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O circo no meio da rua
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Entretenimento antigo, o circo ainda sobrevive, principalmente pela magia que floresce

Muitos anos depois, diante da fachada metálica e multicolorida do Circo Stankowich, este escrevinhador circense havia de recordar aquela noite remota em que seu pai o levou para conhecer o picadeiro. Tratava-se do Circo Irmãos Robatini, armado em um terreno amplo e bem localizado, bastante cobiçado pelas trupes circenses quando visitavam Três Corações, no sul de Minas Gerais. Do ambiente, ficou a lembrança de uma lona avermelhada salpicada de estrelas amarelas. Uma boa pegadinha para um garoto que pensava, até então, que o céu poderia ser tingido apenas de azul ou de escuridão.

Naquela noite, levei o picadeiro para casa. Mais do que isso: para a vida. Recordo-me que, nos dias seguintes, busquei reproduzir no quintal da casa dos meus avós alguns números de malabares e de magia. Sem sucesso. O aplauso tímido vinha como presságio. Afinal, naquele momento, fugir com a trupe dos Robatinis não seria um bom negócio. Passado algum tempo, escarafunchando o passado de minha família, descobri uma prima distante que, bem ao contrário de mim, teve a coragem de partir com o circo. Justificável: a liberdade circense sempre deslumbrou. “Criou-se um imaginário maravilhoso em volta do circo, vislumbrando esse lugar como sendo o da magia, da sensualidade, do esplendor, da vida errante e, claro, da liberdade. Da liberdade que eu não tenho no lugar onde estou.

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Para muitos que seguiram em fuga, a vida nômade também era vista como sinônimo de não trabalho, entendendo os saberes artísticos não como função, mas apenas como glamour e aplausos. Quando chegavam ao circo, os fujões percebiam que havia muito trabalho e bastante dedicação dos artistas”, avalia a historiadora circense Erminia Silva, autora de Circo- Teatro: Benjamim de Oliveira e a Teatralidade Circense no Brasil (Altana).

Palhaçadas sedutoras

Por falar em mistério, quando escutei pela primeira vez a canção Hoje Tem Espetáculo?, uma dúvida pairou sobre a minha compreensão. Trata-se justamente da resposta a uma pergunta daqueles versos: “E o palhaço, o que é? É ladrão de mulher!”. Passei, desde então, a fitar os narizes vermelhos com tamanha desconfiança dada justamente a essa possibilidade de surrupiar o coração de qualquer donzela nas tardes de matinê. Tirei a prova dos nove quando conheci o circense Téofanes Silveira, o Palhaço Biribinha.

Para o meu espanto, a pilhéria de picadeiro era coisa séria e verdadeira. “O palhaço é ladrão de mulher. Por causa disso, sempre havia confusão com os rapazes nas cidades por onde passávamos. Normalmente ele simpatizava com alguém do lugar, dali a pouco viravam namorados e, com o passar do tempo, casavam-se. Só comigo isso aconteceu quatro vezes. Na terceira vez, por exemplo, deu-se da seguinte maneira: precisei de elenco para um espetáculo no circo e, durante a seleção, duas irmãs passaram. Casei me com uma delas”, contou Teófanes.

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Tomei a resposta como definitiva por quase oito anos. Mas durante um bate-papo com Gabriella Argento, a palhaça Du Porto, integrante do Cirque du Soleil, resolvi repetir a questão. Surpreendi- me com o que escutei: “As palhaças são historicamente sedutoras. Não precisam roubar nada. As mulheres não roubam, elas fascinam, elas conquistam. Como acontece no espetáculo Amaluna com a minha personagem, a Mainha, ela confia no que é, busca o seu objetivo  e o conquista sempre”. Nesse mesmo sentido, outra dúvida ronda a aura encantadora dos palhaços: todo palhaço é um sujeito triste? No picadeiro faz graça, mas na vida real chora os dissabores amargos.

As tragicomédias

Na opinião do circense Pereira França Neto, o Palhaço Tubinho, trata-se de mais um dos mitos criados a partir da picardia fantástica do picadeiro. “Muitas vezes, o espectador pensa que o que está no palco será igual na vida real. Por exemplo, sou uma pessoa feliz, mas não tenho metade da alegria do Tubinho. Por isso, quem assiste à explosão de sorrisos, de piadas e de alegria dele, acha que vai encontrar isso em mim da mesma forma.”

Sendo mito ou não, percebe-se que o circense, até por também ser mortal e frágil, farta-se da comédia ao mesmo tempo em que se vê obrigado a provar as tragédias. São as tragicomédias. Escutei do circense italiano Leris Colombaioni, descendente de artistas da Commedia Dell’Arte, uma história que ilustra essa dobradinha. A cena se passou nas proximidades de Roma. “Bem antes de o meu pai conseguir comprar um caminhãozinho inglês, resíduo da Segunda Guerra, construímos uma pequena carroça. Não lembro a razão, mas sei que meu pai ganhou um burro e o colocou para puxar a carroça. Na hora da partida do circo, o burro empacou. Meu pai teve que colocá-lo em cima da carroça junto com nossas tralhas. O pior foi depois: todos nós descemos para empurrar a carroça… com o burro”, conta.

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Por falar em bicharada excêntrica, Márcio Stankowich, antigo domador de animais do Circo Stankowich, relembra um episódio envolvendo Roby, um chimpanzé metido a lutador. Jamais se esqueceu do incidente protagonizado na juventude, tendo lindas donzelas como espectadoras. “Fui impressioná-las e passei a gritar com ele. Em um determinado momento, o macaco partiu para cima de mim e saímos rolando pelo picadeiro. Apanhei feio. Vendo aquilo, as meninas caíram na risada. E depois para trabalhar? Naquela cidade, não entrei mais no picadeiro”, recorda o domador.

Distintos picadeiros

Os dissabores que os circenses do Stankowich e de outras trupes brasileiras passam no dia a dia, como a busca por escassos terrenos que ainda recebam as lonas, as intempéries do tempo, a falta de água e de energia nos dias de mudança, passam longe do elenco do Cirque du Soleil. Para começar, os artistas da trupe canadense não vivem em trailers, mas em confortáveis hotéis, com alimentação balanceada e acompanhamento de nutricionista, médico, fisioterapeuta e profissionais da voz.

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Também, ao contrário de muitos circenses que executam outras atividades no circo fora do picadeiro, os da companhia estrangeira não exercem outra função a não ser a de artista. “Por isso, somos muito cobrados. Nos circos tradicionais, muitas vezes, a plateia fica na expectativa de que aquele circense possa em algum momento cometer um erro. No Soleil, o espectador espera de nós a perfeição. Para isso, fazemos treinamentos exaustivos todos os dias. A beleza do Soleil está nessa disciplina”, conta Gabriella. Aliás, na infância, em Santos, foi frequentadora de circos tradicionais como Orlando Orfei, Vostok, além do Stankowich.

A espontaneidade do circense

Quando se pergunta a Kamila Stankowich, ilusionista da trupe, sobre a influência da estética do Soleil nos espetáculos tradicionais, ela dá uma leve torcida no nariz: “Não há inspiração, não temos o que espelhar. Temos a nossa característica, eles têm a deles. Só acho que o público brasileiro não dá valor ao que tem aqui”, opina. Gabriella, do Soleil, pensa diferente. “A identidade do Soleil influenciou a maneira de fazer circo não só no Brasil mas no mundo. Abriu um novo olhar sobre o espetáculo circense.”

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Quanto a outras transformações ocorridas no picadeiro, as quais muitos assinalam como a decadência do Maior Espetáculo da Terra, como a proibição do uso de animais, Erminia Silva entende ser resultado de uma das mais fortes características da produção do saber circense: a contemporaneidade. “O circense nunca foi o mesmo. A cada texto, personagem, público e encontro, ele se transforma. O circo está sempre em conexão e em sinergia com as mudanças da vida. E isso não está ligado apenas ao período histórico, mas a qualquer lugar onde o espetáculo possa ser realizado. O circo é tudo isso.”

Pluralidade de espaços

Ainda hoje espectadores e artistas atestam, sem refletir, uma falácia: “Lugar de circo é somente debaixo da lona”. A partir de uma visão, experimentada em uma noite remota, o Palhaço Biribinha faz a expressão cair por terra. “Apesar de estar sonolento, me enxerguei retirando a lona do circo e percebi que a plateia continuava no mesmo lugar. Eu estava em uma clareira, que era o picadeiro, e representava o meu papel de palhaço. Percebi que tenho o circo onde quiser. Independentemente de ter uma lona armada, o espaço alternativo da rua, teatro ou cinema me dá a possibilidade de fazer circo”, conta.

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Mas a pergunta “o circo vai acabar?” ainda assombra os artistas. Muitos optam pela resposta mais fácil: “Não! Enquanto houver uma criança, o circo continuará a existir”. Para embasar a sua negativa, Pereira França Neto vislumbra uma política cultural mais eficaz na recepção dos espetáculos de lona. “O circo não vai acabar. Porém, tem ficado cada dia mais complicado e difícil trabalhar, exclusivamente por conta da burocracia e da falta de espaço nas cidades. Com essa escassez, as lonas têm se afastado cada vez mais dos centros, algo que não é bom, pois o circo precisa ser visto, precisa mexer na paisagem da cidade. Se existisse uma política cultural legítima em prol do circo, acredito que ela não seria a de incentivo de verbas, mas a de conseguir espaços adequados nas cidades para as lonas”, destaca o palhaço.

Circo no meio da rua

Respeitável Leitor, uma colocação se faz pertinente para o desfecho desta história. Tomo a liberdade, então, de fazer uma menção ao início de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, nesta narrativa por único motivo: o mesmo fascínio de euforia provocado por ciganos esfarrapados no Coronel Aureliano Buendía ao apresentar-lhe o gelo foi sentido por mim ao conhecer, por meio dos Robatinis, o circo. Não só por mim mas por muita gente que teve o primeiro ou único contato com as artes sob uma lona circense. Por isso, contrariando os pessimistas que professam “um dia ele vai acabar”, exaltemos os seguintes versos: “Oh raio, oh Sol, suspende a Lua! Olha o circo no meio da rua!”.

Tiago Gonçalves é jornalista e pesquisador de circo- teatro, acredita ter excursionado em um circo de variedades numa de suas vidas passadas.

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