Passeando pela livraria outro dia, reparei que a prateleira de destaques trazia alguns títulos sombrios: A Crise da Democracia Liberal, Como as Democracias Morrem, Como a Democracia Chega ao Fim.
Essas capas são reflexo do que se anda dizendo nas salas de aula, nos botecos e nos debates de televisão: será que a democracia está passando por uma crise no mundo? Estaremos nós próximos de ver o fim desse regime de governo? O que isso quer dizer?
Para alguém como eu, que acompanha a política desde a infância, esse debate é familiar (e preocupante). Na faculdade de Ciências Sociais, há dez anos, já se debatia a crise dessa forma de governar.
A mesma preocupação aparecia no curso de jornalismo, profissão tão dependente da democracia para existir. Mas nós, os que respiramos e transpiramos política, não somos a maioria.
Perguntei-me se a maioria das pessoas que passa por aquela prateleira na livraria entende qual é a importância da democracia. E por que o diagnóstico de que ela estaria morrendo é tão preocupante.
Temos o privilégio de confundir as palavras “democracia” e “política”, mas elas não necessariamente são sinônimos.
A história da democracia
A democracia nasceu há mais de dois mil anos, na Grécia – mais precisamente em Atenas. Quando surgiu, essa filosofia de governo era apenas mais uma em meio a monarquias, tiranias, oligarquias. E ela não era exatamente bem vista.
Filósofos como Aristóteles e Platão não viam grandes vantagens em dar o poder ao povo. Pelo contrário, temiam que tal maneira de conduzir uma cidade pudesse levar ao caos.
Apesar dessa desconfiança, a democracia se tornou o regime de governo sob o qual vive 56% da população mundial (contra 20% em 1985), de acordo com dados do Polity Project.
Sem dúvida, a democracia trata-se de um grande sucesso. Antes, era o regime de apenas uma cidade grega, que não tinha mais do que centenas de milhares de cidadãos. Hoje, ela é um valor mundial, embora esteja numa aparente crise.
Por que será que a democracia sobreviveu durante tanto tempo? Winston Churchill, primeiro-ministro do Reino Unido, disse certa vez que “a democracia é a pior forma de governo, exceto por todas as outras”.
Além do óbvio senso de humor do político britânico, há nessa frase algumas ideias importantes, que ajudam a explicar o simultâneo sucesso e a decepção que a democracia provoca.
Por que a democracia faz tanto sucesso?
Desde seu surgimento na Grécia Antiga, essa forma de conduzir os assuntos públicos mudou bastante, assim como o fez o mundo. Em vez de viverem em cidades, as pessoas hoje moram em países, com milhões de habitantes.
No lugar de uma economia limitada às distâncias que podiam ser percorridas no lombo de animais e em barcos, temos hoje um fluxo ininterrupto de mercadorias, informações e pessoas.
Também a democracia passou por essas mudanças. Antes, ela era um sistema que se baseava na possibilidade de participação direta de todos os cidadãos atenienses nas decisões da cidade.
Hoje, ela é representativa, ou seja, o povo vota e elege pessoas especializadas em lidar com o mundo da política em nome do coletivo. Seria impossível transpor o modo de governar de Atenas para o mundo em que hoje vivemos, muito mais populoso, com relações políticas, econômicas, sociais e internacionais mais complexas e imprevisíveis.
Mas uma ideia central é o ponto de ligação que sustenta essa viagem de dois mil anos que a democracia fez. Nós e os atenienses temos em comum o princípio de que a melhor maneira de existência política de um povo é aquela em que todos têm liberdade para pensar, expressar suas ideias, agir e participar da maneira que preferirem.
Liberdade política é a base da democracia
Herdamos da antiguidade a liberdade política. E, apesar das diversas diferenças, isso é o que sobreviveu em nossas democracias. Gosto muito da formulação da filósofa italiana Nadia Urbinati, professora na Universidade de Columbia (EUA).
Baseada em autores clássicos da política, ela diz que a liberdade política é a base da democracia, seja ela antiga, moderna ou contemporânea. O que isso quer dizer?
Que uma democracia sempre garante que todos os cidadãos tenham o direito e as condições para atuar politicamente, da maneira que acharem melhor.
Uma das consequências disso é que os cidadãos sempre têm a possibilidade de discutir, conversar e expor suas opiniões, na esperança de que possam influenciar a tomada de decisão.
Para que exista a democracia, é preciso que exista o debate, a troca de ideias e um embate saudável entre as diferentes propostas para a sociedade.
A democracia é governo que nunca está acabado. Não importa a decisão, ela sempre pode ser modificada
Troca de ideias promove melhorias
Talvez por isso os governos autoritários tentem impedir que as pessoas possam conversar livremente e restrinjam a circulação de ideias. As ideias são perigosas porque podem convencer as pessoas e convencê-las de que mudar é necessário.
Chegamos aqui ao segundo elemento essencial de qualquer democracia: a possibilidade de mudança. Urbinati também diz que, nas democracias, nenhuma decisão é eterna. Faz todo sentido.
Se é importante poder trocar ideias, é importante também que exista a possibilidade de mudarmos de ideia. Mesmo que nos esforcemos para tomar decisões 100% racionais, algumas coisas podem mudar: podemos conseguir informações que não tínhamos, aprender coisas novas.
A sociedade que toma uma decisão não é a mesma 5 ou 10 anos depois. É por isso que as democracias dão tanto valor para consultas periódicas ao povo, como as eleições.
Pelo mesmo motivo é essencial que exista uma imprensa comprometida: o jornalismo mostra aos cidadãos as novidades da sociedade, as mudanças, e informa como os governos e os representantes estão se saindo.
A democracia não é perfeita
Mas, como o próprio Churchill admitia, ela não é perfeita. Nem sempre o povo consegue influenciar as decisões na política, algo frustrante. Os políticos podem acabar se isolando dos seus eleitores, tornando-se “profissionais” (como diria o sociólogo alemão Max Weber), mais preocupados em garantir seus desejos do que os da população.
A posição social pode dar mais voz a alguns do que a outros, distorcendo a democracia e deixando-a mais parecida com uma aristocracia. Tudo isso é verdade.
Como também é verdade que a democracia não é perfeita. E isso é muito frustrante. Por que não conseguimos “resolver” os problemas da política? Por que parece que sempre estamos lutando em vão?
Mais uma vez, quero recorrer a Nadia Urbinati. Para ela, a democracia é um tipo de governo que nunca está “acabado”. Ou seja: não importa qual decisão seja tomada, ela sempre pode ser modificada.
A democracia se fortalece na reinvenção
Não há uma fórmula mágica que leve a um mundo ideal. Isso não existe em nenhuma área de nossas vidas e não é diferente na política. Mas até por isso a democracia é fascinante. Ela permite acompanhar essa mutação constante.
Se nós somos seres sempre em construção, a sociedade não poderia ser diferente. Todos os dias temos de lutar para sermos fiéis a nossos valores, para defender o que é certo. E temos de estar dispostos a pensar em que país queremos, como queremos que ele seja.
Por isso, a democracia nunca será perfeita. Ela é como nós. É essencial que entendamos isso para perceber que ela precisa de cuidados e de atenção constantes. Precisa ser aperfeiçoada, revista e arrumada, para que seu princípio essencial, a liberdade, seja sempre preservado.
Foi assim que ela se tornou uma ideia milenar, apesar de suas falhas. Por esse motivo, preciso discordar dos diagnósticos catastróficos dos livros destacados nas pratelerias das livrarias.
A força da democracia está na reinvenção. Ela não pode morrer e sumir para sempre porque nasceu de um anseio tão antigo quanto a humanidade: o de conciliar a liberdade com a necessidade de viver em comunidade. Enquanto existir a humanidade, existirá também a alma da democracia.
Sobre a Série Nossas Questões
A SÉRIE NOSSAS QUESTÕES é uma parceria entre a Vida Simples e o Me Explica, site de jornalismo explicativo fundado em 2013 por Diogo Antonio Rodriguez. Durante seis edições, iremos destrinchar temas importantes relativos ao viver junto: democracia, direitos civis, direitos humanos, justiça, igualdade e liberdade de expressão.
DIOGO ANTONIO RODRIGUEZ é formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Jornalista há 10 anos, também deu cursos sobre a importância da política para todos, na Unibes Cultural e na Virada Política, ambos em São Paulo. Em 2013, criou o site Me Explica, para tornar as notícias mais acessíveis.
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Conteúdo publicado originalmente na Edição 203 da Vida Simples
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