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O que fazer quando a vida perde o controle?
Noah Buscher
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Clara Primo levou quase dois anos para elaborar sua tese de mestrado sobre os hábitos alimentares de algumas tribos amazônicas. Levantou os dados da região, leu toda a literatura existente a respeito do assunto, escolheu os lugares certos para visitar, entrou em contato com os líderes locais, negociou comida e hospedagem, calculou custos e, principalmente, escolheu um fotógrafo de fama nacional para registrar todo o percurso, parte fundamental de seu trabalho acadêmico. Tudo pronto e acertado, ela iniciou a contagem regressiva do mais importante projeto da sua vida. 

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No dia do embarque, o fotógrafo manda uma mensagem de texto para o seu celular: não seria possível para ele embarcar, pois estava com disenteria. “Apesar do pânico inicial, resolvi não desistir e ir em frente.” Viajou sozinha com a disposição de encontrar outro profissional em Belém. Chegando lá, um não podia, outro já tinha compromisso e o terceiro não atendia ao rigor de qualidade exigido.

Mudança de rota

Nessa altura, todos os seus compromissos agendados anteriormente já tinham ido para o espaço. Foi quando Clara encontrou a melhor fotógrafa da Amazônia, especialista em temas regionais e indígenas. Suas fotos eram deslumbrantes e seu sorriso, mais encorajador ainda. A partir daquele momento, o roteiro passou a seguir as indicações da fotógrafa familiarizada com o mato.

Os entrevistados e lugares eram outros, e não havia garantia nenhuma de hospedagem ou alimentação. “Era como se tivesse entrado numa canoa e aceitasse seguir o curso de um rio tal como ele se apresentava.” E tudo – incrivelmente – deu certo. “A Amazônia me ensinou a soltar as rédeas. E a acreditar que existem mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia”, diz Clara.

Esta reportagem, portanto, é sobre o momento justo de soltar as rédeas – e a nossa doce ilusão de que podemos controlar tudo. Pois, como diz a piada, se um dia você quiser fazer Deus morrer de rir, é só contar a Ele sobre os seus planos.

Limpando o terreno

Vamos começar estabelecendo algumas diferenças que são fundamentais. Controle não é planejamento ou organização. Também não é perfeccionismo, ou ter responsabilidade e disciplina. Controlar de forma exacerbada significa se aferrar a tudo isso como garantia de que as coisas saiam exatamente do jeito que desejamos.

Porque se não sair dessa maneira, ah, se não sair... A gente simplesmente enlouquece: morre de ódio por quem atravancou nosso caminho, inventa inimigos que nos perseguem e querem nos prejudicar a cada esquina e, pior ainda, se imagina como alguém traído pelo próprio universo. Querer controlar dessa maneira é pura e simplesmente obsessão.

Para o controlador contumaz, não há espaço para que as coisas se modifiquem e se arrumem à sua maneira. Nem lugar para a reflexibilidade diante da mudança repentina ou a criatividade para buscar novas soluções em vista dos cenários imprevistos que se apresentam. “Há uma rigidez intrínseca: o que não segue nossa cartilha está errado e não presta. Não conseguimos aceitar como adequado e até propício aquilo que não obedece ao que planejamos anteriormente”, diz a psicoterapeuta Irene Cardotti. 

Dominação

“O controle vivenciado dessa maneira, rígida, férrea, está baseado apenas e tão-somente no desejo de manipular pessoas e situações em nosso próprio benefício”, avalia Irene. Quando fazemos isso “coisificamos” gente de carne e osso e as transformamos em meros objetos.

Elas passam a ser instrumentos que utilizamos para atingir nossos objetivos. E deixam de ter importância como seres humanos que são, com seus sentimentos, opiniões ou sensibilidade”, diz a terapeuta.

Quando o caso é muito grave, inclusive, uma pessoa pode chegar ao limite da psicopatia. “O psicopata olha a vida como um jogo de xadrez, e as pessoas, como peças. Tudo é muito frio, calculado. Ele não se importa em mentir, humilhar ou enganar para conseguir o que quer.”

Eterna vigilância

A maioria de nós não chega a esse ponto. Quando o assunto é controle, ficamos no básico um, ou chegamos até o nível dois ou três, no máximo. Helena H., por exemplo, acredita ser uma pessoa controladora, mas só até certo ponto. Uma das maiores tradutoras-intérpretes de São Paulo, ela é sempre convidada para traduzir palestras de cientistas internacionais, grandes mestres religiosos e terapeutas.

O problema é que ela não se contenta apenas em fazer o seu trabalho. “Ao traduzir, fico sempre de olho em que ainda não sentou na plateia e chamo sua atenção, observo quem chega atrasado e faz barulho, faço cara feia se está faltando água no copo do palestrante, me irrito publicamente se alguém está cochichando e atrapalhando a palestra… Enfim, não dou e não tenho nem um minutinho de sossego”, diz.

Conhecida em casa por apelidos como “generala” e “Fräulein Helena”, numa alusão a uma imaginária governanta alemã que ela encarnaria, é constantemente convidada para dormir em hospitais como acompanhante dos doentes da família. “Fico atrás da enfermeira para ver se ela deu o remédio certo na hora certa, se a pessoa está bem acomodada na cama, se o sol está batendo em seus olhos ou se estão falando alto no corredor – se estiverem, saio e dou a maior bronca”, conta. 

Emoções em cheque

Se de um lado tudo isso é bom, de outro a mata de cansaço. E a razão é simples: o preço do controle é a eterna vigilância. E esse estado de atenção tenso e preocupado causa um enorme desgaste emocional. “É um estresse constante. Nada pode sair do que eu penso estar correto, e vigiar ou antever as variáveis que podem ocasionar problemas consome toda minha energia”, ela reconhece. Uma vida assim engessada também pode ficar cinza e monótona, e se tornar um grande convite à depressão e ao desânimo. 

E o que faz um controlador parar? “A consciência de que estou tentando manipular demais uma situação. E quem geralmente dá esse toque fundamental é o outro. É ele que me diz: ‘Helena, sua função aqui é só essa ou aquela’ ou ‘Helena, você está ultrapassando os limites’. Sozinha, por mim mesma, ainda é difícil perceber quando estou extrapolando”, admite a intérprete.

Outra boa maneira de deter é enxergar nas atitudes de outra pessoa próxima o próprio jeito de ser e reagir. Enxergar as manias, o amor a detalhes, o perfeccionismo e a eterna tensão num outro controlador ajuda a nos conscientizar de nossas próprias características.

Como nos veem

Prestar atenção em nossos apelidos também ajuda. “Já trabalhei com uma chefe que era chamada de Clint, numa alusão aos duros e implacáveis personagens que Clint Eastwood interpretava nos anos 1970, e tive uma madrasta cujo carinhoso apelido de família era Hitler. Todos eles eram controladores de mão-cheia”, afirma a gerente de produtos paulista Maria de Lurdes Sobral.

A aparência física também dá pistas preciosas: músculos tensos e rígidos, peito projetado para a frente, maxilar travado ou corpo muito denso podem igualmente indicar sinais de um controlador contumaz, segundo a avaliação da terapeuta Irene Cardotti, que também é especialista em bioenergética. 

Porém, mesmo conseguindo identificar ou administrar nosso lado mais dominador, ainda não respondemos à pergunta principal dessa história: por que será que somos assim?

A base de tudo

Duas emoções básicas movem o comportamento humano: o medo da dor e o prazer. E elas também alicerçam o nosso desejo de controlar. “Queremos manipular por medo de que as coisas fujam do nosso controle e nos causem sofrimento. É medo da dor, insegurança. O que não percebemos é que esse desejo nos aflige tanto ou mais do que o sofrimento que teríamos se deixássemos as coisas tomarem seu próprio rumo”, diz Irene Cardotti. 

Isto é, o controle exacerbado pode estar ancorado no medo. Mas não só. Desde os primórdios da psicanálise, seu criador, Sigmund Freud, afirmava que o controle também tinha a ver com o prazer quase erótico em exercer poder. E alguém que domina e controla uma situação pode obter muita satisfação com isso. O poder também dá uma sensação de segurança, que distancia a pessoa do medo de experimentar dor

A questão é que essa sensação que nos alivia se baseia numa formidável ilusão: a de que realmente conseguimos controlar a vida. Feliz ou infelizmente, porém, a existência se revela bem mais indomável e resistente do que podemos imaginar.

Fúria de titãs

O desejo de controlar a própria existência levanta muitas perguntas de caráter universal: será que existe destino? Como funciona a lei do carma? Tudo está predeterminado desde o início? Temos mão no jogo da vida ou ela já foi escrita nas estrelas? 

O filme A Fúria dos Titãs, um clássico das sessões da tarde na televisão, traduz em imagens uma das possíveis respostas a essas perguntas. Em determinados momentos da fita, os deuses do Olimpo, que assistem de cima à trama que se trava lá embaixo na Terra, simplesmente dão sumiço, substituem ou mudam de lugar determinado personagem, como se se divertissem com um enorme jogo de xadrez.

Ora ajudam o herói com suas benesses e presentes, ora o atrapalham com monstros e titãs. O princípio do jogo é aparentemente benévolo: tudo é feito para que ele possa aprender com os obstáculos e fazer seu caminho com o reconhecimento de que pouco pode fazer sem a ajuda divina. Isto é, mostra que as grandes questões existenciais que têm a ver com o desenvolvimento de sua consciência estão fora do seu controle. Ponto.

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Não temos controle

Provavelmente não dependemos de deuses barbudos que jogam xadrez no universo. Mas é possível que estejamos sob o jugo de forças e leis capazes de tirar o controle de nossas mãos, especialmente quando não as conhecemos direito.

“Minha mãe sempre nos diz o quanto é inútil fazermos planos. Eu não concordo. Acredito que seja importante planejar a vida, se o fizermos de olhos bem abertos. Devemos identificar e agradecer a sorte que temos e reconhecer os eventos aleatórios que contribuem para o nosso sucesso”, diz o professor e matemático norte-americano Leonard Mlodinow, que escreveu um livro, O Andar do Bêbado, onde analisa algumas das possíveis leis pouco conhecidas que atuam na nossa vida, como a da aleatoriedade. Ele diz, por exemplo, que o acaso tem um importantíssimo papel em nossa existência. E que é falta de bom senso querer eliminá-lo

Se enrijecemos no controle, se engessamos a existência na maneira como achamos que as coisas devem acontecer, diminuímos as chances da aleatoriedade, ou o acaso, se manifestar – uma perda verdadeiramente lastimável, de acordo com Mlodinow. Algumas pessoas reconhecem isso intuitivamente.

Acho que o universo é bem mais criativo do que eu. Planejo, organizo, faço cálculos e previsões, mas, se observo uma mudança de rumo, não a descarto imediatamente. Primeiro vejo se o quadro geral pode se beneficiar com ela. O engraçado é que na maioria dos casos a interferência se revela positiva”, afirma o analista de sistemas Celso Ayres.

“Mesmo se considerarmos que a chance de esse imprevisto ou mudança ser favorável seja apenas de meio a meio, ainda assim teremos 50% de possibilidade de que essa interferência seja benéfica, o que é um índice bem alto. Um controlador exacerbado jamais admitiria isso.” 

Abra-se para o novo

Verdade. Outra lei que é a maior casca de banana em nossos desejos de manipulação é a polêmica Lei de Murphy. Pode anotar no seu caderninho: quando o controle é excessivo, o tiro sai pela culatra. Aqui cabe uma historinha conhecida no meio gastronômico paulista.

Conta-se que um respeitado crítico de gastronomia foi visitar um sofisticado restaurante paulista para fazer sua avaliação anual e conferir as estrelas correspondentes ao estabelecimento. Ele pediu um risoto, uma das especialidades da casa, e ficou esperando – muuuito tempo. Finalmente o prato chegou, com o arroz quase cru.

A verdade é que a cozinha ficou em pânico por causa da presença do jornalista e do excessivo controle de quem a comandava. Como conhecia o talentoso chef, o crítico o chamou à mesa e perguntou qual o motivo de tal desastre. Ele respondeu desconsolado: “Scusi, signore, fizemos de tudo, ma no final só saiu um risoto de crítico”. 

Pois é. Perdemos a sabedoria de que existe o momento de assumir responsabilidades, planejar, organizar e realizar. Mas que também pode haver outros para soltar as rédeas, relaxar, criar e aprender com o que se apresenta. E que é saudável ter essa possibilidade bem presente e viva nas nossas escolhas e decisões. Let it be, deixe acontecer. Pelo menos de vez em quando, claro.

Entre o céu e a terra

Os chineses também têm uma maneira muito interessante de ver esse assunto. Para eles o universo se move num fluxo contínuo e cíclico, o caminho do Tao. Céus e terra seguem esse fluxo constantemente, e é possível estar alinhado com esse movimento.

O I Ching, o Livro das Mutações, é uma sequência de 64 flashes, ou hexagramas, que fotografam os diferentes momentos desse fluxo. Portanto, consulta-se o I Ching para saber em que momento se está com relação a esse caminho: se é a hora de agir ou de ficar bem quieto, de celebrar a riqueza que se aproxima ou de encher os celeiros para tempos difíceis.

Não é um movimento de controle, pois o fluxo do Tao é impossível de ser controlado, mas sim de sintonia e alinhamento com o que acontece entre céu e terra. “Uma compreensão aprofundada (do I Ching) permite constatar que este jogo palpitante se reflete no entretecer de cada vida humana, a cada passo“, escreveu Alayde Mutzenbercher, a autora do primoroso texto da edição brasileira do livro milenar chinês. 

Outra lei cósmica, de acordo com os budistas e hinduístas, nos impede de controlar tudo: a lei do carma. E ela é bem simples: toda ação (karma, em sânscrito) gera uma reação, ou toda causa produz um efeito. Se você fizer algo que é bom e virtuoso, colherá bons frutos; se fizer algo ruim, sofrerá por isso, nessa vida ou em outras. Uma lei inexorável. 

Energias ao nosso redor

Segundo essas tradições, o ego deixa sempre algo, e faz de tudo para obtê-lo, mas nem sempre há bom carma suficiente para consegui-lo. Por isso a tentativa de controle é inútil: algo muito mais forte e poderoso pode estar atuando e se sobrepondo aos nossos desejos.

O estudioso de tradições orientais Paul Brunton, no livro O Que É o Karma?, ilustra o assunto com uma metáfora. Ele diz que existem milhares de sementes cármicas que podem amadurecer numa vida, tanto boas quanto más. Só algumas delas irão fazer isso, e tudo depende de onde iremos colocar a água para regá-las.

Se regarmos boas sementes, elas florescerão; se forem sementes ruins, também. Além disso, age um carma residual que vem de outras vidas que pode amadurecer justamente nessa – e não temos mão sobre isso. Ele pode ser suavizado por práticas espirituais ou, em alguns casos, até eliminado.

Disse Chagdud Rinpoche, um grande mestre tibetano que viveu entre nós: “Quanto maior a bondade de uma pessoa, maiores as suas experiências de felicidade. Quanto maior a negatividade de uma pessoa, maior o seu sofrimento e dor. A realidade atual do nosso dia a dia é o resultado cármico dos nossos pensamentos, palavras e atos, nesta vida e em outras”. 

Pois então: o único jeito de mudar o futuro é agir sobre o aqui e o agora, conforme o cenário que se apresenta. E o desejo de manipular a vida com obsessão passa a quilômetros disso.

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