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O olhar do viajante no dia a dia
Kevin Noble | Unsplash
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Podemos trazer a curiosidade, o interesse e a vontade de conhecer lugares e pessoas para a nossa rotina, mesmo quando não estamos turistando por aí. Assim, a vida  fica mais alegre e criativa

Era uma manhã comum, de um dia comum. Saí de casa em direção ao parque para fazer meu exercício matinal. No meio do caminho, me deparei com um prédio bonito, cheio de pequenos vasos de plantas que transformavam a estrutura em uma verdadeira obra de arte. Não lembrava de já tê-lo visto por ali e imaginei que só poderia ser uma construção recém-inaugurada. Perguntei ao porteiro, que, rindo respondeu que o lugar era daquele jeito havia mais de 15 anos. Intrigado, segui em frente, e, no meio da corrida, uma árvore gigante com flores roxas e belas me chamou a atenção. Um pensamento imediato foi: “Não é possível que em tantos anos frequentando esse lugar nunca tenha reparado nessa árvore tão linda”.

Explico o motivo de tantas surpresas em um mesmo dia. Passei um ano viajando com a minha esposa, em uma aventura na qual percorremos 37 países, mais de 100 cidades e que resultou em muito aprendizado. Durante esse período, nosso cotidiano era acordar, tomar café e sair pelas ruas atrás de exposições, parques, galerias, museus, praias, teatros, pessoas e lugares que pudessem nos resumir um pouco de cada cantinho especial do planeta e que estava diante de nós a partir daquele momento. Para termos êxito nesse objetivo, o segredo era manter um olhar atento a tudo o que nos interessava e, principalmente, estarmos abertos a nos desafiar mesmo quando algo não parecia convidativo.

Somos moldados para nos comportar
de determinada forma, mas, se ficamos
livres dessas amarras, podemos viver
de forma mais espontânea e descontraída.
Assim, ajudamos a nutrir nossa curiosidade
genuína em qualquer lugar em que estejamos

Olhar curioso
Como tudo na vida, quando treinamos sucessivamente algum comportamento acabamos o incorporando e deixando que faça parte da nossa rotina. O olhar de viajante (ou o olhar curioso) foi o melhor hábito de que poderíamos ter nos apropriado para deixar o mundo ainda mais interessante.

O tema é complexo pela dificuldade em trazer frescor para a realidade maçante que o dia a dia nos coloca. Segundo a psicóloga paulista Loren Chermann, a pressão social da vida adulta limita a curiosidade pura que as crianças trazem consigo. “Elas são espontâneas nas falas, nas curiosidades e nas dúvidas e agem naturalmente em nome da vontade sincera em adquirir conhecimentos. Não têm vergonha em fazer perguntas que possam parecer simples demais e enxergam possibilidades em tudo. O que os adultos não percebem é que a necessidade de parecer sempre bem-sucedido e não cometer erros acaba limitando a troca genuína que somos capazes de fazer”, acredita Chermann.

A comparação com o universo infantil traz uma lição importante para nos aventurarmos mais: viver sem escudos. Nossa história de vida naturalmente nos molda para atendermos uma determinada cartilha, em um ambiente social que nos cobra muitas vezes para sermos aquilo que não queremos ser, ou até mesmo agir para não fugir das regras estabelecidas em determinado contexto. Se libertar dessas amarras e entender que podemos enxergar coisas positivas e ter curiosidades genuínas em qualquer lugar – conhecido ou totalmente novo – sem precisar provar nada a ninguém, pode ser o pontapé inicial para reparar em tudo com mais interesse.

Fazer um caminho diferente,
olhar ao redor, mudar a rota e até usar
um meio de transporte alternativo
nos permite enxergar um lado
desconhecido e totalmente novo de
onde a gente vive

Simplicidade
A advogada paulistana Andréia Fernandes conta que mudar a maneira de circular pela cidade trouxe uma série de novidades para a sua rotina. Após vender o carro, passou a caminhar mais e a fazer percursos pequenos de bicicleta: “É interessante perceber como mudar a sua perspectiva influencia em todos os quesitos de uma grande metrópole. Me sinto mais segura fora de um carro, menos notada. Sou mais uma na andança natural do dia a dia, e sair de dentro de um espaço fechado me fez enxergar várias coisas novas que passavam despercebidas. Descobri, por exemplo, uma livraria linda na rua de casa”, conta ela.

Enxergar mais o vai e vem das pessoas e os acontecimentos da cidade é o que propõe Tomás Martins, sócio da Compartibike, empresa que faz projetos de mobilidade, por meio da bicicleta, em vários municípios brasileiros: “Seja no carro, seja na nossa rotina, estamos acostumados a ficar presos na cidade, e poder vivenciá-la de diferentes maneiras é libertador. Fazer um caminho diferente, usar um meio de transporte alternativo, nos permite enxergar o lado desconhecido de onde se vive. Sair da mesmice e perceber que o mundo tem outras possibilidades nos abre portas e liberta a criatividade”, acredita Tomás.

“Não é exclusivamente ter uma vida nova o segredo para trazer mais entusiasmo para o dia a dia”, conta o publicitário João Ferreira. Depois de uma temporada estudando na Califórnia (EUA), atividades simples que nunca imaginou aprender por aqui se tornaram fundamentais e, por que não, interessantes no seu acervo de conhecimento. “Nunca tinha operado uma máquina de lavar. Na primeira vez que usei uma, acabei colocando amaciante no lugar do sabão e as roupas saíram daquele jeito. Na segunda lavagem já estava tudo certo. Parei e pensei como não saber uma coisa tão simples, por pura falta de curiosidade, acabava tirando minha liberdade em vez de facilitar a vida”, comenta.


A empatia do viajante
Na viagem que fiz junto com minha esposa, algumas situações foram responsáveis pela aquisição de uma maneira diferente de olhar para as coisas e, principalmente, para as pessoas. O último lugar do nosso roteiro foi a Etiópia, país africano, que nos colocou frente a perigos e novas realidades. Por lá, dormimos ao lado de um vulcão em atividade na fronteira com a Eritreia, país cuja democracia é completamente instável. Fomos escoltados pelo exército da ONU e pela polícia local – em 2012 quatro cientistas foram assassinados por rebeldes do país vizinho. De lá, viajamos mais seis horas de carro até a depressão de Danakil, 160 metros abaixo do nível do mar.

Se nos inspirarmos no comportamento
genuinamente curioso das crianças,
podemos deixar para trás a pose sisuda
e o medo de errar. Mais abertos e dispostos,
cultivaremos nossa vontade sincera em
aprender e a viver com encantamento

Dormimos a céu aberto em estruturas de madeira no povoado Afar, que sobrevive da extração de sal para venda em cidades cujo percurso de camelo chega a levar três dias inteiros. Sem nenhuma estrutura médica ou escolar e sob um sol de extenuantes 52 graus durante o dia, esse povoado talvez tenha sido o lugar em que nos sentimos mais completos. Isso porque aquelas pessoas, desconhecidas até então, não nos deixaram faltar nada mesmo quando nada tinham, e o melhor, sem pedir qualquer coisa em troca. Nos pegávamos contemplando o céu e pensando na vida de quem ali morava: eles eram tão diferentes e tinham uma rotina completamente diversa da nossa, e ao mesmo tempo alimentavam valores tão fundamentais para uma sociedade mais humana.

Em seu livro O Poder da Empatia (Zahar), o escritor e filósofo Roman Krznaric, um dos fundadores da The School of Life e do Museu da Empatia, sediado em Londres, na Inglaterra, ressalta que viagens com propósito reforçaram a diminuição de seu déficit de empatia e melhoraram sua percepção para uma visão menos estreita do mundo. Na experiência que teve trabalhando como observador voluntário do respeito aos direitos humanos em uma aldeia na Guatemala, o desenho de um menino, que contava com uma floresta com aviões e helicópteros disparando projéteis, despertou sua curiosidade para um tema novo: “Foi, em parte, o impacto desse desenho que me inspirou a dedicar vários anos ao trabalho com questões de direitos humanos e justiça social na Guatemala e em outros países em desenvolvimento”. Roman também cita a próxima tendência no mercado de turismo: as viagens empáticas, aquelas que possuem como principal objetivo oferecer experiências de empatia ao redor do globo, proporcionando uma dinâmica de autoconhecimento desde o planejamento até a execução. Para essa ideia, ele deu até nome e subtítulo: “Fugas Empáticas – Desfaça Sua Bagagem Pessoal”.

Não é preciso dar a volta ao mundo
ou se mudar de sua terra natal para entrar
em um processo de transformação
baseado no interesse pelo novo, pelo outro,
pelo muito e também pelo pouco

Começar agora?
Há uma foto interessante circulando pela internet que mostra um cavalo amarrado a uma cadeira de plástico. Na prática, aquele objeto não exerce força alguma para impedir que o animal saia andando, e serve como metáfora para a nossa inércia em descobrir uma nova maneira de viver. Falta de tempo, falta de dinheiro, medos, riscos, são realmente suficientes para nos segurar ou são apenas cadeiras de plástico agarrando nossas vontades? Não é preciso dar a volta ao mundo ou experimentar se estabelecer a milhares de quilômetros de distância de sua terra natal para entrar em um processo de transformação baseado no interesse pelo novo, pelo outro, pelo muito e pelo pouco.

Qualquer um, no seu dia a dia, na rua de casa, no bairro onde mora, pode exercitar o tal olhar do viajante. Vale começar, por exemplo, conversando com desconhecidos. Essa, aliás, é uma alternativa brilhante para aguçar nossa percepção. Quantas vezes você não viajou e fez amigos por aí esperando um ônibus, no metrô ou na fila do aeroporto? Que tal fazer isso no cotidiano? Conhecer outros pontos de vista, outros grupos, debater ideias, trocar experiências, buscar evolução, praticar empatia e entender um pouco mais os anseios de quem não é igual são coisas que apuram a visão e engrandecem nosso lado humano.

Na volta ao Brasil, eu e minha esposa adquirimos o hábito de conversar com “pessoas invisíveis”, gente que vive nas ruas ou o vendedor da banca de revistas da esquina, o ambulante que espalha suas mercadorias na calçada, o varredor de rua, o porteiro do prédio comercial, enfim, pessoas que passam despercebidas no individualismo do nosso dia a dia. Depois de uma conversa, mesmo que rápida, é comum que aquele homem ou aquela mulher agradeçam simplesmente porque demos um pouco de atenção a eles.

O mais importante não é mudar de vida, mas transformar a maneira como a enxergamos. Você pode fazer isso de diversas formas. Pode começar a qualquer momento, em qualquer lugar e hora. Melhor então que seja aqui e agora.

PEDRO WICKBOLD adora viajar, mas ama sentar em uma praça ao lado da esposa e ver a vida em seus detalhes.

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