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É hora de seguir em frente
Dan Gribbin
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Há muitos anos, os dias de Rob são iguais. Acorda, toma café e vai para sua loja de discos. Lá estão seus fiéis escudeiros e empregados, que também já completam alguns anos na mesma rotina. Apaixonado por música, ele coleciona discos, a ponto de não ter mais espaço em casa para guardar as relíquias. Mas o que Rob mais gosta de fazer é de pensar nas ex-namoradas e remoer o passado, lembrando detalhes dolorosos – por exemplo, quais foram os términos de relacionamento mais sofridos e humilhantes. Ainda que tenha uma namorada, ele insiste em abrir as portas do empoeirado armário de seu passado. 

Com Ryan, as coisas são diferentes. Ele não olha para trás. Vive viajando devido ao trabalho e é assim que gosta de levar os dias. Sem rotina, sem uma cama, sem namorada ou laços de qualquer tipo. Sua metáfora preferida consiste em dizer que a vida é uma mochila. Se a enchemos de coisas, ela se torna pesada demais para ser carregada nas costas e nos deixa lentos. O ideal, diz Ryan, confiando nas próprias palavras, porque sabe do que está falando, é que tenhamos a mochila vazia, para uma viagem sem sobressaltos, rápida. Fica completa a ironia quando descobrimos que o trabalho de Ryan é, em resumo, demitir pessoas. 

Algum dos dois exemplos causa identificação? Claro que são dois casos extremos, mas será que não há algo de Ryan ou de Rob em nós? Bom, em primeiro lugar, eles não existem porque são personagens de ficção. Rob é o roqueiro mal-humorado criado pelo escritor Nick Hornby e vivido por John Cusack no filme Alta Fidelidade (2000). George Clooney faz o papel de Ryan em Amor sem Escalas (2009). 

Um deles não consegue deixar o passado em paz. O outro foge da ideia de ter um passado. Ambos estão presos a modelos de vida que se tornaram tão fortes que parece não haver outra opção. Rob quase perde sua namorada (que depois se tornaria esposa) porque não consegue tirar da cabeça seu passado amoroso, sua loja e sua vida de sempre. Ryan, por sua vez, estava com tanto medo de criar laços que preferiu ficar longe de todos e se apegar ao estilo de vida “lobo solitário”. 

Para nossos dois personagens, a realidade se apresenta tão forte em um dado momento que todo aquele sistema, aquela certeza, rotina e constância os obriga a fazer uma escolha: ou tudo vai pelos ares ou estão condenados a se repetir eternamente. Isso, aliás, traz a lembrança de um terceiro filme, O Feitiço do Tempo (1993), com Bill Murray. Mas chega de falar de filmes e da ficção. E você, como se comporta quando a vida o cutuca? O que você faz quando é obrigado a se libertar de algum tipo de apego? Encara? Ou cria subterfúgios para não ter de mudar?

O que é apego?

Se você respondeu sim à ultima pergunta, não se preocupe, isso é normal. Todos nós temos dificuldade para lidar com novidades e mudanças. Até este repórter que vos escreve. Uma tarefa simples, como escolher o que entra e sai da matéria, pode se tornar um exercício de desapego. Imagine, então, operar mudanças radicais na vida. 

Para que nosso discurso não fique no vazio, devemos nos perguntar: o que é o apego? Como ele nasce? E, mais importante, como ele pode dominar nossa vida? Consultando várias fontes que abordam o assunto, fica claro que o apego não é inerentemente ruim, como nos ensina a teoria do apego, preconizada pelo psicólogo britânico John Bowlby (1907-1990). 

Segundo essa visão, o apego é uma relação afetiva e duradoura que se estabelece entre o bebê e sua mãe, ou quem quer que cuide dele. Dependendo de como esse vínculo é, o tal apego poderá ser de alguns tipos distintos. Quando a mãe atende às necessidades físicas e psicológicas do bebê, desenvolve-se o apego chamado de seguro. Isso significa que, mesmo quando separados de sua mãe, as crianças podem ser rapidamente reconfortadas para que fiquem tranquilas novamente. 

Existe também o chamado apego inseguro. Nesse caso, quando a criança se vê sozinha, entra em um estado de angústia e tem dificuldades para voltar a se acalmar, mesmo com o retorno da presença da mãe. Ou ainda, o bebê pode recusar o conforto materno, deixando de lado a segurança que a mãe poderia dar. 

Psicóloga clínica e especialista na Teoria do Apego, Luciana Ortiga explica que esse tipo de apego se forma no primeiro ano de vida, mas isso não determina o futuro de nossas relações. “Elas vão depender não só do apego formado na infância, mas também de variáveis que nos cercam, como a personalidade e o temperamento, entre outras.” A explicação, portanto, não está só nesse começo de vida, já que o apego não é imutável. 

Não só a psicologia pode explicar esse fenômeno humano. A neurociência mostra que o apego é um artifício usado pelos humanos para garantir sua sobrevivência. Como nascemos frágeis e sem a capacidade de conseguir comida ou proteção sozinhos, dependemos dos cuidados de nossos pais para viver os primeiros anos de vida. A infância é uma época de experimentações genéticas e sociais, segundo o que diz Louis Cozolino, especialista em neurociência da Universidade Pepperdine (EUA). Começa aí a formação de nosso cérebro. Aprendemos a decifrar as mensagens não-verbais de nossos pais e, portanto, a sermos seres sociais. 

De novo, isso não significa que estamos fadados a repetir o que aconteceu na infância. Já se sabe que, mesmo condicionado a repetir o que está fixado pelo aprendizado, o cérebro humano é capaz de criar novos caminhos neurais. Ou seja, somos capazes não só de aprender fatos e habilidades novas, mas também conseguimos nos reprogramar emocionalmente. Cozolino afirma que é nisso que se baseia a psicoterapia e que os analistas podem nos ajudar a contrabalançar as escolhas menos brilhantes que nossa natureza fez por nós. 

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Se o apego é uma característica psicológica e neurológica normal do ser humano, como é que ele se torna um problema nos adultos? Isso acontece quando o apego nos torna incapazes de seguir em frente, de conseguir causar em nós mesmos as transformações que sabemos ser necessárias. Como os nossos personagens Rob e Ryan, que entram em conflito com pessoas próximas porque não querem mudar e sair de suas rotinas. Ou como você, que não consegue se envolver em um novo relacionamento porque está preso em um romance do passado. Como chegamos a esse ponto? 

Pistas podem ser achadas no texto “As etapas da vida humana”, do suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), fundador da chamada psicologia analítica e seguidor de Sigmund Freud. Jung identifica um momento essencial na vida humana que causa medo e insegurança: quando nos vemos sozinhos com as decisões que nossos pais costumavam tomar por nós. Antes, tínhamos a liberdade de não pensar em problemas e dilemas. Uma vez adultos, a vida impõe exigências que interrompem nosso sonho de sermos eternas crianças, de acordo com Jung. Sem explicar em detalhes como é a melhor maneira de fazer essa transição, ele afirma que os indivíduos preparados conseguem sair relativamente ilesos de um potencial trauma. Nem todos, obviamente, lidam bem com uma mudança desse calibre.

Deixar de ficar em casa com os pais para ir à escola. Parar de chamar os professores de “tio” e “tia”. Entrar no colegial. Prestar vestibular. Começar a frequentar a universidade. Arranjar o primeiro emprego. Mudar de emprego. Decidir casar. A lista de momentos de confronto com a realidade pode nunca terminar. O tempo todo deparamos com decisões que podem abalar o mundo como nós o conhecemos e mudar nossa rotina e o que pensamos ser o futuro. É claro que, mesmo passando por tantas mudanças, temos nossa bagagem emocional e o aprendizado trazido pela vida e por nossos pais. Jung diz que para irmos além na vida precisamos contar com esses pressupostos. Eles são nosso ponto de apoio. 

O problema começa quando eles são “falsos”, segundo escreve o psicólogo. Isso quer dizer que as expectativas não estão de acordo com a realidade e com as condições externas. Então existe um descompasso entre o interior da pessoa e o mundo. Jung identifica uma característica comum a todos esses problemas internos, principalmente durante a juventude: apego à consciência infantil e uma resistência às forças que tentam nos jogar no mundo

Resistimos à vida que se amplia, às novidades que se apresentam o tempo todo, aos novos jeitos de pensar e viver. Justamente porque estamos presos a um jeito antigo de pensar, que imaginávamos ser mais seguro. Criamos uma proteção contra o novo e o estranho, colocando o passado em um falso pedestal. Enquanto nos ajoelhamos para reverenciar o que já foi, nós nos fechamos para a possibilidade de conhecer novos pontos de vista. 

Presidente do Instituto Junguiano de São Paulo, o psicanalista Glauco Ulson dá uma definição clara do problema: “O que é bom na infância já não é bom na idade adulta. A cada fim de um ciclo você tem que se transformar: uma morte e um renascimento”. Isso significa que, às vezes, é preciso deixar de lado o velho para que o novo entre. 

É claro que os vínculos que criamos com as pessoas e coisas são importantes para a vida, mas precisamos perceber quando eles não são mais necessários. Senão, segundo Ulson, viram obsessões. Em resumo, é preciso saber abrir mão, deixar de lado. 

Difícil desapego

Mas como conseguir abrir mão de algo que nos parece tão importante, tão essencial e, finalmente, enxergar novos caminhos? “A realidade é um fluxo ao qual é impossível se apegar. Não há nada seguro nesse mundo”, responde a monja Coen, Fundadora da Comunidade Zen Budista em São Paulo (SP). Ela usa uma metáfora simples para resumir o assunto: o apego é como pedir um sorvete e não tomar. Queremos ter a posse de algo que não pode ser facilmente guardado, que logo se tornará inútil e perderá sua função. 

O psicanalista Glauco Ulson concorda com a monja. Para ele, desapego tem a ver com saber impor limites, saber o que é possível e o que não é. Saber dos limites não significa abrir mão das nossas possibilidades, mas sim aprender a valorizar o que temos de melhor. Ulson também recorre a uma metáfora: desapego não é simplesmente deixar o barco correr, mas saber navegar usando a correnteza para desviar dos obstáculos. A canção “Timoneiro”, de Paulinho da Viola, diz que “o mar não tem cabelos que a gente possa agarrar”. Temos de contar não só com a bondade das águas que movem o oceano da vida, mas também com a integridade do barco que nos leva. Ou seja, temos de dar atenção a nós mesmos e cuidar para que as viagens sigam bem, mesmo que as condições externas não nos sejam tão favoráveis. 

Tanto para navegar como para viver é necessário coragem. Luciana Ortiga frisa que só querer mudar não basta, é necessário que haja ação. Por mais que pareça simples, o exercício do desapego é um trabalho duro e que às vezes precisa de ajuda externa, como a de um psicólogo. Primeiro, precisamos perceber que há algo de errado. Voltemos aos personagens de filmes Rob e Ryan. Será que faz bem ficar alimentando eternas lembranças de antigos romances? É saudável viver fugindo de amigos, família e possíveis encontros amorosos? Para conseguirmos nos libertar de algo, é preciso primeiro que saibamos dar um nome a isso. Então poderemos superar esse problema, deixar o passado descansar em paz e seguir em direção ao futuro.

Quem me navega é o mar

A próxima pergunta é: Como? Carl Jung diz que não existe uma universidade que nos prepare para o mundo e a vida adulta, portanto, a dificuldade é grande. Mas ele não se furta a dar uma dica: “É melhor seguir em frente, acompanhando o curso do tempo, que marchar para trás e contra o tempo”. Uma vida mais saudável é aquela que se volta para um objetivo que faça com que nosso movimento siga em frente, olhando para o que está à nossa volta e permitindo que sejamos transformados. Exercitar o desapego é saber mudar sem deixar de lado nossa essência. 

Quando estamos focados apenas em nós mesmos, só conseguimos ver e sentir nossos problemas e achamos que eles são os maiores de todo o mundo. A monja Coen sugere um exercício para começar a entender o que é desapegar-se. “Basta olhar para o céu, para o mar, para a imensidão. Somos um planeta mínimo, e somos muito pequenos”. Somos um barco navegando pelo mar, sem dúvida. Sujeitos aos humores do imprevisível e frágeis frente a um mundo inteiro grávido do desconhecido. 

Mas, se não tentarmos, nunca deixaremos nosso barco sequer sair do porto seguro de nossos apegos. De quando em quando, claro, é necessário parar em águas mais calmas e descansar. Só que, se nunca deixarmos o mar nos levar, nunca saberemos o que há além de nós mesmos. Singrando pela vida, exercitando o desapego, saberemos que, como diz Paulinho da Viola, a onda que nos carrega é a mesma que nos traz.

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