Durante a minha infância aprendi a costurar em ponto cruz, uma técnica de artesanato manual que exige muita paciência e habilidade, mas necessita apenas de três coisas básicas: as mãos, uma agulha e linha. Acontece que fui crescendo e as preocupações com outras questões da vida foram surgindo. A necessidade de ocupar meu tempo com estudos para ingressar na universidade se tornou preponderante e o bordado acabou tendo apenas uma curta e passageira experiência na minha vida.
Essa história é parecida com a de muita gente. Acabamos por deixar de lado a nossa criatividade e expandir nossas possibilidades artísticas, mas não só isso, de enxergar essas práticas também como trabalhos que podem gerar renda. Foi o caso de Paula Batistela, que iniciou no Direito, migrou para a Psicologia, mas o tempo de aprendizagem que mais passou em contato foi no artesanato.
A empreendedora iniciou muito cedo, aos 12 anos, com o incentivo de uma tia que bordava e da avó, que lhe ensinou crochê. Aos 15 já ministrava aulas de macramé em Piracicaba, no interior de São Paulo, mas a arte sempre foi um hobby, nunca passou pela cabeça de Paula que isso poderia ser a sua fonte de renda. Durante a faculdade de Direito, Paula conheceu Amanda Cassanji, que também havia abandonado seu sonho – cursar Filosofia – para ingressar no Direito, mais por necessidade de busca de trabalho do que por afinidade, me conta.
As duas, que são amigas desde que se conheceram na faculdade de Direito, em 2008, tomaram rumos diferentes e seguiram os caminhos comuns esperados pela sociedade: concluir uma graduação, buscar emprego na área de formação e consolidar uma carreira com cursos, aperfeiçoamentos e pós-graduações.
O reencontro
Trabalhar com Direito Criminal não era a área que mais afeiçoava Amanda, mas certamente é uma das que proporciona abertura no mercado e possibilidades de atuação profissional. Entre a advocacia e a prestação de serviços para empresas do setor privado, Amanda conta que os questionamentos sobre sua carreira e a área que havia seguido já não davam sustentação e propósito para o que ela buscava viver.
Foi aí que a artesã buscou terapia, arteterapia e outras ferramentas para lidar com as crises de ansiedade e os pensamentos que surgiam sobre sua vida profissional. Curiosamente, isso acabou por reaproximar Amanda e Paula, que havia concluído sua graduação em Psicologia, um dos motivos que fizeram com que a amiga buscasse apoio emocional e também dicas profissionais para lidar com essas questões.
E por que não utilizar o artesanato como ferramenta terapêutica? Foi o que Paula pensou naquele momento e Amanda logo abraçou a ideia com muito afinco e expectativa. “Depois do expediente, a gente se encontrava para fazer artesanato, vimos isso como uma possibilidade de salvação”, explica Paula, acrescentando que, embora as duas tenham combinado de se encontrarem todas as quintas-feiras, a sugestão logo foi expandida e as amigas se reuniam diariamente para praticarem artesanato.
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2016, o ano em que tudo mudou
Os encontros foram deixando aos poucos de se tornarem um mero espaço de lazer, hobby ou tratamento terapêutico e começaram a alçar novos voos, a partir de questionamentos do tipo “e se passássemos a trabalhar com artesanato?”. Amanda, que já vinha insatisfeita com seu trabalho atual despertou os desejos de adolescência de Paula, que sempre buscou no artesanato sua inspiração de vida, mas nunca enxergou nele como sua profissão.
Depois de muito planejamento financeiro e emocional, as duas passaram cerca de um ano conciliando seus trabalhos antigos com o sonho de transformar o artesanato em um negócio rentável que pudesse dar perspectivas de ganhar com aquilo e se dedicar integralmente à arte.
“Aquele cansaço de final de trabalho acabava, porque a gente colocava toda a energia pra focar no nosso trabalho [no artesanato]”, relembra Amanda.
Curiosamente, Paula e Amanda se conheceram em 18 de fevereiro de 2008 – ainda jovens, saindo da adolescência para a universidade – e fundaram o Vivendo da Nossa Arte em 18 de fevereiro de2016, oito anos depois, um negócio local de artesanato que expandiu suas portas para além das duas e hoje impacta diversas outras mulheres artesãs a desenvolverem sua arte e a precificarem os produtos, que, afinal, geram sustento e renda.
Revolução artesanal
Juntas, elas também tocam o Revolução Artesanal, um movimento coletivo feito por muitas mãos, agulhas, máquinas, conhecimento e criatividade que dão apoio e sustento a outras mulheres do ramo. A ideia era que a presença do artesanato não ficasse somente presa à iniciativa e se expandisse para cooperativas e artistas individuais, “a gente pensou, poxa, nós podemos sim democratizar esse conhecimento para outras mulheres“, explica Amanda.
Ela comenta que a ideia é buscar a valorização, o prestígio e o reconhecimento da profissão de artesã, regulamentada desde 2015 pela Lei 13.180, uma conquista importante para a classe ter sua atividade profissional reconhecida pelo país. “Hoje está muito mais democrático, a gente vê meninos praticando artesanato sem juízo de valor e gênero”, acrescenta Paula, relembrando as marcas de gênero do trabalho artesão, muito voltado às mulheres e instituído inclusive nas escolas femininas como um instrumento de preparo para as futuras donas de casa algumas décadas atrás.
Em “Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens”, a intelectual Nísia Floresta explicita justamente o caráter machista da educação brasileira no século XIX, ao mesmo tempo em que reconhece a presença das aula de artesanato nas instituições de ensino como uma forma também de emancipação das mulheres da época, que podiam, por meio da educação, adquirir um senso mais crítico e maiores inserções na sociedade.
“A gente entende o artesanato também como algo político“, defende Paula, delimitando as necessidades e a relevância do artesanato em um mundo que se apresenta tão complexo. As duas, apesar de apostarem no empreendedorismo como o motor de transformação da vida de muitas mulheres, explicam que ele é sempre voltado para um lado humanizado, artesanal, já que é uma atividade feita com as mãos, exige trocas simbólicas, conversas sobre técnicas, amor, afeto e muita dedicação, algo que não exige só cálculos de produção, métricas de alcance e expectativas de mercado.
O projeto já organizou a Semana de Artesanato com Propósito, que reuniu quase 2.000 pessoas, além de facilitar oficinas, cursos e palestras sobre o tema. A proposta é justamente democratizar um conteúdo descomplicado para artesãs que desejam empreendedor no artesanato e obterem fonte de renda através dele, facilitar através do trabalho artesanal o poder das mulheres, fortalecendo suas confianças sobre si mesmas e criar uma comunidade de artesãs empreendedoras, visando a sororidade e o networking.
A iniciativa também possui o seguinte manifesto, voltado à demarcar o papel político e de empoderamento das mulheres artesãos:
Buscamos espaço para a valorização, reconhecimento, empoderamento e prestígio da profissão artesã e do ramo artesanal como forma de geração de renda.
Através da conexão afetuosa de nossas cabeças e mãos, produzimos peças únicas que contam histórias e materializam subjetividades.
A Revolução Artesanal é um movimento feito por mulheres que se orgulham de ser artesãs empreendedoras.
Eu faço parte da Revolução Artesanal!
Você faz parte da Revolução Artesanal!
Nós fazemos parte da Revolução Artesanal!
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