Fui batizado José Roberto Caldas Pinto, mas prefiro o nome que ganhei com a vida: Zé Pescador. Nasci e moro do lado do mar. Quer dizer, minha mãe foi me ter numa cidadezinha do Recôncavo baiano, chamada Cruz das Almas, porque quando ela me teve, há 56 anos, não havia maternidade na Ilha de Itaparica, onde morávamos. Logo que deu à luz, voltou para a ilha. Minha relação com o mar começou assim, na infância. Eu soube, desde cedo, dos meus limites, que não podia ir sozinho, apesar de a praia estar ali, na nossa frente.
Mas, quando tinha 6 anos, meus pais se separaram e voltei para o Recôncavo, para morar com minha mãe e meus avós. E lá fiquei até os 17, quando fui para Salvador tentar a vida. Dividia o apartamento com uns amigos que faziam tatuagem. Um dia, recebemos um biólogo para fazer uma tatuagem, Hélio Gloria. Na época, eu vendia salada de fruta na praia. Hélio era biólogo marinho e mergulhador, e me convidou para conhecer seu trabalho. Foi assim que me reencontrei com o mar. Ele pegava peixes ornamentais e vendia para o mercado paulista.
A sensação de liberdade, de estar no mar e contemplar o sol, de nadar, de estar em contato com aquela imensidão, era algo maravilhoso. Aquele dia de trabalho me encantou. Fiquei apaixonado pelos peixinhos e quis estar mais ali. Combinamos que eu seria o marinheiro do barco e, em troca, ele me ensinaria a mergulhar e a conhecer os peixes, mantê-los e despachar tudo para as lojas em São Paulo.
Descobri, assim, uma nova profissão, que de ecológica não tinha nada. Na verdade, essa não era uma palavra que fazia parte da minha vida. Eu só queria saber de entrar no mar e coletar tudo que conseguisse e transformar isso em resultado financeiro. Tempos depois, casei e voltei para onde meu pai vivia, a Ilha de Itaparica, litoral da Bahia. Mas ali era muito mais complicada a logística de trabalhar com peixes ornamentais. E comecei a perceber que a caça submarina era mais negócio. Era mais fácil manter o peixe abatido do que vivo.
A caça submarina é uma modalidade da pesca. Nela, você mergulha, com compressor de ar, para capturar peixe, polvo, lagosta. Esse tipo de pesca é considerada predatória, porque você se coloca numa vantagem em relação ao peixe. Mas essa era também a única forma que eu e muitas outras pessoas tinham para sobreviver ali.
Eu não refletia sobre a maneira como fazia as coisas. Era algo egoísta porque só pensava em mim e na minha felicidade imediata. O nome Zé Pescador vem daí. Porque eu vivia disso, da pesca e da venda desses peixes. Até o dia em que a minha primeira filha, Janaina, que hoje tem 30 anos, me despertou para a ecologia e para uma palavra que eu não conhecia: sustentabilidade.
Ela me fez perceber que eu estava trabalhando contra a minha própria sobrevivência, porque eu pegava as lagostas, por exemplo, com ovos para reproduzir. Um dia, voltando da pesca, enquanto separava os peixes, polvos e lagostas, ela viu uma das lagostas com bolinhas amarelas na barriga e me perguntou o que era. Expliquei que eram ovas. Ela seguiu me perguntando e eu, meio sem paciência por conta do cansaço, disse que cada ovinho daquele era um filhote. Naquele instante, ela me olhou com muita decepção e me perguntou por que eu não deixava os filhinhos da lagosta nascerem primeiro. Ela tinha uns 8 anos. E, nesse momento, ao me deparar com o olhar da minha filha, entendi que não dava mais para viver daquela maneira.
Muitas pessoas já haviam me chamado a atenção para aquele tipo de pesca. Mas foi a fala de Janaina e o olhar dela que me cortaram. Não era isso que queria deixar na memória dela, que o pai era um destruidor, que não estava nem aí para a natureza. Então me veio a necessidade de mudar.
E foi quando também entendi que não bastava eu mudar, porque todos meus colegas pescadores se sustentavam da mesma maneira. Angustiado e sem saber o que fazer para sobreviver, veio a ideia de participar de um projeto chamado Viva Pesca, que levava conceitos de sustentabilidade pela pesca para as comunidades.
Desenvolvi esse projeto com a ajuda de uma professora, a Denise. Meses depois, estava dentro de uma sala de aula com um monte de garotos me chamando de professor. Isso era um sonho. Eu mesmo tinha parado de estudar na sexta série. Isso mexeu com a minha felicidade. Me deu orgulho. Eu falava da pesca e de cidadania. Ensinava artes de pesca que não fossem tão impactantes, que o pescador pode ter outras possibilidades de renda com o ecoturismo, por exemplo. E dentro desse trabalho tinham várias atividades, como a limpeza dos recifes de corais. Começamos, assim, a fazer ações de preservação do mar. E passei a ser remunerado por isso, a suprir o que ganhava com a pesca.
A partir daí, conheci um oceanógrafo que estava estudando os recifes de corais, o Zé Luis. Ficamos amigos e, junto com outras pessoas, resolvemos criar uma associação, a PRÓ-MAR. Ela trabalha com a comunidade de Itaparica e fala sobre empreendedorismo, manutenção da embarcação, desenvolvimento de atividade na praia. Isso foi há 20 anos. Com a Promar, mudamos a mentalidade das pessoas.
Mesmo não trabalhando mais diretamente com a pesca, eu nunca deixei de me sentir um pescador. Pescar é algo que está em mim. O pescador não escolhe ser pescador só para sobreviver, mas também porque ele encontra na relação com o mar a felicidade. A pesca é um exercício de fé. A gente entra no mar cheia de incertezas. A única certeza é a de voltar com alimento para a família.
O mar também te ensina a ser solidário. Toda vez que saía para pescar e conseguia muitos peixes, separava alguns para as pessoas da comunidade, para Dona Iaiá, Dona Margarida. A gente aprende a dividir e a reconhecer o quanto é infinitamente pequeno diante de um sopro da natureza. A gente aprende a ter humildade. Entendi isso depois de passar por algumas tempestades no mar. Ali, você se humilda e suplica para pisar de novo no chão da praia.
Aprendi a acreditar na sorte, a ser otimista. A pesca para mim sempre foi isso, imersão de aprendizados. Na estrada, se você estiver de carro e vir uma pessoa com problemas, dificilmente irá parar, a não ser que seja alguém que você conheça. No mar, não. As pessoas são mais solidárias. Tem uma ética, em que você está sempre disponível a ajudar, a não mexer na armadilha do outro, a não pegar o peixe que não é seu. É bonito quando vejo que fui de predador para alguém que preserva. Janaina, que tem nome de rainha do mar, hoje sente orgulho de mim. Acho que era isso que eu precisava deixar para ela.
Evento discute preservação marinha
Você estará em Salvador, na Bahia, no dia 1º de novembro de 2022?
O encontro é realizado pela PRÓ-MAR, uma Organização Socioambiental sem fins lucrativos que atua no desenvolvimento sustentável da pesca, turismo e conservação de recifes na Ilha de Itaparica/ BA, e tem apoio de mídia da Vida Simples.
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