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Bordando as relações de olho no futuro
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Em uma era de tanta pressa e falta de tempo para o cultivo das relações, escutar o outro pode ser uma verdadeira revolução.


***Este texto foi originalmente publicado na edição 234 da revista impressa Vida Simples

É inegável, claro, que as relações humanas foram por demais afetadas e transformadas desde o ingresso do novo milênio, mas o advento da internet em larga escala e a expansão das tecnologias digitais não podem ser os únicos vilões. É verdade também que, embora conectados em redes globais, flutuamos em bolhas muito específicas pelas redes, nas quais os algoritmos nos apresentam apenas aqueles que nos são semelhantes.

Por trás das telas, anônimos fazem demonstrações de ódio sem grandes medos de represálias. E acumulam-se “amigos”, mais chamados de seguidores, que nunca se viram e, provavelmente, nunca irão se encontrar. Mas tenho certeza de que, se voltarmos os olhos para outras épocas, certamente perceberemos semelhanças analógicas com essas formas contemporâneas de se relacionar.

Sejam familiares, profissionais ou amorosos, os relacionamentos necessitam se basear no tripé da ética, do respeito e da empatia, e atentos à verdadeira escuta, para uma construção mais verdadeira. 

Assim, no curso dessa terceira década do século 21, e supondo os 20 anos posteriores ao atual, mirar as relações humanas no amanhã é, principalmente, estabelecer o que desejamos como sociedade e reconhecer as mudanças necessárias para que as coisas não permaneçam iguais, apesar de com outra roupagem. Mais ainda, não se poderá debater esse assunto sem estabelecer a pandemia como marco temporal.

Trago para debater o tema Isadora Dias Gomes, pesquisadora e doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará. Em sua visão, as mudanças no âmbito dos relacionamentos interpessoais não serão tão radicais em comparação com o rumo que já estamos seguindo.

“Esse momento mundial pelo qual estamos passando tem servido como um catalisador dos problemas e das soluções que já estavam sendo encontrados. Se, por um lado, o uso quase exclusivo da internet para nos relacionar distanciou pessoas e grupos, por outro o mesmo uso intenso aproximou pessoas e grupos.

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As que já tinham uma boa rede de apoio, melhores condições socioemocionais e, ainda, que vinham trabalhando no seu autoconhecimento, fortalecimento de vínculos, foram basicamente as que melhor proveito tiraram desse novo momento na história dos relacionamentos humanos”, evidencia.

Por outro lado, aponta Isadora, aqueles que já não gozavam de um bom suporte, e que tinham uma condição socioemocional precária, são os que encontram maiores desafios no momento. “Em resumo: vejo que a tendência é a mesma de antes, com relações ainda mais líquidas [conforme o conceito de Zygmunt Bauman], mas não podemos negar que, em contraste, estamos tendo oportunidade de desenvolver vínculos cada vez mais fortes.”

Portanto, para rascunhar o futuro dos relacionamentos, sejam eles familiares, amigáveis, amorosos ou profissionais, podemos combinar de antemão que não há um modelo ideal pré-moldado. Afinal, ideal para quem?, como questiona Alexandre Patricio, psicanalista, pesquisador pela PUC-SP e criador do podcast Psicanálise de Boteco.

Para ele, uma coisa é certa: a formatação de uma sociedade que conviva em maior equilíbrio e harmonia só será possível se baseada na ética, no respeito e na empatia. “Sem isso, a gente não tem nenhum tipo de relacionamento. A não existência desse tripé implica um grande risco à nossa existência e às nossas relações como um todo.

Na era da pressa, aceleramos áudios e, com isso, o que dizemos é: não tenho tempo para você e nem para o que você tem a dizer. E pior: normalizar isso.

Era da Pressa

Recentemente, o aplicativo WhatsApp anunciou que incluiu a função de acelerar a velocidade de reprodução dos áudios, atendendo, segundo a empresa, um pedido recorrente de seus usuários. A novidade, vista por outro ângulo, evidencia o que o psicanalista chama de “era da pressa”, na qual todos estaríamos inseridos.

Recorrendo à teoria freudiana do “ideal do eu”, ele tece a opinião de que hoje a sociedade exige do ser humano muita produtividade, cabendo a cada um, por exemplo, que acorde cedo, arrume a casa, vá à academia, depois ao trabalho, brinque com os filhos e, acima de tudo, não questione, tampouco mostre abatimento ou outras fragilidades.

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“Então, o novo recurso do WhatsApp responde a essa era da pressa, da impaciência, da produtividade. É como se eu dissesse: ‘não tenho tempo a perder ouvindo seu áudio, as suas lamentações, as suas dores, as suas queixas’. Ou então: ‘você fala devagar demais, não tenho paciência’. Por isso, acelero a reprodução do áudio do mesmo jeito que a vida tem sido acelerada e encarada de forma normal. Essa normalização tem causado uma série de prejuízos”, enfatiza.

Escuta como caminho

Na ponte entre o presente e futuro, adotar uma escuta verdadeira, que implique exercício da presença, como doação ao outro, é um dos caminhos mais sólidos para a transformação das relações interpessoais. Se bem sabemos como é difícil revisitar algumas experiências, alguns episódios da vida que permanecem como feridas abertas, colocar-se como ouvinte atento de quem necessita traz grandes benefícios.

“Penso que um falando e o outro ouvindo legitimamente, independente de ser ou não um psicanalista, já ajuda muito, pois estabelece um espaço real para uma escuta sincera, que não seja automática”, realça Alexandre. Mas o que é uma escuta autêntica? É justamente aquela relacionada ao cuidado, à preocupação com o outro.

O verdadeiro ouvinte, portanto, não é o que escuta as aflições do amigo por dez minutos e, já cansado, oferece um conselho raso para encerrar a conversa. Pelo contrário, é o que mergulha junto com a outra pessoa nas emoções dela não antes visitadas, ajudando-a a trilhar esse percurso. “Alguém legitimamente preocupado, amoroso, afetuoso ajuda uma pessoa a atravessar momentos terríveis de sua vida.

A escuta autêntica pode ajudar a transformar as relações. Trata-se de uma escuta relacionada ao cuidado, à preocupação verdadeira com o outro.

Ainda de acordo com ele, a necessidade de cuidado com as relações interpessoais deve ser uma tecla a ser batida já na educação infantil. A posição de escuta e diálogo precisa ser estimulada entre os pequenos, reforçando o lugar do afeto, da companhia, do acolhimento e da troca.

Esse investimento, somado ao favorecimento dos mecanismos de arte, de cultura e educação, seria a receita mais eficiente para criar uma sociedade mais empática, menos preconceituosa, menos misógina e menos julgadora.

E se o amanhã carrega inúmeras possibilidades para a formatação de relações menos voláteis, manter-se no presente, como pensa Isadora Dias Gomes, é a melhor estratégia. “Diante da realidade atual, o que posso fazer? Quem posso ser hoje, nas condições que tenho? E assim o futuro se desenha a cada dia, sendo esse desconhecido que sempre foi.


GUSTAVO RANIERI é jornalista, escritor, padeiro e oficineiro. Não se priva de ouvir todos os pormenores das histórias e nem de trocar longas mensagens de voz pelo WhatsApp. Principalmente, descobriu que, quanto mais se dedica a ser um ouvinte atento, mais escuta a si mesmo por meio do outro.


De olho no futuro:

Esse texto faz parte da série “De olho no futuro”. A proposta dela é investigar o que se tem pensado para temas centrais da vida humana, como trabalho, educação, alimentação, meio ambiente, moradia e sociedade. Compreendendo o passado e o presente, espiamos o futuro com olhos mais disponíveis para viver essas mudanças e criar um mundo melhor. A série recebe consultoria da Oxygen (@oxygen.brasil), uma plataforma de conteúdo em inovação. Com seu olhar apurado para a curadoria de tendências, a fundadora Andrea Janér tem como missão compartilhar conteúdos para ajudar empresas e pessoas a entender para onde cada transformação poderá nos levar.

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