Em março de 2022, Vida Simples publicou em sua edição 229 a série “De olho no futuro”, com o texto O que esperar do trabalho do amanhã?. O farol apontava para direções que pediam atenção profunda e davam clara ideia do que está por vir. Entre as mudanças, aumento do home office (trabalho remoto), gestão baseada na confiança e necessidade de um constante aprimoramento profissional.
Agora, depois do trauma coletivo imposto pelo coronavírus, que, na prática, continua a circular por aí, e ante uma lenta recuperação econômica, é hora de se debruçar novamente sobre as questões trabalhistas. Afinal, como foi retornar ao trabalho, quais as sequelas mais visíveis e o que a gente aprendeu depois de tudo isso?
Ou mais ainda: entre todo o mal que causou mundialmente, há pontos positivos que a pandemia trouxe às formas de trabalho? Ou apenas uma adaptação do modus operandi, sem alterar sua essência?
A princípio, como ressalta Adriana Marcolino, socióloga no Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos, um aspecto importante é que foi acentuado o debate em torno de todas as formas de trabalho, assalariado e não assalariado.
E muita gente passou o período de isolamento da pandemia reavaliando, por exemplo, a importância de estar em casa com a família e como o trabalho remunerado costumava impedir isso por ocupar muito do tempo de cada um.
A ilusão do ‘novo normal’
Mas uma mudança na essência, de fato, não houve. “Infelizmente não foi usada a oportunidade de se fazer uma transformação profunda na forma como a gente organiza o trabalho remunerado na nossa sociedade“, aponta a especialista.
Cesar Sanson, professor de Sociologia do Trabalho na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), compartilha dessa opinião.
Ele conta que a essência da relação capital versus trabalho não se alterou, e a condição do trabalho até piorou. “Na sociedade do trabalho, o ‘novo normal’ é, na verdade, o ‘antigo normal’.
O desemprego aumentou, a desregulação de direitos não foi interrompida e a precarização do trabalho se acentuou.
O fato incontestável é que o capital rapidamente se ajustou aos danos da pandemia e dela tirou proveitos na perspectiva de ajustes aos seus interesses.
Mesmo o home office, do qual muitos trabalhadores gostam, apenas é concedido quando o capital percebe que esse modelo aumenta ou não interfere nos seus ganhos.”
Renda básica universal é uma proposta de solução
Assim sendo, são enormes os desafios sociais e econômicos na área trabalhista nesse cenário pós-pandêmico. E precisamos pensar em soluções imediatas.
Para o sociólogo, por muito tempo se pensou que caminhávamos para uma civilização inclusiva, na qual o trabalho assalariado – via um emprego para todos – desempenharia papel central na distribuição de renda.
“Hoje, nos damos conta de que o assalariamento é cada vez mais escasso e precário. A precarização no trabalho deixou de ser exceção e se tornou regra.”
E o que aconteceu durante os anos de pandemia foi, como destaca Adriana, a percepção de que no Brasil as medidas chegaram tarde demais, foram insuficientes ou tinham um desenho de política pouco adequado para as necessidades do país.
Por isso que ressurgiu com força, como atestam os dois sociólogos, a proposta da Renda Básica Universal. “Creio que o futuro da sociedade do trabalho passa por um salário social. Ou seja, um pagamento mensal às pessoas que não são absorvidas pelo mercado de trabalho. Esse salário social poderia ser combinado a atividades socialmente úteis à sociedade”, explica Cesar.
O paradoxo do home office na vida dos trabalhadores
Autonomia e flexibilidade são dois pontos que entraram com tudo no radar das pessoas nos últimos dois anos. Em uma pesquisa recente feita pela rede social profissional Linkedln, 78% dos profissionais entrevistados garantem que, desde a pandemia, passaram a necessitar de mais flexibilidade no trabalho.
No último ano, inclusive, 30% deles teriam deixado o emprego por falta de políticas flexíveis. A verdade é que as pessoas gostam da flexibilidade de poder ir ao escritório uma ou duas vezes por semana, como vem sendo em algumas empresas.
Ou trabalhar remotamente de modo integral, abrindo assim a possibilidade de irem viver em lugares que oferecem melhor qualidade de vida.
O home office, no entanto, é um paradoxo em si próprio. Por um lado, permite que a pessoa esteja mais tempo em casa, não gaste horas preciosas com locomoção e possa cuidar mais de atividades como educação, lazer e necessidades domésticas.
Por outro, se o trabalho em casa não é regulado, tende a ser mais estafante. Isso leva o trabalhador a executar tarefas tarde da noite ou aos finais de semana para cumprir prazos.
“Com o home office, a primeira questão que temos observado nas pesquisas qualitativas é de que a jornada total de trabalho aumentou. Além disso, há uma série de custos pagos pelos trabalhadores, como luz, internet, equipamentos e mobiliário. Não tem uma regra de quem custeia isso”, enfatiza Adriana Marcolino.
Em seguida ela complementa: “O home office pode ser uma modalidade de trabalho interessante, desde que haja um combinado entre trabalhadores, empregadores e sindicatos para garantir que esse trabalho não resulte em intensificação da jornada de trabalho e custos adicionais para os trabalhadores”.
Saúde mental e equilíbrio no trabalho
Na questão trabalhista, a pandemia provocou medo e pânico, já que muitos perderam seus empregos ou sentiram a ameaça de perdê-los.
E, como mostram os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), isso somado ao temor da doença e da morte afetou a saúde mental de muitos.
O home office é um paradoxo em si. Se por um lado permite que a pessoa esteja mais tempo em casa, por outro tende a ser mais estafante se não é regulado
O respeito à vida dos trabalhadores, como destaca a socióloga Adriana, deve estar acima de qualquer outra questão, acima do lucro, dos prazos de entrega e dos contratos.
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Home office empobrece a vida social
Já o psicólogo clínico Artur Scarpato ressalta que vivemos agora uma etapa menos aguda da pandemia, e alguns efeitos na saúde mental são evidentes, enquanto outros ficarão mais claros com o tempo.
O próprio formato home office, como evidencia o especialista, resultou em queixas como diminuição da conexão com os colegas e uma maior dificuldade de desligar do trabalho.
Evidentemente, essa flexibilização do trabalho remoto é excelente por favorecer estar próximo da família e amigos, tal como ter mais tempo para exercícios físicos e hobbies. Mas, enquanto algumas pessoas lidam bem com maior isolamento social, outras sofrem mais as consequências da menor interação.
“Trabalhar de casa leva a um empobrecimento da vida social, a qual tem uma função importante na troca de experiências, na regulação emocional e na sensação de pertencimento. Trabalhar presencialmente favorece o sentimento de conexão e pertinência grupal, importante para a saúde mental.”
“A experiência do home office é diferente também de acordo com as condições de moradia de cada pessoa. Aquelas que vivem em locais compartilhados e não têm uma mobília adequada para trabalhar, têm mais dificuldades no home office do que aquelas com uma estrutura mais favorável”, diz.
Modelo híbrido: uma boa opção entre os desejos
As pesquisas mais recentes mostram que apenas uma minoria deseja voltar integralmente ao trabalho presencial. Sobre isso, o psicólogo reforça que o modelo de trabalho híbrido, com alguns dias no escritório e outros em casa, seria o melhor dos dois mundos.
Dessa forma, para construir uma rotina de trabalho mais saudável, é essencial encontrar um equilíbrio entre vida pessoal e profissional.
Mesmo trabalhando de casa, é importante saber a hora de desligar do trabalho, fazer pausas, ter tempo de lazer e vida social.
“Home office não pode significar isolamento social e viver somente para o trabalho, mas aproveitar a liberdade geográfica para conciliar obrigação com conforto. Além disso, balancear tempo de esforço com tempo de relaxamento e diversão, crescimento pessoal com crescimento profissional”, diz Artur.
Sejamos chefes de nós mesmos
Ele acrescenta ainda, no caso de trabalhos home office ou híbridos, a necessidade de se criar limites com o tempo dedicado. Também alternar entre momentos de atenção focada na tela do computador e pausas com foco de atenção mais aberto e relaxado.
Outra dica importante é criar intervalos para se exercitar um pouco, ouvir música ou fazer um hobby. E estar sempre atento aos sinais de desânimo, irritação e ansiedade, alertas que precisam de atenção.
“Organizar a vida a partir da centralidade do trabalho é redutor da condição humana. A família, o tempo livre, os amigos são muito importantes. A existência exige mais frugalidade e simplicidade“, diz. Eis um trabalho essencial a ser construído dia após dia, permanentemente.
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GUSTAVO RANIERI é jornalista e deixou em 2016 o modelo CLT e presencial de trabalho para desfrutar de modo integral a vida com a família.
Conteúdo publicado originalmente na Edição 245 da Vida Simples
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