O renomado sociólogo italiano, Domenico De Masi, nos deixou aos 85 anos, em sua cidade natal, Roma. Os jornais italianos confirmaram seu falecimento neste 9 de setembro de 2023. De Masi ficou famoso por seu conceito de “ócio criativo”, título que também se tornou um aclamado best-seller em sua brilhante trajetória acadêmica e literária.
De acordo com sua visão, o tempo livre é visto não como algo negativo, mas como algo verdadeiramente essencial para estimular a criatividade individual e aprimorar nossa capacidade de nos adaptarmos na sociedade globalizada e pós-industrial.
Sociólogo se destacou por obras ligadas ao estudo do trabalho e lazer
Em 1995, o livro Ócio Criativo*, do italiano Domenico De Masi, logo ocupou as listas dos mais vendidos ao abordar as relações de trabalho por um novo prisma. No Brasil, a obra chegou às livrarias em 2000 e logo conquistou uma legião de leitores, que entenderam a importância de desconectar das atividades profissionais ou dos estudos para abrir portas à criatividade.
O “ócio criativo” se dá, como explica De Masi, “quando uma pessoa trabalha, se diverte e estuda ao mesmo tempo, digo que ela está ‘no ócio criativo’.” Uma ideia defendida por ele há 30 anos e que ganha força hoje, quando empresas abrem espaço para poltronas e áreas de lazer permitindo que seus funcionários façam uma pausa na rotina, o que, na interpretação do sociólogo italiano, seria “para o ócio criativo” – um momento de estímulo à criatividade, peça fundamental que os funcionários aumentem sua produtividade e, por tabela, beneficiem aquela empresa.
No livro, Uma Simples Revolução*, lançado no Brasil pela editora Sextante em 2019, o sociólogo analisa as taxas de desemprego e defende o pensamento do economista Maynard Keynes: “trabalhar menos, para trabalharmos todos.” E, em sua obra mais recente, O Trabalho no Século 21*, faz uma reflexão como as relações de trabalho de desenvolveram ao longo dos séculos e o desenvolvimento do trabalho remoto impulsionado pela pandemia de Covid-19.
Domenico conversou com Vida Simples em sua última viagem ao Brasil
Em junho, o sociólogo italiano Domenico De Masi esteve no Brasil para participar do Congress on Brain, Behavior and Emotions**, realizado em Florianópolis. O congresso apresentou os principais avanços na área da neurociência e integrando profissionais de diferentes áreas do conhecimento. O pensador foi convidado a refletir sobre um mundo em constante transformação, principalmente no que diz respeito às relações de trabalho, e, ao mesmo tempo, que vive uma epidemia de pessoas deprimidas e ansiosas.
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Domenico De Masi defende que trabalharemos cada vez menos com o desenvolvimento das tecnologias e da inteligência artificial, mas argumenta que “as máquinas falharão em satisfazer as necessidades humanas de criatividade, estética, ética, colaboração e pensamento crítico.”
Conheça um pouco mais do pensamento de Domenico de Masi nesta entrevista exclusiva concedida à Vida Simples:
Vivemos em um mundo cada vez mais tecnológico e que vê o avanço da inteligência artificial, ferramentas que prometem às pessoas ter mais tempo livre. Porém, na prática, vemos cada vez mais pessoas com menos tempo livre, sofrendo de ansiedade, depressão e esgotamento. Como entender esta sociedade e qual caminho ela está seguindo?
Nossos tataravós viveram em média 400.000 horas e trabalharam 200.000 horas: metade de suas vidas foi dedicada ao trabalho. Hoje, vivemos em média 700.000 horas e trabalhamos 70.000 horas: dedicamos apenas um décimo de nossa vida ao trabalho. Na próxima década, nossa vida média chegará a 750.000 horas e as horas dedicadas ao trabalho serão de apenas 60.000. O progresso tecnológico produz máquinas eletromecânicas, digitais e de inteligência artificial que nos permitem produzir cada vez mais bens e serviços usando cada vez menos energia humana. Mas, durante os dois séculos da sociedade industrial (1750-1950), quando a maioria do trabalho era físico e manual, acostumamo-nos a trabalhar cada vez mais e agora muitos de nós não conseguem entender que a situação mudou completamente. Portanto, apesar de viverem em uma sociedade pós-industrial, onde grande parte do trabalho pode ser delegado às máquinas, eles continuam trabalhando compulsivamente, sofrendo de ansiedade, depressão e burnout. Como resultado, enquanto alguns se matam de excesso de trabalho, milhões de desempregados nos países ricos e bilhões de desempregados nos países pobres ficam sem emprego. Portanto, é preciso redistribuir o trabalho, como aconselhava o grande economista Maynard Keynes desde 1930: “trabalhar menos, para trabalharmos todos.”
Passamos por uma pandemia, muitas empresas adotaram o teletrabalho ou home office, mas para muitos, em vez de flexibilizar gerou um trabalho constante, sem hora para terminar, com o trabalhador disponível a qualquer momento. Existe um equilíbrio para isso?
O teletrabalho exige que o chefe atribua a cada funcionário uma quantidade precisa de trabalho a ser feito dentro de um período de tempo especificado com precisão. A quantidade de trabalho atribuído deve ser calculada com base nas horas contratuais. Esta é a organização por objetivos. Nenhum chefe pode atribuir mais trabalho do que pode ser feito nas horas contratuais. Se um patrão atribui mais trabalho do que o necessário, ele comete um crime; se um funcionário trabalha mais do que deveria, ele comete auto exploração.
Ao mesmo tempo, a pandemia também mostrou que é possível ter mais flexibilidade no trabalho, mais tempo livre e qualidade de vida. Qual foi o legado positivo da pandemia?
A pandemia foi um desastre histórico que causou milhões de mortes. Mas também permitiu que os trabalhadores refletissem sobre seu próprio destino e calculassem tanto o nível de exploração sofrido pelo empregador quanto a oportunidade de dedicar menos energia ao trabalho e mais atenção à meditação, à amizade, ao amor, à beleza, ao jogo e ao convívio.
O senhor fala muito sobre Smart Working, poderia definir essa expressão e exemplificar como ela pode ser aplicada na prática?
O Smart Working (trabalho inteligente) é como chamamos o teletrabalho na Itália. Significa trabalho feito fora da empresa e conectado à empresa via internet. Só pode ser aplicado quando o tipo de trabalho o permite: um barbeiro, por exemplo, não o pode fazer. Para o teletrabalho, tanto o trabalhador como a sua entidade patronal devem estar de acordo. E cada um deles pode retirar-se do teletrabalho se e quando o desejar.
Como o senhor acha que será o mundo do trabalho nos próximos anos? Teremos uma vida profissional e pessoal mais equilibrada? Viveremos em uma sociedade mais justa?
Acredito que trabalharemos cada vez menos horas porque as máquinas vão inutilizar muita energia humana. Vamos ‘tele-aprender’, ‘tele-trabalhar’, ‘tele-amar’ e ‘tele-desfrutar’. Por causa das máquinas, o conceito de privacidade tenderá a desaparecer; será quase impossível esquecer, se perder, se entediar, se isolar. No entanto, as máquinas falharão em satisfazer as necessidades humanas de criatividade, estética, ética, colaboração e pensamento crítico. Atender a essas necessidades sempre exigirá atividade humana.
Em 1995, o senhor falou pela primeira vez sobre “ócio criativo”. Muitos aplaudiram esse conceito e outros o criticaram, o que é normal. Alguma coisa mudou na sua concepção de ócio criativo desde 1995? É possível praticar o ócio criativo hoje?
Você participou do congresso “Brain” em Florianópolis que contou com a presença de 5.600 profissionais durante vários dias. Você acha que nesses dias os congressistas só trabalharam? Ou apenas estudaram? Ou eles apenas se divertiram? Eu acredito que eles fizeram todas essas três coisas ao mesmo tempo. Quando uma pessoa trabalha, se diverte e estuda ao mesmo tempo, digo que ela está “no ócio criativo “. O ócio criativo é um tipo de atividade ainda pouco estudada por sociólogos e psicólogos, mas que nos permite ficar à vontade, produzir ideias, trocar emoções, ampliar conhecimentos. Comparado há trinta anos, quando desenvolvi esse conceito, hoje ele finalmente está sendo falado em todo o mundo. A esta altura, as horas que cada um de nós dedica ao ócio criativo, mesmo sem perceber, são cada vez maiores. Mesmo nas empresas, áreas com bares e poltronas foram criadas para permitir que os funcionários façam uma pausa para o ócio criativo. Isso porque os empregadores perceberam que o ócio criativo estimula a criatividade necessária para que a empresa vença a concorrência. Infelizmente, porém, os trabalhadores ainda não perceberam quanta riqueza geram no tempo que passam ociosos criativamente. Resumindo: cada vez mais fazemos coisas que não sabemos se devemos definir como diversão, trabalho ou estudo. É uma parte cada vez maior da nossa vida que não está contratualizada, regulamentada, remunerada, no entanto, contribui cada vez mais para a nossa criatividade, para a nossa sensação de bem-estar e para o aumento do Produto Interno Bruto do País.
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**A repórter viajou a convite da organização do Congress on Brain, Behavior and Emotions
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