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O poder da criança que fomos
Vanessa Bucceri | Unsplash
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As cartas, desenhos e outros achados da infância guardam as provas do menino ou da menina que um dia fomos. Esse resgate nos ajuda a retomar nossa rota quando nos sentimos perdidos

Minhas memórias escritas da infância se resumem a três papéis: um boletim escolar de 1988, quando eu estava com seis anos; uma página de anúncio publicitário de surf do mesmo ano, cujo o verso em branco foi transformado em uma carta para o Papai Noel; e uma pequena folha de rascunho usada para avisar ao bom velhinho o endereço exato em que ele deveria entregar o pedido. Somente há poucos meses, aos 32, soube da existência dessas anotações, guardadas pela minha mãe em uma caixa abarrotada com cartinhas amorosas enviadas pela minha irmã, dois anos mais nova que eu. O que pode parecer uma predileção materna não o é. Apenas denota uma faceta da personalidade presente desde então, e claramente assimilada agora, com esses achados: o meu acentuado desapego familiar.

Enquanto isso, no boletim, me deparo com outras particularidades descritas pela professora e que evidentemente dizem sobre quem continuo sendo: “Gustavo é bastante calmo e se concentra com grande facilidade (…) Demonstrou pouco interesse nos preparativos para a festa de fim de ano”. Sim, ainda sou capaz de escrever um tratado, mesmo estando em um ensaio de bateria de escola de samba, alheio ao surdo, tamborim, pandeiro, reco-reco e afins; e, por favor, não me convidem para as anuais festas corporativas: quase certeza de que não irei.

A escritora Liliane Prata, hoje com 34 anos, também moldou a adulta que seria ainda bem pequenina. Aos seis anos, ela mal sabia escrever, mas já importunava os vizinhos do prédio onde morava, em Belo Horizonte (MG). Ela subia e descia os andares dos seis prédios do condomínio batendo de porta em porta para oferecer seu novo livro, ou melhor, seus novos livrinhos autorais. A menina, que criava incessantemente, tinha sempre inúmeras histórias no papel, ilustradas por ela mesma, além de revistinhas que montava, recortando ilustrações e fotos de outras revistas. Tinha até serviço de assinatura para os leitores mais assíduos.

“A pessoa pagava um valor, uma vez por semana, e eu levava duas revistinhas e um livrinho. Muita gente mora nestes prédios, então tinha de ter bastante produtividade para alcançar a demanda. E na escola eu vendia para as coleguinhas. Tudo era artesanal, não revisava, era texto único”, conta ela, entre uma risada e outra.

Vasculhar álbuns antigos de fotografias
e caixas com os pertences da infância,
repletas de brinquedos, cartas, desenhos e
outras miudezas do passado nos ajudam
a reencontrar a criança que um dia fomos

Na prolífica autora mirim, até crises de inspiração já deixavam seu cabelo em pé. Certa vez, anotou: “Tem coisa pior do que quando eu pego um papel e não consigo escrever nada que presta? Papai diz que isso é normal”. Foi também por iniciativa própria que, aos 13 anos, Liliane iniciou uma série de diários feitos para, nada mais nada menos, a filha que teria no futuro. “Eu sou uma metamorfose, cada dia tenho uma opinião diferente e resolvi registrá-las. Porque assim a minha filha vai poder ler.”


Minha criança
Os meus achados de infância, as lembranças de Liliane, levam a uma questão maior: o quanto a nossa personalidade, já adultos, repete a mesma que se moldou na infância? Tudo é um desdobramento do que se foi? O quanto ela nos conta sobre quem somos? A psicanalista Maria Lucia Homem me ajudou com essas respostas. “Tem uma metáfora chinesa da cera, a qual diz que a gente nasce como uma cera, ainda mole, e vai tendo as primeiras marcas, que são as mais profundas; depois recebe outras camadas e vai endurecendo. As primeiras impressões são os traços de memória, que estão gravados inconscientemente”, enfatiza. “Então, não é que você seja o que sempre foi, mas vamos dizer que as grandes interrogações humanas já estavam presentes desde sempre. E com 3, 4, 5, 6 anos, que são momentos muito ricos de posicionamento perante esses grandes enigmas, você já cifra a questão e dá uma primeira resposta.”

Nessa jornada, nos deparamos com
sonhos perdidos tempos atrás, como
o desejo de ser astronauta, bailarina
ou arqueólogo. Brincadeira de criança? Talvez.
Mas olhar para isso pode nos dar muitas
pistas da nossa verdadeira essência

De acordo com Maria Lucia, é logo no início da vida que a criança se confrontará com o que ela chama de três grandes pilares do ser: identidade, sexualidade e desejo. O ponto de partida é a identificação do nome próprio e a relação da criança com ela mesma. “O nome próprio é um símbolo fundamental em todas as suas buscas e desejos. A letra é um desenho e ele não é apenas o conjunto de uma letra qualquer, é a identidade de quem somos. É fundamento”, diz. Depois, entramos no chamado Complexo de Édipo, com a decisão de como nós, quando crianças, nos posicionamos sobre o enigma da diferença dos sexos. “O embate é sobre o que sou eu, de onde vim; você é minha mãe, eu nasci da sua barriga, você é meu pai. É o narcisismo primário. E o embate de menino, menina, homem, mulher, fazer pipi de pé, sentado. Que diferença é essa? É complexo para uma criança. E ela faz sua primeira grande posição com relação a isso com 3, 4 ou 5 anos também”, explica Maria Lucia. “Depois da adolescência, ela reafirma isso e faz um encontro dela com o que já era até ali. Se tudo deu certo, ela não vai se perder de si mesma.”

Ainda pequenos, somos também confrontados com o desejo, com a descoberta daquilo que gostamos de fazer. Tem criança que, mal sabe falar, já mostra interesse por animais, desenha girafa, leão, gosta de livros sobre o tema. É preciso levar isso em conta na hora das grandes decisões da vida. O amor pelos bichos pode levá-la à veterinária como profissão. Da mesma maneira, quando estamos perdidos entre um ou outro caminho, essa análise sobre gostos e desejos de quando éramos criança pode nos apontar a direção, nos fazer retomar a nossa essência. “É um desejo firme, claro e decidido”, diz Maria Lucia. “Assim como existe, por exemplo, a pessoa que sempre foi do universo letrado, gostava de ler, de escrever. Daí foi trabalhar, ganhar a vida e voltou para a poesia com 50. Ou sempre as escreveu e guardava em um baú. Foi assim com (o poeta) Fernando Pessoa. O elo está ali”.

Mudar e voltar a ser o mesmo
“A gente é o que é. Mas ao mesmo tempo a gente se transforma. Não sei explicar onde está a fronteira daquilo que é transformável e o que é essência. Fico achando que a gente já é e o mundo tenta nos educar para uma coisa que a gente não é. Você cresce, vai tentando se virar e chega uma hora que se cansa e fala: ‘Não vai dar’. Aí você muda e pensa que está mais feliz. Daí vai ler um negócio do passado, da infância, da adolescência, e descobre que você mudou para ser o que já era, voltou para o seu coração.” A bela definição da atriz Clarice Niskier surgiu enquanto tomava um sorvete e, a convite de vida simples, relia antigos diários.

Esse mergulho nas antigas recordações
nos ajuda a encontrar respostas para dilemas
atuais, principalmente nos momentos de encruzilhada.
A vontade de ser uma cozinheira ou um escritor
pode voltar a bater forte e auxiliar a traçar uma nova rota

Escritos em  diferentes  fases,  incluindo a transição da infância para a adolescência, a pouca maturidade da época não impediu a construção de frases de tamanha profundidade que em muito se relacionam, inclusive, com diálogos presentes na peça “A Alma Imoral” e “A Lista”, ambos monólogos de Clarice em cartaz em São Paulo. Em determinada folha, ela escreveu: “Clarice, é preciso não se ausentar”. Em outra, fez o seguinte poema: “Eu não sou contra um assassino. Sou contra muitos assassinos. / Eu não sou contra um vaso de plantas, sou contra muitos vasos. / Não sou contra a nota de um cruzeiro, sou contra milhares de notas de um cruzeiro. / Sou contra o poder das coisas, não o seu valor em si.” E, então, ela comenta: “ao ler isso, percebo que aquilo que escrevia na adolescência tem tudo a ver com o que faço e penso hoje.”

A mesma sensação de reencontro com sua essência foi sentida pelo inventivo Fause Haten, ao se deparar com relatos e cartas que o mostravam – diferente da infância tímida e  reprimida que se lembrava – como uma criança alegre, que liderava as brincadeiras. “Isso para mim foi uma supresa, mas, ao mesmo tempo, retrata uma característica que tenho hoje de direção e coordenação.” A necessidade de se projetar em diferentes áreas, da moda à direção cênica e à música também já fazia parte desses achados. “O que é curioso é perceber que nasci em uma família que não lia nem ouvia música e pouco ia ao cinema. No entanto, esse era um interesse que se desenvolveu em mim. Eu achava uma agressão ser obrigado a ler livros com data marcada de entrega. Anos depois, quando saí do colegial, meus interesses naturais foram se desenvolvendo, como o gosto pela leitura e pelas artes.”

O caminho de volta
Só que o caminho para o redescobrimento com essa criança pode não ser fácil, direto e tranquilo para todo mundo. Tem gente que, assim como Fausen, não se encontra na casa da infância, seja porque os pais eram duros ou muito liberais, seja porque não havia afeto em demasia. Só que a origem não necessariamente representa a criança que um dia você foi. E há que se diferenciar isso para, então, estabelecer um reencontro e fazer as pazes com você mesmo. A terapia ajuda bastante nesse processo, assim como a tarefa que propomos ao longo desta reportagem: abrir as caixas do passado, os álbuns de fotografia, os armários da infância e procurar ali vestígios, como brinquedos, desenhos, anotações, boletim escolar. “Chega um dia em que você pode repensar suas definições básicas”, acredita a psicanalista Maria Lucia.

É essa sensação que impera em Fause Haten. Crente que envelheceu profundamente na adolescência, ele percorreu anos para rejuvenescer até chegar ao momento atual, apontado por ele como o mais vibrante de sua existência, até agora. “Nos meus 16 anos, era velho demais para ser bailarino e me dedicar a isso. Hoje, sou jovem o suficiente para me dedicar a dança, mas tenho um corpo que vai responder completamente diferente a isso. A consciência dessa minha realidade tem me levado a lugares muito interessantes, que criam formas novas de fazer as coisas e hoje tenho mais consciência do meu lugar no mundo”, acredita ele. Fazer as pazes com o passado e com a sua criança é também encontrar esse tal lugar no mundo, agora com muito mais segurança para seguir em frente. No mínimo, mais completo.

GUSTAVO RANIERI é jornalista e, desde muito pequeno, foi absorvido e transformado pelos livros e pela força das palavras no papel.

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