também com imigrantes do Oriente Médio e outras partes da Ásia, que as pessoas não leem como brancos”, explica.
Na universidade, Randi convive com estrangeiros de diversos países e percebe uma diferença no tratamento para intercambistas europeus, em comparação aos africanos e até aos vizinhos sul-americanos. “Existe uma mentalidade que coloca os europeus no topo de uma ‘pirâmide’, vistos por muitos como superiores”, comenta.
Xenofobia, racismo e colonização: um trio opressor
Para Carolinne, existe uma lógica que constrói uma hierarquia e coloca no topo aquilo que é próprio do europeu e do branco. Afinal, não é difícil perceber uma valorização de pessoas de origem europeia em detrimento de pessoas de outras origens. No geral, os brasileiros respeitam mais as línguas, culturas e estéticas europeias. Este é mais um sintoma da colonização europeia, que começou em 1500 e, mesmo com movimentos de independência e governo próprio, está longe de acabar.
“Observamos, por exemplo, que um estadunidense branco tentando falar o português no Brasil pode ser visto como charmoso, enquanto um angolano negro pode ser visto como alguém que ‘fala errado’, mesmo que tenha o português como língua materna. Além disso, disseminam-se informações de que imigrantes da África ou da América do Sul estão em situação de vulnerabilidade, o que nem sempre é verdadeiro”, ressalta.
No livro Os Condenados da Terra, Frantz Fanon explica um pouco das origens dessa mentalidade. Segundo ele, as estruturas da colonização dividem o mundo em dois — colonos e colonizados. E, através dessas estruturas, os colonizados desenvolvem um olhar permanente de admiração, de desejo e de inveja dos primeiros.
Nesse contexto, o bom, o de sucesso, o certo e o ideal recaem sempre nos signos, comportamentos e valores dos colonos.
“A originalidade do contexto colonial é que as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme diferença dos modos de vida não conseguem nunca mascarar as realidades humanas. Quando se apreende o contexto colonial em seu imediatismo, fica patente que o que divide o mundo é antes de mais nada o fato de pertencer a tal espécie, a tal raça. Nas colônias, a infraestrutura econômica é igualmente uma superestrutura. A causa é consequência: a pessoa é rica porque é branca, é branca porque é rica”, escreve.
Diversidade é ignorada e marginalizada
Quando a maioria da sociedade valoriza signos, valores, comportamentos e até a estética de um povo como ideal, as outras acabam sendo marginalizadas — inclusive, de formas violentas.
“Em 2023, passei três meses na Costa do Marfim de férias e foi completamente diferente. Fiquei sem tranças, e todos acharam meu cabelo crespo bonito, me elogiaram. Aqui eu não consigo sair assim e não posso sair de casa sem me arrumar porque as pessoas acham que sou assaltante ou que estou em situação de risco”, diz Aisha.
Imigrantes negros e sul-americanos também percebem uma ignorância generalizada sobre as regiões de origem dos imigrantes, o que leva ao desrespeito em diversos níveis. Randi conta que, uma vez, estava em um bar em São Paulo com amigos, e um homem abordou o grupo para comentar que, enquanto eles estavam ali, havia milhares de crianças passando fome na África.
Além da “fome na África” não ser justificativa para que as pessoas divirtam-se em suas vidas, o desconhecimento sobre as diversidades que compõem o continente Africano só aumentam o abismo entre brasileiros e estrangeiros.
“Muitas pessoas tratam a África como se fosse um único país. Uma vez, em São Paulo, alguém comentou que ‘meus conterrâneos angolanos’ eram camelôs que vendiam produtos debaixo da ponte. Quando passei por lá, vi brasileiros, congoleses e guineenses”, conta Randi.
Os prejuízos da xenofobia para estrangeiros e para o país
Em 14 anos, o Brasil recebeu cerca de 2,3 milhões de migrantes, entre residentes permanentes, temporários e fronteiriços e refugiados. Em contexto de grande fluxo migratório, a convivência com estrangeiros é uma certeza para o futuro, e a xenofobia prejudica a experiência de vida e o acesso dessas pessoas a direitos básicos.
Carolinne lembra que a migração é um direito humano e que o preconceito pode isolar socialmente os migrantes, através da criação de barreiras sociais, culturais e econômicas, dificultando o acesso dos migrantes a serviços básicos.
Além disso, a mudança pode causar sofrimentos físicos e psicológicos. “A xenofobia alimenta estereótipos e até agressões que podem desestimular a participação ativa dos imigrantes na vida social e cívica, tornando difícil a formação de redes de apoio e solidariedade”, comenta.
Para ela, o contato de brasileiros com pessoas estrangeiras é uma oportunidade valiosa para o fortalecimento da cultura brasileira.
“A abertura à diversidade pode ser um ganho para o nosso país. Sendo assim, a xenofobia tem como grande prejuízo social o não reconhecimento do quanto essa diversidade deveria ser valorizada. Ela pode representar, inclusive, um caminho para uma sociedade mais justa, inclusiva e potencializadora dos valores de cada um.”
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Sobre a série Por uma Vida Antirracista
Em 2024, pela primeira vez na história, o feriado de 20 de novembro – Dia da Consciência Negra – acontece em todo o Brasil. Para celebrar a nacionalização da data, a Vida Simples apresenta em seu portal a série Por uma Vida Antirracista. São seis matérias — e uma publicação bônus — abertas ao público com reflexões sobre racismo, depoimentos e dicas para ter atitudes antirracistas. Entendendo o papel do jornalismo na promoção de uma sociedade mais informada e consciente, a Vida Simples usa sua plataforma para trazer à tona a luta de pessoas que, por muitas vezes, não têm suas vozes ouvidas. Esta é a última matéria da série, e você pode acessar todo o conteúdo nos links acima.
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