Mais paz e menos irritação
De repente a vida parece estar fora de controle e você sente irritação, fica sem paciência, infeliz. Entenda o que detona esse processo e como transformar essa sensação tão desconfortável.

Lembra do bichinho do rã-rã? Segundo um antigo comercial da tevê, esse bichinho se aloja na garganta e nos obriga a pigarrear (rã-rããã…) para reduzir o incômodo provocado pela sua presença. Mas o que aquela propaganda, feita para vender pastilhas, não contava é que o metafórico bichinho às vezes se instala na alma. Como a irritação que provoca na garganta, ele também é o responsável por uma dor que raspa, uma desagradável sensação de areia, um sentimento difuso que nos diz que nada está bom do jeito que está e que isso é quase insuportável. Vamos precisar bem esses sentimentos: a irritação não é uma raiva que explode como um trovão, mas uma emoção contida dentro de um caldeirão que ferve. Com a ausência de pastilhas ou bálsamos para aliviar essa insatisfação da psique, nos tornamos impacientes, intolerantes, ansiosos, mal-humorados, deprimidos.
Agora vem a boa notícia: se é possível acabar com o bichinho do rã-rã quando ele agride o corpo, também é possível eliminá-lo ao atacar a alma. Para isso, é preciso rastrear como ele age e como se infiltra em nossas defesas. Vamos ver também como a irritação se torna forte com o nosso auxílio e como identificá-la, quando ela resolve se camuflar. Por último, vamos ter à mão os equivalentes emocionais aos bálsamos e pastilhas, assim como as vitaminas para tornar a alma mais fortalecida. Quando esse bichinho é descoberto fica até mais fácil acabar com ele. É o que vamos ver em seguida.
O reino do coração
Primeiro, vamos conhecer onde nasce a irritação. E a tradicional medicina chinesa pode auxiliar muito nisso, pois ela se refere aos circuitos energéticos do corpo e como eles influenciam nossos estados emocionais. “É uma medicina milenar, que trata do corpo físico, emocional, mental e espiritual. Eles estão profundamente interligados”, diz o acupunturista Rodrigo Bittencourt, de Petrópolis (RJ), que tem mais de 20 anos de prática. E a primeira revelação de Rodrigo é bem curiosa: a irritação difere muito da raiva. “Ela faz parte de um circuito energético diferente. A irritação nasce no coração e é uma emoção relacionada ao elemento fogo.” Ela é mais existencial, contínua (em maior ou menor grau), como se fosse um sentimento de fundo relacionado mais à essência da pessoa do que uma resposta imediata a algo que acontece. A irritação pode até se tornar crônica e se transformar numa característica de personalidade (uma pessoa irritadiça). “Já a raiva se origina no fígado: é totalmente reativa, explosiva, agressiva e momentânea. É ligada ao elemento madeira, cuja combustão é rápida”, explica ele.
E nem é preciso dizer que a causa da irritação é interna: algo que existe em mim é que detona o processo, e não o que acontece fora. É por isso mesmo que nos irritamos com coisas bobas, na maioria dos casos sem sentido. Ela é uma reação desproporcional ao que acontece externamente por conta de um desequilíbrio interno. Para a antiga medicina da China, todas as desordens de saúde nascem na mente (shen). “Acontece que, para os chineses, a mente fica no coração. O cérebro seria apenas um decodificador do que o coração diz e pensa”, afirma Rodrigo. Para essa medicina milenar, é no coração onde está a sede do espírito, da essência, dos pensamentos. A irritação é bem importante, pois prejudica o que temos de mais sutil e etéreo.
Mas o que faria o coração se desequilibrar e se tornar irritadiço? Excesso de sua própria energia: muito fogo, agitação mental e pensamentos. “O coração feliz é aquele que emite uma alegria serena, tranquila”, afirma o acupunturista. Não é euforia, mas uma irradiação harmoniosa de paz e contentamento. Portanto, tudo o que ajuda esse conjunto (meditação, oração, contemplação, práticas físicas tranquilas, como ioga e tai-chi, acupuntura, boas leituras, momentos de calma na natureza) contribui para a volta do seu equilíbrio. Receber e dar carinho, ser doce nas palavras, colocar mais afeto no que se faz ou massagens com óleos adocicados também são ações que podem ser consideradas como xaropes emocionais. O doce, segundo a visão chinesa, é um sabor ligado ao elemento terra, que tem a propriedade de suavizar e refrescar o elemento fogo. Mas cuidado com muito açúcar: para se equilibrar, o organismo pode gerar uma compulsão por chocolates.
Outro remédio essencial é falar, desabafar, com verdade e lucidez. “Não é o responder irritado, mecânico, mas a fala que traduz uma sinceridade profunda.” Porém, vamos admitir, às vezes essa conversa aberta é impossível. Quando esse é o caso, Rodrigo sugere que a pessoa vá para um lugar isolado na natureza e experimente cantar alto ou até mesmo gritar. Isto é, colocar a voz para fora. “Dá um alívio imediato”, garante. Mais efeitos do excesso de energia no coração: um falar superficial e abundante, quase histérico, vontade compulsiva de comer e comprometimento da circulação sanguínea, manifestado pelo surgimento de varizes. Em outras palavras, a irritação pode vir junto com outros sintomas físicos bastante explícitos. “Sinal de que o excesso de energia é tanto que já transbordou para outros pontos do corpo.”
Para que isso não aconteça, Rodrigo sugere evitar comidas picantes (relacionadas ao elemento fogo) e, pasmem, reduzir bastante o tempo na internet, na televisão ou no celular. “As imagens em movimento e a excessiva estimulação mental são associadas ao fogo. Melhor diminuir o uso.” Viver em lugares altos e mais frios, como as montanhas, também ajuda. Tudo isso faz bem, mas a acupuntura ainda é a forma mais direta e fácil de esvaziar o excesso de energia yang no nosso principal órgão vital.
Bom, já temos uma boa quantidade de indicações sobre como diminuir a irritação, segundo o olhar da medicina tradicional chinesa. Agora vamos conhecer uma pessoa que andou dez anos de mal com o mundo.
Eu não aceito
Heloísa Capelas passou anos desejando ser mãe de uma menina. Já tinha até um nome: Beatriz, aquela que traz a felicidade. Quando engravidou, não via a hora de enfeitar a menina e passear com ela. E Heloísa realmente pôde realizar o que tanto desejava durante um ano e oito meses, até Beatriz ter sua primeira convulsão. Heloísa já estava grávida de sete meses da segunda filha quando seu sonho ruiu. Quando voltou do coma epilético, Beatriz já não era mais a mesma. Chegava a convulsionar mais de 20 vezes em um único dia. Teve seu lado esquerdo paralisado e a crise ainda deixou um comprometimento mental. “Eu não aceitava aquilo. Cuidava, me dedicava ao máximo, mas queria Beatriz de volta.” E foi o que ela realmente tentou, durante dez anos, ao procurar e experimentar terapias (físicas, psicológicas, espirituais) para que a filha voltasse ao normal. A frustração era imensa e sua irritação correspondia a ela.
Frustração, sensação de impotência, medo e culpa são potentes ativadores da irritação. Heloísa brigava por tudo e com todos nesse período. Seu casamento quase naufragou. Não tinha paciência com os pais, que a ajudavam com os outros filhos (vieram mais dois) nem com as próprias crianças. Ela nem tinha ideia do que estava acontecendo consigo mesma.
O autoconhecimento foi fundamental para Heloísa Capelas nesses anos de briga consigo mesma. Aos poucos, entendeu o que acontecia e, o mais importante, para que tudo aquilo. “É fundamental perguntar o motivo por que determinada circunstância se apresenta, e não só o porquê. Acredito num universo inteligente, com significado. O ‘para que’ nos diz o que temos de aprender com uma situação. Nossa consciência pode evoluir e se ampliar com o que nos acontece.” Mesmo se o desafio for enorme.
Ao fazer uma terapia durante sete dias consecutivos, conhecida como Processo Hoffman (idealizado na década de 1970 pelo americano Bob Hoffman), Heloísa finalmente conseguiu se perdoar e aceitar Beatriz como era – e continua sendo, aos 33 anos. Foi um imenso alívio. Mais consciente, se especializou na terapia e hoje é diretora do Centro Hoffman do Brasil e escreveu um livro, O Mapa da Felicidade (Gente).
Escolhi o exemplo de Heloísa dentre muitos porque, no caso dela, é evidente que podemos aprender com a irritação. Se prestarmos atenção nela e descobrirmos o que a detona, nos libertamos, mas também podemos ajudar a libertar outras pessoas. Essa emoção negativa pode ser útil, portanto, pois sinaliza o que dentro de nós ainda não foi resolvido. Uma ferramenta que pode nos ajudar a ter mais consciência de nós mesmos e a evoluir.
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A vaca no estacionamento
Os autores americanos Leonard Scheff e Susan Edmiston nos propõem um exercício de imaginação bem interessante no começo do livro A Vaca no Estacionamento (Fontanar). Vamos supor que você entre numa garagem de supermercado, louco para pegar a única vaga que sobrou. De repente, um carro passa na sua frente e entra naquele lugar. E você está pronto para espumar de raiva com isso. Mas os autores lançam uma pergunta: e se fosse uma vaca que tivesse ocupado o lugar? Você estaria tão irritado assim?
Para a maioria das pessoas, o encontro inesperado com uma vaca que toma a sua vaga no estacionamento poderia gerar uma sonora gargalhada. Afinal, é uma surpresa engraçada. Mas por que você se irrita com o carro e acha graça da vaca? O que Leonard e Susan nos dizem é que não há uma diferença objetiva entre os cenários: em ambos, você seria obrigado a encontrar outro lugar para estacionar. Então o problema está dentro de você, e não fora. E não importa se você tem razão, ou quem fez o quê, objetivamente o resultado é o mesmo. “A única coisa que muda é sua reação ao acontecimento. Em outras palavras, ninguém é a causa de nossa irritação. Ela é inevitável. A irritação começa e termina com a gente”, escreveu a dupla de autores.
Alguém até pode dizer que o outro motorista tinha a intenção de prejudicar, e a vaca não. Mas essa versão não é tão simples assim. Muitas vezes alguém faz, sem perceber, algo que parece agressivo, mas que não é intencional. “Quantas vezes nos surpreendemos com a reação magoada de uma pessoa quando não tínhamos a mínima intenção de ofendê-la?”, perguntam os autores.
O outro motorista também pode ter outro bom motivo, uma emergência, por exemplo. Ou ser distraído. Ou achar que tinha razão, que foi você que dormiu no ponto. Em resumo, o propósito pode não ter sido nos prejudicar diretamente. Por outro lado, tem gente folgada também, que não respeita limites. Mas, em qualquer um dos casos, o problema não é o outro: somos nós. Nossa ação é reativa. Esquecemos que sempre podemos agir de uma maneira não tão mecânica diante de uma determinada situação. Temos uma escolha: nos irritarmos ou não.
E como reagir num primeiro momento de forma a não cair na agressão? Respirar fundo já nos coloca de forma diferente na situação. Expirar e inspirar profundamente acalma. Outro recurso é estar no maai, um pequeno intervalo de tempo entre duas ações, um conceito precioso encontrado nas artes marciais chinesas, como o aikido. Em outras palavras, não é preciso responder imediatamente a uma provocação. Esses segundos sem ação nenhuma podem lhe poupar um desastre. Quando resolver agir, não será mais de maneira reativa, mas com domínio da situação. Considere, depois, que não é necessário levar as coisas para o lado pessoal. “É melhor não dar tanto peso ao acontecimento. Nos irritamos muito facilmente por coisas sem importância”, diz a psicoterapeuta paulista Ana Paula Nascimento.
“Já temos duas ou três gerações de gente mimada que lida mal com as frustrações. E a irritação pode surgir de reivindicações absolutamente descabidas”, diz.
Pois é: antes de espernear, é melhor pensar. Tenho mesmo razão? Posso falar com o outro com firmeza, mas com tranquilidade, e permanecer dentro desse estado pacífico sem me importar com o que for dito pelo outro? Não se esqueça, temos sempre uma escolha. E, no geral, é melhor optar por baixar a guarda e iniciar um diálogo com mais racionalidade e estabilidade do que ceder a impulsos emocionais reativos. Na reação, você faz o que o outro quer. Na ação consciente, faz o que almeja, e ainda não se perde pelo caminho. E o resultado vai ser mais positivo do que um ranger de dentes.
Toma que o filho é seu
Até aqui você viu como lidar com a sua irritação. E como será que é lidar com a irritação dos outros? Uma historinha pode ajudar. Conta-se que um brâmane indiano, famoso na sua época, perdeu um dos seus discípulos para Gautama Buda, o Desperto. O professor ficou muito irritado e foi tomar satisfações com Buda, que o escutou atentamente. Depois de ouvir as queixas, palavras ásperas e acusações exaltadas do guru indiano, o grande mestre fez algumas perguntas: “Diga-me, ó brâmane, alguns visitantes costumam ir à sua casa para encontrá-lo?”. O indiano disse que sim. “E você prepara refeições especiais e presentes para eles?” O professor concordou de novo. “E se, apesar de sua generosidade, eles resolvem não aceitar os presentes?” O mestre resmungou, mas admitiu que teria de respeitar essa decisão.
E Buda fez a última pergunta: “E, se eles não aceitarem, para quem ficam os presentes?”. O homem respondeu que, é claro, ficariam para ele mesmo. E Buda falou: “O nosso caso é exatamente o mesmo, ó brâmane: você insulta a nós, que não insultamos em retribuição; você repreende a nós, que não repreendemos em retribuição; você ofende a nós, que não ofendemos em retribuição. Portanto, os seus presentes, que são suas ofensas, insultos e repreensões, ficam para você. Nós não os queremos nem os retribuímos”.
Há uma grande sabedoria aí. Toda raiva que recebemos dos outros, é deles, e não nossa. Não precisamos aceitá-la. Como nas artes marciais, damos um passinho de lado e deixamos toda aquela energia horrorosa passar. E, como fez Buda, é preciso realmente dar espaço para a irritação do outro se manifestar, sem julgamento. “Se tivermos uma atitude mental positiva, mesmo quando cercados de hostilidades, não nos faltará paz interior”, escreveu o dalai-lama no livro Um Coração Aberto (Martins Fontes).
Mas todo mundo sabe que isso não é fácil. É preciso prática, força interna e uma sólida estrutura interior. Mais uma vez aquele bom conjunto de vitaminas ajuda: meditação, oração, práticas contemplativas, terapias e autoconhecimento. “Se, apesar das injustiças do outro, você permanecer calmo, feliz e pacífico, sua saúde permanecerá forte, você continuará a ser alegre e mais amigos virão visitá-lo. Sua vida será mais bem-sucedida”, complementa o líder tibetano. Ninguém aguenta uma pessoa irritada por muito tempo e todo mundo gosta de estar perto de uma pessoa feliz e tranquila.
A proposta não é sermos bonzinhos. Você pode responder a uma pessoa irritada, mas com calma e firmeza. Prepare-se, fortaleça-se e você irá conseguir. Com essa nova atitude e postura, quem sabe até o irritadinho se aperceba da desproporção e inutilidade de sua reação.
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