Fazer o que realmente gostamos é a melhor maneira de manter o colorido da vida e se sentir especial para si e para o mundo
Sabe aquela sensação de que a Terra para quando estamos na companhia de quem amamos? É essa paixão que as palavras não dão conta de explicar que Arthur Moreira vive assim que se senta ao piano. Ele dedilha as notas musicais com perfeição, sem se incomodar com o arrastar das malas ou o barulho das conversas cruzadas que tornam o silêncio impossível na Rodoviária do Tietê, em São Paulo. Sequer percebe os passageiros que chegam e partem a todo momento do maior terminal da América Latina, já que seus olhos e ouvidos estão mergulhados na música.
Fascinado pelos sons que extrai do piano, o goiano sente a alma se elevar de tal maneira que chega a se esquecer de detalhes tristes de sua história, como ter sido adotado aos 12 anos, fugido de casa aos 17 e ido morar em um prédio ocupado na região central da capital paulista. Ele estabelece uma conexão tão profunda com as melodias que é como se existissem no mundo só ele e o instrumento. “O piano é a minha casa. Se desse para morar dentro do piano, eu moraria”, Arthur confessou em uma reportagem exibida por um programa da TV Cultura.
Com seu jeito simples, vestindo camiseta, bermuda jeans e boné, ele sonha com o dia em que estará no palco de um estádio lotado, emocionando milhares de pessoas com a sua arte. O que mais impressiona em Arthur é que ele nunca pôs os pés numa escola de música. Tudo o que sabe aprendeu vendo vídeos e tocando os pianos que encontra em locais públicos. Ainda assim, emenda as notas de maneira harmoniosa e compõe canções mesmo sem conseguir passá-las para partituras – o que não o atrapalha em nada, já que elas estão escritas de forma nítida em sua mente.
A história de Arthur é uma fotografia perfeita da palavra talento, que não é um privilégio exclusivo dele ou de poucos. Todos nós temos. Só que às vezes está escondido, como um presente que recebemos em várias caixas, uma dentro da outra. Quando abrimos a última, esperamos dar de cara com uma revelação que transformará nossas vidas. Ansiamos pelo momento de ter aquele estalo que muda tudo, como acontece nos filmes.
Mas a estrada até vivermos do que “nascemos para fazer” é longa. Ela não termina quando descobrimos um talento. Não é como acertar os números premiados da loteria. Encontrá-lo é metade do caminho.
A outra é o esforço. Sem ele, mesmo quem tem talento não sai do lugar.
No livro Garra: o poder da paixão e da perseverança (Intrínseca), a autora Angela Duckworth, também professora de psicologia da Universidade da Pensilvânia, afirma que essa é a combinação que faz gênios e notáveis voar tão alto. “O talento é a rapidez com que as habilidades de uma pessoa aumentam quando ela se esforça”. Quando ambos caminham lado a lado, o sucesso é inevitável, porque o esforço apura a habilidade e a torna produtiva.
Em outras palavras, o talento é uma tarefa demorada e delicada, que não acontece da noite para o dia. Ela requer não só encantamento e paixão, mas também paciência para começar do zero, olhos atentos, vontade de fazer melhor a cada dia e muita prática durante toda a vida. Só assim é possível manter os movimentos da mão precisos para polir essa joia com maestria, como faz um lapidador. É aí que nossas aptidões ficam prontas para nos alçar à sonhada realização pessoal.
PRESENTES DISFARÇADOS
Não costumamos pensar muito em vocação ou dom quando está tudo certo em nossas vidas. Mesmo se não temos o “trabalho dos sonhos”, damos um jeito de encaixá-lo na nossa zona de conforto e seguimos. Mas é só surgir um vento mais forte, capaz de levar a nossa estabilidade para longe, que procuramos abrigo em alguma habilidade ainda não descoberta. Então tratamos de
tirar de dentro de nós as camadas que a encobrem para nos agarrarmos a ela como uma tábua de salvação.
A atitude mais sábia que podemos ter diante de uma crise não é encará-la como o fim do mundo, mas como uma embalagem feia e malfeita que embrulha um presente valioso. Quando abrimos o pacote, o susto é substituído pela surpresa boa de ganharmos algo novo que vem para enriquecer nossas vidas, como lições e ideias que nunca tivemos antes. “É o melhor momento para as pessoas saberem quais são os seus talentos e se reinventarem”, garante Mônica Portella, psicóloga e professora de psicologia positiva.
Descobrir um talento não esvazia as nossas possibilidades. Pelo contrário. Ele amplia os horizontes. Basta imaginá-lo como uma árvore. Embora seja única, é cheia de galhos nos quais estão distribuídos os nossos pontos fortes, que nos ajudam a desempenhar diferentes trabalhos ligados às habilidades naturais que temos. Segundo Mônica, cada um de nós pode ter vários
talentos que formam uma mistura única, como uma impressão digital.
O talento é uma tarefa demorada e delicada,
que não acontece da noite para o dia. Requer
não só encantamento e paixão, mas também
paciência e vontade de fazer melhor
Alguns de nós sabemos o que vamos fazer pelo resto da vida desde crianças. Outros precisam de ajuda especializada para encontrar esse tesouro interno. E essa busca é o começo de uma jornada de autoconhecimento que nos ensina a usar nossas forças para não ruirmos diante das mudanças que estamos vivendo e das que virão.
SEM MEDO DE MUDAR
A publicitária Michelle Schneider fala sobre como essas forças serão importantes daqui para a frente. Em um TEDx Talks, ela comenta que a inteligência artificial está levando ofícios à extinção, e em alguns anos vão restar empregos apenas para funcionários altamente qualificados.
Também diz que, pela velocidade das mudanças, o profissional do futuro vai ter cerca de cinco carreiras ao longo da vida.
Algumas ao mesmo tempo.
É aí que entram os nossos recursos emocionais. São eles que nos ajudam a descobrir novos talentos que funcionem como vias alternativas quando a principal é fechada, para que a gente não fique perdido e tenha aquela sensação de estar indo para um lugar estranho e sem nenhuma placa indicando um destino onde possamos nos sentir seguros. “Aprender, desaprender e reaprender. A gente tem que cada vez mais desenvolver a consciência humana. O profissional do futuro vai, sim, desenvolver habilidades externas, mas também as internas”, salienta Michelle.
A primeira delas é não se deixar levar pelo desespero. “A gente tem muito medo da angústia. Mas ela é igual à febre, que até 38 °C melhora a atividade do organismo. A angústia inicial é um sinal da nossa existência de que há um talento a ser desenvolvido, que existe algo a ser realizado diferente”, compara Marina Lemos, médica pediatra e vice-presidente da Ablae (Associação Brasileira de Logoterapia e Análise Existencial). Ela acrescenta que, em vez de atacar a angústia com remédios, devemos abraçá-la, pois grandes realizações podem nascer dela.
Por mais fortes que sejamos, há crises que nos fazem encolher feito passarinhos fora do ninho. “Esse nível de mudança a que nós estamos submetidos atualmente é difícil para qualquer um. Não gostamos de mudar porque a mudança pode ser altamente estressante. Mas o mundo é assim. Faz-se necessário desenvolver um capital psicológico positivo, que é uma mistura de resiliência, autoconfiança, otimismo e esperança”, enumera Mônica.
Pode não ser fácil, mas é possível.
Encontramos material para formar esse escudo de sentimentos em conversas, leituras, reflexões, terapia, meditação e outras práticas integrativas de saúde. Até que as mudanças se tornem confortáveis como um sapato macio, que nos permite andar confiantes mesmo em terrenos desconhecidos e que não são seguros.
QUANDO TUDO FAZ SENTIDO
Desde a adolescência, Flora Consentino tinha uma certeza na vida: queria se formar em educação física. Mas, quando chegou o vestibular, nada aconteceu como ela esperava. O curso não era valorizado e estava disponível em poucas universidades. Por isso, a garota adiou o sonho. Anos mais tarde, resolveu estudar jornalismo. Seu objetivo era sair da área de recursos humanos e ir para a de relações públicas na multinacional em que trabalhava. Embora fosse bem-sucedida, sentia que faltava algo.
Em uma viagem que fez para Ilhéus, na Bahia, conheceu uma fábrica de polpa de frutas. Ali enxergou a oportunidade de ter um negócio próprio e se sentir mais realizada. Voltou para São Paulo decidida a abrir uma distribuidora das polpas. Nessa época, ela trabalhava como jornalista, mas não era apaixonada pelo que fazia. Bastou o tempo de cuidar de todos os trâmites de abertura da empresa para largar o emprego e construir, sozinha, um empreendimento próspero. Para dar conta de tudo, Flora trabalhava cerca de 14 horas por dia.
Até que percebeu que estava trabalhando apenas para ganhar dinheiro e que não estava feliz. “Vou jogar tudo para o alto e seja o que Deus quiser”, decidiu. Então, depois de 12 anos, vendeu a empresa. E começou a fazer faculdade de educação física, aos 50 anos. Quando concluiu a graduação, especializou-se em reabilitação cardíaca. E finalmente encontrou nesse trabalho o sentido que procurava.
Não gostamos de mudar porque pode ser
estressante. Então, faz-se necessário desenvolver
um capital psicológico positivo, que é uma mistura
de resiliência, autoconfiança e esperança
O sentido é o pote de ouro no fim do arco-íris, que deixa de ser uma lenda quando fitamos a nossa essência. “O grande segredo é olhar para si. Não um olhar para se fechar em si mesmo, mas para descobrir as próprias potências. E, a partir daí, abrir-se para o mundo e responder ao que a vida pede”, fala Marina. Para que esse olhar esteja livre e cristalino, devemos abandonar a ideia de que somos vítimas ou esperar que soluções caiam do céu.
Essa tarefa se torna mais fácil quando estamos com a mente focada em qualquer situação. E também quando escutamos a nossa consciência, que é a bússola que nos orienta a tomar as melhores decisões. Para ouvi-la, é necessário silenciar os ruídos de fora e de dentro de nós, pois é na quietude que a direção que precisamos se desenha.
Por fim, é preciso ter a coragem de entrar no caminho que ela aponta.
O talento é uma fonte de realização ainda mais abundante quando está ancorado num propósito: é importante não somente para nós, mas também para o mundo.
“Aquilo que recebemos da vida, temos de frutificar. Não pode ficar só para nós, senão apodrece. Quando entendemos esse caráter de missão, percebemos o valor e o sentido da vida”, enfatiza Marina.
Quando realizamos o nosso propósito, somos revestidos de alegria, felicidade, saúde e senso de dever cumprido. Algo tão potente que não deixa esforços, reveses, decepções, lutas e sacrifícios nos abalar. É o que Flora sente. “A educação física salva vidas. As pessoas não têm ideia de como se exercitar faz bem”, acredita. Ver o progresso dos alunos é o combustível dela.
UM NOVO COMEÇO
Flora não teve medo de mudar de profissão nem de iniciar a faculdade mais tarde. Hoje dá aulas para alunos de várias idades, com problemas cardíacos ou não, que já têm um bom condicionamento físico ou que começam com dificuldade para caminhar 500 metros.
Assim como Flora, muitos de nós deixamos os nossos talentos adormecidos por que não achamos que é o momento de despertá-los, por medo de não dar certo ou simplesmente porque não damos bola para eles. É assim que muitas pessoas passam a vida começando coisas e as deixando pela metade.
Vivem se desencontrando de suas habilidades naturais, e o preço que pagam é não conseguir preencher o buraco que têm por dentro. “Tentamos, fracassamos e concluímos que batemos de cabeça no teto da possibilidade. Ou, talvez, depois de dar apenas alguns passos, mudamos de direção”, analisa Angela Duckworth.
O grande segredo é olhar para si. Não um olhar
para se fechar em si mesmo, mas para descobrir
as próprias potências. E, a partir daí, abrir-se para o
mundo e responder ao que a vida pede
Em vez de ficar perdido, chorando pelo leite derramado, sem nunca encontrar um talento, o melhor a fazer é recuperar a calma. Ela deixa a criatividade mais livre, nos ajuda a ter clareza sobre o que é importante para nós e possível no momento.
Também podemos encontrar pistas importantes nos nossos tempos de criança ou adolescente, como fez Flora.
Nossos talentos podem estar numa profissão que nos faz ir trabalhar sorrindo.
Mas também em ocupações nas quais o dinheiro não está envolvido, como trabalho voluntário ou no cuidado diário do jardim de casa. Quando essa busca, que pode ser breve ou longa e nos fazer cair e levantar, chega ao fim, recebemos um prêmio que faz tudo valer a pena. Uma paixão que se mantém forte como a primeira vez, não importa quanto tempo passe.
SIBELE OLIVEIRA encontrou o que realmente gosta de fazer. É na escrita que ela entende suas emoções, tem ideias e faz o que mais ama: contar histórias reais.
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