Comida de época
Resgatar o conceito de sazonalidade da comida pode ser uma forma de nos reaproximar daquilo que comemos e, de quebra, trazer alimentos melhores

Resgatar o conceito de sazonalidade da comida pode ser uma forma de nos reaproximar daquilo que comemos. De quebra, trazer para a mesa alimentos melhores, mais saborosos e muito mais baratos
Apoio: Natural da Terra
Há cerca de três meses, ingressei em um Grupo de Consumo Responsável para comprar alimentos orgânicos direto dos produtores. Se você não é familiarizado com o conceito (eu também não era muito há algum tempo), esses grupos são formados por pessoas que se reúnem voluntariamente para negociar diretamente a compra de frutas, verduras ou legumes, entre outros, com pequenos fazendeiros. Primeiramente, a compra é feita de forma coletiva. Ao invés vez de atender um só cliente, o fazendeiro atende um grupo, o que possibilita cobrar um preço mais barato por seus produtos. Além disso, ainda garante um volume maior de venda. Para o comprador, a grande vantagem, além do preço, é que ele conhece a procedência do alimento que coloca dentro de casa – inclusive cria uma relação direta com quem o planta. É uma amostra de que comida é patrimônio.
Toda semana, entro no site do grupo para ver os produtos disponíveis, seleciono o que quero comprar e mando minha lista. Às terças-feiras, vou até o galpão de uma igreja (emprestado pela comunidade) para pegar tudo o que pedi e pagar. Nesse contato, me encontro com as outras pessoas que fazem parte do grupo e ainda conheço quem está por trás do maço de alho-poró, do quilo de batatas e até da manteiga de leite cru que eu coloco na minha geladeira.
Para mim, essa relação mais próxima é algo importante nesses tempos em que a comida tem sido tão desprovida de alma, como se tudo aparecesse em um passe de mágica nas prateleiras dos grandes supermercados.
O hábito versus a natureza
Por algum tempo, vi que a oferta de frutas não contemplava mamão: passou uma semana, outra, a terceira – e nada dele. Criei o hábito do mamão picado no café da manhã, tão imprescindível como a leitura do jornal impresso e a xícara cheia de café moído e coado na hora.
Em uma das terças feiras, resolvi cutucar, como quem não quer nada, uma das produtoras. “Poxa, dona Maria, bem que podia ter um mamãozinho na semana que vem, né?”, disparei, em tom jocoso. “Xi, pode não…”, ela respondeu, “não está na época ainda, meu filho”. Surpreso pela constatação – e meio envergonhado pela bola fora – sorri amarelo. Como podia querer obrigar a natureza a brotar meu mamão só para suprir meu hábito diário? Tsc, tsc. Apresar da comida ser verdadeira, não podia entrar nessa briga.
Mimados comensais
A verdade é que vivemos uma era em que tudo é possível o tempo todo quando falamos de comida. A alcachofra para a receita de impressionar o casal de amigos está à sua espera no hortifrúti bacana da esquina. A manga, que eu comia apenas no final do ano no sítio, está nas gôndolas do mercado o ano inteiro. O desenvolvimento da agricultura moderna possibilitou cultivar o alimento que bem se entende sem ter que levar em conta a época que a natureza escolheu para que ele amadureça. Claro que à custa de “aditivos”, que precisaram ser acrescentados aqui e ali – mas isso é um longo papo que podemos abordar numa outra reportagem.
A questão aqui é que ficamos mal-acostumados – como eu na história do mamão. “Essa ideia de as pessoas comerem só o que elas querem precisa acabar”, afirma o chef Ivan Ralston, do restaurante Tuju, em São Paulo, em que o conceito de sazonalidade dos alimentos é levado a sério, com cardápios que mudam regularmente de acordo com a qualidade dos ingredientes disponíveis. “Cada vez mais, as pessoas deveriam comer o que a natureza oferece. Ela que deve ser o parâmetro do que está melhor para nos alimentarmos”, ele diz. Pode-se dizer que comida é arte.
A colheita de produtos
Sempre foi assim, aliás, desde que nossos ancestrais colhiam produtos silvestres. Aprendemos a domar os processos agrícolas, claro, mas agora nos acostumamos com o salgadinho e as bolachas feitas o ano todo e queremos que isso seja aplicado também para frutas, verduras e hortaliças. A indústria de alimentos nos tornou mimados.
“Sem dúvida é um trabalho muito árduo de ser feito, é difícil estar com a cabeça aberta todo o tempo, mas precisamos tentar convencer as pessoas a provar novos ingredientes e preparos, ao invés de elas comerem sempre o mesmo filé-mignon com gratin de batata a que estão acostumadas. Porque isso tende a ficar impraticável no decorrer dos próximos anos”, completa ele, em referência ao desafio que vai ser alimentar uma população de 10 bilhões de pessoas no mundo até 2050, quando teremos de aumentar em 70% a atual produção de alimentos. E se todo mundo quiser só o mesmo filé, a mesma alcachofra, o mesmo mamão?
Como chef, Ivan tem o desafio de pegar os ingredientes que os fornecedores trazem para ele e fazer o melhor que pode daquilo, sem planejamento prévio e com o esforço de ter que reinventar o cardápio praticamente todo dia.
“Dá bastante trabalho, pois as mudanças são muito constantes, mas é uma satisfação enorme pegar um caqui no seu auge de sabor e de maturação e conseguir fazer uma sobremesa deliciosa com ele”, diz. Trabalhar dessa forma o permite instigar cada vez mais seu lado criativo, fugindo da obviedade, inclusive, para preparar pratos inovadores.
A comida refletida na boca e no bolso
É um novo paradigma para quem trabalha ou consome só ingredientes orgânicos, que respeitam as determinantes inatas do alimento: seus tempos, suas peculiaridades. Algo que na cidade e longe do campo, nem sempre temos paciência para considerar. “O que determina o consumo não é o fazendeiro: é a ignorância da ponta, do cara que consome. Não sabemos variar a dieta, não comemos de tudo. E a brincadeira teve início em casa, com o ‘meu filho não come legume de jeito nenhum’. A mãe começa a dar somente cenoura porque é o único legume que a criança aceita e esse cara vai crescer e passar a pedir a mesma cenoura o ano inteiro no restaurante”, afirma a empresária Cristiana Beltrão, do restaurante Bazzar, no Rio de Janeiro.
Quando o conceito de sazonalidade nem era uma bandeira dos chefs modernos, Cristiana já se propunha a pensar no cardápio de acordo com as épocas do ano – e a variedade de alimentos em cada uma delas, consequentemente. “Acho que não se trata só de um conceito, mas de um propósito: o de respeitar o alimento, de saber reconhecer seu auge. Trabalhar dessa forma, pra mim, sempre foi a melhor maneira de honrar um ingrediente”, completa.
A simplicidade de uma comida incrível
Ela conta que jamais se esqueceu de uma preparação com ingredientes da estação que comeu em um pequeno restaurante no sul da França. “Era um ‘prato do dia’, como descrito na lousa: uma massa com limões de Menton (os melhores) e manjericão colhido no ato. A preparação não podia ser mais simples ou barata, mas no auge da safra os ingredientes estouravam na boca como adolescentes, vibrantes e em seu ápice. Fizeram de uma simplicidade um prato inesquecível”, conta ela. A estação permite que os alimentos atinjam seu ápice de sabores. É como uma nutrição de amor.
Eles mudam muito pela quantidade de líquido, açúcar ou tamanho que o fruto ou legume tem, o que interfere totalmente na execução de uma receita-padrão, segundo ela. “Fora da estação, o ‘pico’ de um ingrediente não chega ao seu melhor. É como pedir a um maratonista que dispute uma corrida numa estrada totalmente esburacada. As condições oferecidas não vão deixar que ele faça a sua melhor prova. A estrada é o tempo, e o juiz dessa prova é a nossa boca. Se não está na época, por melhor que seja a execução da receita, vai parecer que o chef errou a mão naquele dia”, afirma.
As safras não se esforçam para crescer
Para ela, além do óbvio lado do paladar, existem inúmeros aspectos que reforçam o conceito de sazonalidade, mas um dos principais é o bolso. “Trabalhar com produtos da época, sobretudo em tempos de crise, deveria ser bem mais do que uma bandeira marqueteira. Deveria ser estratégia de redução de custos.
Na safra, frutas e verduras custam muito menos porque não há esforço para crescerem, esgotamento da terra ou necessidade de aditivos”, explica. “Para forçar a safra daqueles três ou quatro itens que todo mundo come, o fazendeiro acaba fazendo uso de técnicas como irrigação em uma fase do ano que naturalmente não chove, estufa simulando um verão que não existe, e outras fábricas de brincar de natureza. Isso tudo é custo”, ela diz. Para quem planta e, claro, para quem paga. “Não adianta querer que o preço do morango baixe se o consumidor quer torta de morangos o ano inteiro, e não só nos meses de inverno, quando o fruto brilha feliz”, exemplifica.
Bem-estar da comida
O engenheiro agrônomo Augusto Aguiar Rocha criou uma iniciativa de produção de alimentos orgânicos em Cordeirópolis, no interior de São Paulo, para lembrar (a si próprio e aos clientes) que a vida no campo continua funcionando dentro de seus períodos de tempo e que isso não pode ser ignorado se quisermos aproveitar da melhor forma nossa diversidade alimentar.
Há dois anos à frente da Meu Quintal Orgânicos, ele utiliza uma área de 16 hectares para produzir mais de 50 tipos de alimentos para seus clientes. O intuito, segundo ele, é dar a melhor condição para as plantas se desenvolverem. “Temos uma busca constante pelo nosso bem-estar, seja em casa, no trabalho, no cotidiano. Por que para as plantas seria diferente? Por que devo forçar uma planta a crescer e produzir em um ambiente estressante para ela?”, questiona. “A planta cultivada em sua época se mostra ‘bem’ em estar ali. E aí ela rende mais, cresce melhor, de maneira mais saudável, mais vigorosa. Vai gerar comida de melhor qualidade, o que se torna melhor para o produtor e para o consumidor. Todo mundo ganha”, defende.
Por que não há alimentos em toda época do ano?
Como uma forma de aumentar a conscientização das pessoas sobre a questão, mais do que apenas produzir bons alimentos orgânicos, Augusto passou, com a ajuda do irmão, a fazer as entregas dos clientes porta a porta, pessoa a pessoa, sem intermediários, reestabelecendo o vínculo quebrado com a chegada dos grandes supermercados entre os produtores do campo e as pessoas na cidade. Isso abre a oportunidade de esclarecer às pessoas sobre as dificuldades da produção no campo e como as alterações diárias do clima interferem na colheita e qualidade das frutas, verduras e legumes. Augusto também esclarece sobre a sazonalidade das plantas e os porquês de não terem determinados alimentos em todas as épocas do ano com estamos acostumados.
“Enxergo que a gastronomia é uma busca incansável pelos melhores sabores, aromas e texturas para cada ingrediente que será utilizado para compor um prato. Insistir em cardápios engessados não condiz mais com esse momento de redescoberta da diversidade culinária que estamos presenciando atualmente”, ele defende.
“Entender que essa busca deve acompanhar a dinâmica que a natureza traz é o paradigma que estamos quebrando no cotidiano das pessoas”, conclui ele. Por exemplo, o simples fato de entender que trocar o mamão de todo dia por um “melão pele de sapo” pode resultar em um café da manhã igualmente delicioso e surpreendente.
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