Saudade. Ah, uma palavra tão nossa… tão brasileira. Podemos até tentar traduzi-la para outros idiomas, mas o sentimento que ela representa é único. “I miss you”, no inglês, passa longe de expressar seu significado. “Te extraño” soa de forma muito curiosa e bonita e tem seu charme no espanhol, mas não carrega o mesmo peso.
Quando falamos dá até vontade de abrir um pequeno sorriso, mas os olhos podem se encher de lágrimas. Saudade é também uma palavra que está intrínseca à construção da música brasileira, independente do gênero musical ou época. Parece que desde os primeiros sons que os indígenas produziram nessa terra, desde os primeiros ritmos e batuques que vieram da África, ela já estava aqui.
Regente titular do Grupo de Música de Câmara da PUC-Campinas (Pontifícia Universidade Católica de Campinas), Moisés Cantos explica que a presença da palavra e o do sentimento na música popular brasileira está diretamente ligada à formação do país – resultado da herança cultural indígena, africana e da colonização, além dos momentos políticos que moldaram a identidade brasileira ao longo da história.
“O fato de termos sido, em determinados momentos, deixados sozinhos para nos virarmos enquanto país, criou características só nossas. Essa paixão que temos enquanto povo, essa intensidade, é algo que foi moldado em nós ao longo do tempo. E é claro que isso influencia tudo o que fazemos, inclusive a nossa música.”
Seja na música ou na vida, a saudade às vezes se transforma em nostalgia. Às vezes em melancolia. No entanto, sempre de forma sensível e intensa. Para refletir sobre o tema em uma viagem para além do amor romântico, a Vida Simples traz dez músicas sobre esse sentimento e suas variações que, geralmente, nos bagunçam por dentro. Mas, como diz Caetano Veloso: “Saudade até que é bom, melhor que caminhar vazio.”
Milton Nascimento – “Fazenda”
“Água de beber, bica no quintal
Sede de viver tudo
E o esquecer era tão normal
Que o tempo parava
E a meninada respirava o vento
Até vir a noite e os velhos falavam coisas dessa vida
Eu era criança, hoje é você e, no amanhã, nós.
[…]
Tinha sabiá, tinha laranjeira, tinha manga rosa
Tinha o sol da manhã
E na despedida, tios na varanda, jipe na estrada
E o coração lá.”
Assinada por Nelson Ângelo, a canção traz o encontro entre saudade e nostalgia. Lembranças bonitas de momentos que não voltam mais. Quem tem família em cidades do interior talvez se identifique um pouco mais, principalmente se for de Minas. Quando visitamos esses lugares depois de algum tempo, tudo está diferente, mas a sensação é de que nada mudou.
Os pássaros, as árvores, a comida, o cheiro, o carinho, os costumes, o sotaque, a calmaria. Parece que o tempo parou. Tudo te abraça e acolhe. Depois de passar alguns dias, vem a despedida e a volta para a casa atual. É como chegar em um primo mais novo e falar: “Eu era criança, hoje é você e, no amanhã, nós.”
Nelson Gonçalves – “Naquela Mesa”
“Naquela mesa, ele juntava a gente
E contava contente o que fez de manhã
E, nos seus olhos, era tanto brilho
Que mais que seu filho, eu fiquei seu fã
Eu não sabia que doía tanto
Uma mesa num canto, uma casa e um jardim
Se eu soubesse quanto dói a vida
Essa dor, tão doída, não doía assim.”
Talvez o samba seja o gênero musical que mais expressa a saudade em suas letras, melodias, harmonias e ritmos. Ele e seus tantos subgêneros. O bandolim desta música entrelaçado à voz de Nelson Gonçalves arrepiam. Ela foi escrita por Sérgio Bittencourt em homenagem ao pai, Jacob do Bandolim – um dos principais nomes do chorinho.
A canção traz a saudade e a ausência que se manifestam nos pequenos hábitos do dia a dia. Um cantinho da casa, um objeto, um mínimo detalhe na rotina ou uma lembrança que vem do nada. A pessoa pode ter partido, mas ainda vive em algo, nem que seja somente dentro da gente. E só conhecemos essa dor quando ela chega.
A música “Espelho”, de João Nogueira, trilha o mesmo caminho de narrativa.
Chico Buarque – “Meu Caro Amigo”
“Muita careta pra engolir a transação
E a gente tá engolindo cada sapo no caminho
E a gente vai se amando que, também, sem um carinho
Ninguém segura esse rojão!
[…]
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
A Marieta manda um beijo para os seus
Um beijo na família, na Cecília e nas crianças
O Francis aproveita pra também mandar lembranças
A todo o pessoal, adeus.”
Parceria de Chico Buarque e Francis Hime, a música nasceu em 1975, durante a ditadura militar. A canção foi enviada por Chico para o dramaturgo Augusto Boal, que estava exilado em Lisboa, Portugal, depois de ser preso e torturado pelos militares no Brasil. Ele morreu em 2009. Como legado, deixou o Teatro do Oprimido.
Meio carta, meio música. Saudades e notícias em forma de canção. Quantas separações o regime autoritário provocou entre quem se exilou e quem ficou? Quanta saudade foi gerada e transformada em música.
Por aqui, havia muita luta, futebol, samba e rock’n’roll. Também muito amor para “segurar o rojão”. Na despedida da carta, Marieta Severo, atriz e ex-esposa de Chico, manda um beijo para Augusto e família. Francis Hime também. Diante da distância, quem estava longe pôde se aproximar por meio da música.
Gilberto Gil – “Eu Vim da Bahia”
“Tem meu chão, tem meu céu
Tem meu mar
A Bahia que vive pra dizer
Como é que faz pra viver
Onde a gente não tem pra comer
Mas de fome, não morre
Porque na Bahia tem mãe Iemanjá
De outro lado, o senhor do Bonfim.
[…]
Eu vim da Bahia
Mas algum dia eu volto pra lá.”
Já trouxemos anteriormente “Back in Bahia” quando falamos sobre canções do Gilberto Gil que nos ajudam com reflexões para diferentes momentos da vida. Música que, inclusive, também expressa saudade. Desta vez, outra composição do artista, que está a todo vapor com a turnê de despedida “Tempo Rei” pelo Brasil.
O sentimento de saudade descrito por Gilberto Gil em “Eu Vim da Bahia” se parece com o transmitido na música “Fazenda”, de Milton Nascimento. A saudade da terra natal acompanhada da afirmação consciente de que um dia vai voltar. Independente do motivo da distância, o nosso lugar estará de portas abertas para nos receber. Principalmente quando a saudade apertar.
Moacyr Luz – “Saudades da Guanabara”
“Eu sei…
Que o meu peito é lona armada
Nostalgia não paga entrada
Circo vive é de ilusão
Chorei…
Com saudades da Guanabara
Refulgindo de estrelas claras
Longe dessa devastação.
[…]
Brasil…
Tira as flechas do peito do meu Padroeiro
Que São Sebastião do Rio de Janeiro
Ainda pode se salvar.”
Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro e Moacyr Luz: três nomes de peso da música brasileira. A canção, lançada em 2000, fala sobre a nostalgia de um Rio de Janeiro que, na visão dos compositores, já estava por um fio naquele ano. A Cidade Maravilhosa que, apesar das belezas naturais, da cultura de rua e do seu povo, agonizava.
Passados 25 anos, cinco ex-governadores do estado foram presos – a maioria já está em liberdade. Outros tantos líderes políticos envolvidos em corrupção e investigações. A música de Moacyr Luz é quase que um grito de desespero, mas também de esperança, para que alguém salve o Rio de Janeiro. Esperança e desespero movidos por saudade, nostalgia e indignação.
BK e Evinha – “Cacos de Vidro”
“No domingo eu li sua carta imensa contando tudo
A primeira vez que eu soube o que pensa, soube de tudo
E fiquei como quem não vive no mundo
E daí esse meu silêncio profundo
Eu senti que a tristeza ia chegar e mudar
Ia tomar o meu coração.
[…]
Apesar do coração ainda tô vivo
Nunca vi tanto poder em cacos de vidro
Já tá passando a chuva, agora é só o sereno
Eu posso ser a cura já que sou o veneno
Eu não tô me explicando, eu tô me entendendo
Isso que tu não entende.”
Chegou a hora de falar da saudade causada por um amor romântico. Não apenas da falta, mas também do processo de superação após um rompimento.
A música do rapper BK, que tem o sample feito com base na faixa “Espera pra Ver”, da cantora Evinha, de 1971, mostra como a música brasileira é ampla e conecta gêneros e gerações. O álbum “Diamantes, Lágrimas e Rostos para Esquecer” (2025) também conta com samples de músicas de Milton Nascimento, Djavan e Trio Mocotó.
A canção nos faz mergulhar por um luto pós-término. Aquele processo de resignar momentos. Olhar o relacionamento que passou com distância física e emocional para tentar seguir em frente. Porque apesar do coração, ainda estamos vivos. Lidar com a saudade para ver a chuva se transformar em sereno. Um dia faz sol.
Metá Metá – “Obatalá”
Agora, peço licença para um texto em primeira pessoa. Essa música me traz uma tempestade de sentimentos que até hoje não consigo entender plenamente. Talvez nem precise. É um pouco de saudade, nostalgia, alegria e melancolia. Acho que pelos tantos momentos que ela me lembre. Independente das sensações, acalma meu coração.
É interessante pensar como uma música instrumental ativa tantas sensações. Fiz questão de perguntar sobre esse tema durante a entrevista com Moisés Cantos. Ele afirmou que toda a estrutura de uma música, e não somente a letra, interfere na forma que sentimos cada canção. A melodia está diretamente ligada às emoções. A harmonia nos toca na razão. O ritmo, por sua vez, aciona os sentidos e desperta o corpo.
Acho incrível como Juçara Marçal, com um vocal lindo sem letra, e os músicos Kiko Dinucci e Thiago França nos instrumentos de corda e sopro, respectivamente, conseguem passar tantos sentimentos em uma só música. Para mim, quase oito minutos de um mantra.
Zeca Pagodinho – “Minha Fé”
“Eu tenho um santo
Padroeiro, poderoso
Que é meu Pai Ogum
Eu tenho…
[…]
Por isso que a vida que eu levo é beleza
Apesar das tristezas,
Só vivo a cantar, cantar
Cantando transmito alegria
E afasto qualquer nostalgia
Prá lá, sei lá.”
Em “Minha Fé”, Zeca Pagodinho canta sobre uma nostalgia não tão boa assim. Aquela que quando aparece pode se transformar em uma tristeza que insiste em não ir embora. A composição é de Murilo de Oliveira, mais conhecido como Murilão, sambista também do Rio de Janeiro.
Como receita para enfrentar esse sentimento, os dois mostram um caminho característico do samba, sempre permeado pelo fazer musica e pelas religiões de matriz africana.
João Gilberto – “Chega de Saudade”
“Vai minha tristeza e diz a ela que
Sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece
Que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade
A realidade é que
Sem ela não há paz, não há beleza, é só tristeza
E a melancolia que não sai de mim
Não sai de mim, não sai.”
Vinícius de Moraes e Tom Jobim nos presentearam com a composição. João Gilberto, por sua vez, com o arranjo em seu violão tocado de forma única. A primeira versão da música, lançada em 1958, está na voz inesquecível de Elizeth Cardoso. De lá para cá, incontáveis versões foram gravadas. Com esse clássico da bossa nova, voltamos para o amor romântico. Aquela saudade quase insuportável da pessoa amada.
Tristeza e melancolia tomam conta na tentativa de preencher uma ausência que dói quase que fisicamente. Caso ela retorne, aí sim a vida talvez volte a ter o mínimo de sentido entre tantos abraços, beijinhos e carinhos para “acabar com esse negócio de viver longe de mim”. Ela retornar ou não neste caso nem importa. Às vezes, precisamos de músicas assim só para ajudar a sofrer mesmo.
João Nogueira e Paulo César Pinheiro – “Um Ser de Luz”
“Mas aconteceu um dia
Foi que o menino Deus chamou
E ela foi pra cantar
Para além do luar
Onde moram as estrelas
A gente fica a lembrar
Vendo o céu clarear
Na esperança de vê-la, sabiá
Sabiá…
Que falta faz tua alegria
Sem você, meu canto agora é só melancolia
Canta, meu sabiá, voa, meu sabiá
Adeus, meu sabiá, até um dia.”
Voltamos à saudade gerada a partir da morte. Em 2 de abril de 1983, o Brasil foi impactado pela partida precoce de Clara Nunes, aos 40 anos. Para fechar a lista, João Nogueira, Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte juntos em uma linda homenagem póstuma para a “Sabiá”, como a cantora ficou eternizada.
Toda a sensibilidade em uma letra que reflete aquele momento em que simplesmente olhamos para o céu na esperança de que a saudade clareie. Um olhar perdido na tentativa de ver, ouvir ou sentir alguém que já não está mais nesse plano. Ao mesmo tempo, a ficha cai e o que resta é dar adeus. Muitas vezes com música.
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