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Tramas, autoconhecimento e consumo consciente
Juss
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Nesta entrevista, a artesã Cris Bertoluci tece reflexões sobre consumo consciente, autoconhecimento, feminino e sutilezas das tramas

“Quando nasce uma mulher, sua mãe coloca uma aranha em sua mão para ensiná-la a tecer”. A frase da poeta, cineasta e tecelã chilena Cecília Vicuña abre as 98 páginas da dissertação da artesã da Rede Manual e professora de tricô e crochê Cristiane Bertoluci. Como objeto de estudo do mestrado em Têxtil e Moda pela Universidade de São Paulo (USP-Leste), Cris estudou técnicas manuais e resíduos de malharia de algodão. No entanto, já na epígrafe do trabalho acadêmico, ela nos faz recordar que muito antes de métodos, é de sutilezas que se compõe o fazer de um artesão. Seja ele nas lãs e agulhas ou na escrita acadêmica.

Nessa conversa, a artesã que participou de diversas edições do Mercado Manual, além de ter ministrado cursos de criatividade no Sesc Pompeia, em São Paulo, e na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), conta sobre os entremeios do tricô e da feminilidade, autoconhecimento, moda e consciência ambiental. Um convite que nos desperta para as tramas da delicadeza.

Por que abrir uma dissertação sobre o uso de resíduos de malharia de algodão com uma citação sobre manualidades e tradições?
A frase de Cecília Vicuña que usei é do livro Fray: Art and Textile Politics (Desenrolando: arte e política do têxtil, em tradução livre,  2017), de Julia Bryan-Wilson. Ela pega diversos casos em que a arte têxtil está ligada à política, como o grupo Arpilleras, mulheres que, durante a Ditadura Militar no Chile, se reuniam nas igrejas e faziam bandeiras bordadas denunciando as torturas. Formavam, então, toalhas de patchwork que eram dadas a visitantes para que denunciassem a situação fora do país. Na introdução, o livro fala bastante sobre a arte têxtil estar relacionada à mulher e, por ser uma atividade doméstica, ser desvalorizada. Hoje, até mesmo artesãs que produzem de modo mais contemporâneo ainda olham feio para os panos bordados vendidos na rua. Acham brega. Mas isso é ir se matando por dentro. Se é para valorizar, é como um todo.

E como o fazer manual se relaciona com a feminilidade?
É uma coisa de séculos, transmitida de mulheres para mulheres. As ferramentas do homem são sempre pra construir grandiosidades. Já as ferramentas da mulher parecem menos significativas. Nascemos com essa ideia do cuidado e acabamos tendo um olhar diferente. Pensamos em detalhes, cor, combinação. Tudo que nos é instituído desde sempre. Porém, nos afastamos do trabalho manual na segunda onda feminista, durante os anos 1960 e 1970, uma vez que este momento pretendia distanciar as mulheres de tarefas domésticas. Mas hoje há um outro olhar: libertar-se da indústria e ter autonomia.

Qual o papel da internet e das aulas para a expressão deste novo olhar e sua difusão?
As aulas colocam as pessoas muito mais em contato por compartilharem de um interesse em comum: bordar, tricotar. É uma aproximação de gerações e de ideias. Em uma época de tanta polarização, a sala de aula ainda é um lugar amistoso. Em relação à internet, ficou muito mais fácil criar redes de cooperação e de compartilhamento de conhecimento. E também entender que quanto mais a gente compartilha, mais o conhecimento se multiplica. Tudo se tornou ainda mais interdisciplinar. Pessoas de diversas áreas, de cenógrafos a psicólogos, me procuram por causa do trabalho com tricô e crochê. Um dos meus primeiros trabalhos na Novelaria [espaço de cursos e loja de materiais para trabalhos manuais em Pinheiros] foi a demanda de uma empresária que precisava resolver conflitos entre as funcionárias e as levou para uma aula de tricô em grupo. Ela me chamou no canto e me disse: “Deixa elas ensinarem umas às outras, trabalharem juntas”. Foi, praticamente, uma dinâmica de RH.

É preciso estar focado no momento ao trabalhar com as
mãos. Algo que fomos perdendo nos últimos tempos

De que forma a prática pode gerar autoconhecimento? Seria o tricô uma terapia?

Tem a ver com desaceleração e presença. Muita gente vai fazer tricô porque o terapeuta sugeriu. É preciso estar focado no momento ao trabalhar com as mãos. Algo que fomos perdendo nos últimos tempos. Por isso cozinhar, fazer marcenaria ou cerâmica também estão em alta. Minha amiga Flávia Lhacer, professora de bordado, e eu realizamos o Retiro Fio no sítio Duas Cachoeiras, no interior de São Paulo. São quatro ou cinco dias de meditações, dinâmicas de conversa e sessões de trabalhos manuais. Nos inspiramos em um grupo de bordadeiras dos Estados Unidos que fazem algo parecido. Tem também a vivência que o sítio já oferecia, como tosquia de ovelhas, fiação e tingimentos naturais.

Em sua dissertação, você conta que a Inglaterra, apesar de ter sido o berço da Revolução Industrial, também mantinha uma tradição de tricô. Como era isso?

A Inglaterra tem tradição em trabalhos manuais. As famílias se reuniam para produzir tricô, crochê, bordados. Durante as guerras, as mulheres ficavam em casa e os homens iam para as batalhas. Foi daí que começaram a se criar grupos para tricotar meias e blusas para esses homens que estavam longe. Quando os conflitos acabaram, elas já tinham esse conhecimento e a indústria se aproveitou disso e começou a criar revistas especializadas nesses fazeres. A rainha Vitória falava que uma mulher tinha que ter dotes femininos, como o do bordado. Quando surgiu a primeira máquina de tricô por lá, a rainha proibiu que ela fosse patenteada porque queria manter o trabalho manual. Um dos primeiros movimentos que houve contra a Revolução Industrial, o Arts & Crafts, liderado por William Morris, influenciou uma série de pensadores, como a própria Bauhaus, alertando para o fato de que se as pessoas se prendessem à indústria perderiam a liberdade do criar. Mas a indústria da moda se afastou muito do fazer. Precisamos retomar os meios de produção.

Passa-se a fazer escolhas mais conscientes e
a se questionar sobre o fast fashion.

O algodão produzido de forma convencional, com agrotóxicos, também pode ser um problema?
Todo mundo acha que o algodão é bonzinho, mas é um problema. O algodão está sendo plantado em áreas de onde não é natural, o que exige mais rega e pesticidas. Existe também a questão da polinização, pois o inseticida mata as abelhas que a fariam. Na Índia, estão sendo “compradas” meninas de quatro a cinco anos de idade de famílias miseráveis porque elas têm as mãos bem pequenas e delicadas e conseguem colocar o pólen na plantação. Elas polinizam as plantas no lugar das abelhas. Depois, quando crescem são simplesmente abandonadas.

Além do algodão orgânico, os tecidos reciclados, são uma boa opção?
São sim. Eles já existem, mas a aceitação das pessoas não é tão grande. Ele é mais desvalorizado que o orgânico, por exemplo. Mesmo assim, há iniciativas interessantes. O fio de malha (borda do tecido de malha que era cortada e descartada pela indústria) se difundiu. Algumas empresas começaram a usar esse descarte para fazer novelos, mais usados na produção de tapetes. Porém hoje ele já se encontra em acessórios, no tricô e no crochê. No entanto, também surgiram fabricantes que, em vez de usar o fio do descarte, estão produzindo do zero para controlar cor e espessura, o que é típico de processos industriais. O propósito, então, já se perde.

Sendo assim, como o fazer manual fomenta a consciência e a preservação do meio ambiente?
Primeiro você diminui a escala, o que torna mais fácil para quem está produzindo rastrear as matérias-primas, conhecer a origem e pesquisar alternativas. Existem marcas de fios que já aproveitam todos os resíduos, por exemplo. Ainda dependemos muito de algumas matérias-primas tradicionais e dos armarinhos da 25 de março. Mas as possibilidades estão se abrindo e isso tem a ver com a circulação de informação hoje. Antes as pessoas não conheciam o processo de fabricação de uma roupa. Mas quando você começa a ver como é o sistema de produção de moda na China e em Bangladesh, com trabalho escravo, passa-se a fazer escolhas mais conscientes e a se questionar sobre o fast fashion.

Texto: Priscilla Santos  | Edição: Maju Duarte | Fotos: Juss

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