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O “faça você mesmo” em si é uma ação motora, caracterizada pela realização de movimentos. Esses, por sua vez, exigem uma série de ativações.

Um apartamento povoado por quatro cabeças (femininas) é uma aventura diária. Ainda mais quando suas companheiras de vida trabalham em áreas diferentes da sua. Lá em casa é assim. Sou jornalista, a Lídia é estudante de história, a Sofia, publicitária, e a Fernanda, designer especializada em mobiliário.

No começo do ano, decidi que queria saber mais sobre a área em que a Fê trabalha. Estava intrigada com a ambiguidade que envolve os móveis. Apesar de serem onipresentes, a discussão sobre sua produção é quase inexistente. Fala-se da origem da cenoura que comemos (ainda bem), mas pouco se conversa sobre a procedência da madeira usada na fabricação de uma cadeira.

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Em um domingo ensolarado, então, fui para o Oficina Lab, onde a Fê trabalha. O galpão, que funciona
como uma escola para quem quer enveredar pela arte da marcenaria, é bem grande e composto de dois ambientes. No primeiro, havia uma canoa inacabada e máquinas de fabricação digital. No outro, mesas com banquetas e paredes cheias de prateleiras. Nelas, estavam pedaços de madeira, criados-mudos, cadeiras e uma variedade de ferramentas.

Em um primeiro momento, tive uma reação parecida com a do personagem Colin (garotinho doente do filme Jardim Secreto). Quando ele sai pela primeira vez do quarto, depois de muito tempo apenas no seu universo protegido por quatro paredes, tem um misto de encantamento e espanto. Foi isso o que aconteceu comigo. Depois desse primeiro encantamento com o lugar, recebi as orientações iniciais.

A construção de um tampo

A meta, naquele dia, seria construir um tampo para uma mesa de escritório. Isso deveria ser feito por meio da união de tábuas de madeira de tamanhos irregulares. Algumas tinham cerca de 10 centímetros de largura, outras mais. A altura era a mesma, 1,4 metro. As cores também eram diferentes: iam do bege claro ao marrom desbotado.

Coloquei o avental e a máscara de proteção, item obrigatório. A primeira tarefa era lixar as tábuas. Liguei o equipamento e comecei. Uma tábua e ok. Duas e beleza. Três tábuas e muito interessante. Quarta e… pensei: “Acho que vou beber água, dar uma olhadinha no WhatsApp. Tomar um café…”. No meio do raciocínio, assim bem rapidinho, a primeira ficha caiu. Aquela atividade pedia uma atenção diferente. Com uma mão ocupada com a lixadeira e outra em contato com a madeira, a fim de verificar a textura, não era possível ceder às pequenas fugas.

O corpo também falava. Se deixasse o peso do equipamento somente no braço, os músculos reclamavam. Era preciso pedir ajuda do abdômen e das costas. E isso com agilidade. Havia mais etapas para a produção daquele móvel, que eu, na minha ignorância, não imaginava. O dia acabou e eu não consegui terminar o tampo, o que me deixou bastante inquieta. No metrô, refleti sobre o que havia percebido. A grosso modo, podia falar que havia aprendido com pedaços de madeira e a construção de uma futura mesa. Mas, antes, era necessário checar se somente eu havia sentido aquilo.

Paixão por “faça você mesmo”

“Foi uma paixão louca, fulminante.” A dona dessa frase não é uma cantora de hits românticos, é a publicitária Juliana Utsch. De fala rápida e vibrante, ela é uma aluna de marcenaria. Juliana está aprendendo a desenvolver um projeto autoral – e não uma mesa ou uma cadeira preconcebida – e a usar máquinas que podem ser compradas em lojas de construção, como serras tico-tico, furadeiras pequenas e lixadeiras.

Juliana chegou à oficina por indicação de um colega do trabalho. Ela andava desmotivada e queria experimentar algo inusitado, que lhe trouxesse o sentimento de “brinquedo novo”. Seu primeiro projeto tinha como objetivo resolver um problema doméstico: seus cachorros tinham o hábito de comer as fezes de sua gata. “Me disseram que é normal, mas não é algo agradável. Tentei de tudo, até remédio para coprofagia. Quando vi que nada adiantava, decidi fazer um móvel.”

A peça, de compensado, é um híbrido. “É um móvel retangular. De um lado, tem o banheiro da gata. Ela o acessa por um losango que tem as medidas adequadas para a felina, o que impede os cães de mexerem no conteúdo. No meio, coloquei almofadas para ter um cantinho para brincar com ela e, no canto, um coqueiro. Embaixo, também tem umas gavetas para petiscos”, conta. O processo de execução, de cerca de três meses, culminou com uma série de descobertas. Juliana percebeu que sua experiência com o mundo estava ligada à visão. O contato com a madeira, entretanto, pedia a ativação dos outros sentidos. “É preciso usar o tato para perceber a aspereza. Também se usa o olfato, porque quando você aperta os parafusos surge um cheiro de queimado.” A publicitária se encantou também em poder criar algo fora do escritório, sem a mediação do computador.

A dedicação exclusiva ao trabalho com madeira

Depois desse primeiro móvel, ela se dedicou a fabricar skates. Foi assim, de projeto em projeto, que as idas à marcenaria se transformaram num hábito. Um dia, ela percebeu que estava fazendo as tarefas profissionais com rapidez para poder ter mais tempo para os inventos. Em junho deste ano, Juliana optou por se dedicar integralmente ao trabalho com a madeira. A experiência tem sido enriquecedora. O espaço para um projeto autoral, livre de dezenas de alterações feitas por clientes, para ela, é um ponto positivo. A remuneração, no entanto, é o lado negativo. “Vou conciliar os dois, mas agora de um jeito diferente. Pretendo encontrar um espaço de coworking e usar o tempo livre para fabricar móveis”, conclui Juliana.

O medo é sempre bem-vindo

A experiência da designer Joici Ohashi é diferente da de Juliana. Ela deixou a faculdade de lado para fazer cursos técnicos em design de interiores e design de móveis. No decorrer das aulas, sentiu falta de exercícios práticos, e foi assim que descobriu a marcenaria.

Seu primeiro projeto foi um banco em celebração ao aniversário de Brasília. Em uma das pontas do móvel, há um cilindro de cimento cru. Na outra, um armário retangular que tem em sua porta formas que remetem aos famosos azulejos de Athos Bulcão, uma das marcas da arquitetura da capital federal. Uma tábua liga as duas estruturas.

A presença de máquinas digitais que possibilitam a fabricação em larga escala a fizeram transformar o passatempo em profissão. Hoje, além de criar projetos autorais sob a marca Oh Eu Que Fiz, também ministra aulas, preservando dois elementos que considera essenciais: o medo e a curiosidade. “Dentro da marcenaria, o medo é sempre bem-vindo. Os acidentes, às vezes, podem ser perigosos. A curiosidade também é importante. É preciso se interessar pelos materiais utilizados e compreender todo o processo, do corte da madeira à montagem do móvel.”

O que acontece no cérebro?

A fabricação de móveis é uma tarefa complexa. As etapas que envolvem a concepção e o detalhamento do projeto – escolha do material, estudo dos planos de cortes, identificação das peças – são atividades intelectuais que requerem a ativação de áreas, como a criatividade.

A construção em si, entretanto, é uma ação motora, caracterizada pela realização de movimentos. Esses, por sua vez, exigem, de acordo com a neurocirurgiã Diana dos Santos, uma série de ativações: “É um circuito extenso e intrigante”. Enquanto algumas regiões do cérebro cuidam do planejamento e da codificação do movimento, outras determinam a força que será utilizada naquela ação. Diana exemplifica esses mecanismos ao falar de uma atividade corriqueira, como bater um prego em uma tábua. “Primeiro, você usa seu circuito visual para saber onde quer colocar o prego. Depois, sente a peça, o martelo, estuda o movimento, a intensidade e o espaço. Por fim, executa.”

Mas, nesse longo trajeto, vários neurotransmissores estão envolvidos. A dopamina, uma das mais importantes dessas substâncias, é responsável pela modulação do movimento. Ou seja, é ela que determina uma ação harmônica. Protagonista nos estudos relacionados ao mal de Parkinson, sua deficiência causa a hipocinesia, que é uma lentificação do movimento. Outra área estimulada é a região responsável pela automação, que grava no cérebro aquele movimento e permite que, das próximas vezes, você não utilize tanta energia. “Quanto mais tempo você dedica àquela tarefa, mais o movimento se torna automático. É como um pianista, se ele estuda uma hora por dia, não vai ser um grande concertista, mas, se estuda dez horas, durante dez anos, consegue ouvir uma nota e saber qual é. Com muito tempo, a habilidade se desenvolve”, conclui

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