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Cuide-se, com amor
Darius Bashar
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Não faz muito tempo, aprendi uma lição primordial. Não preciso suportar roupas apertadas. Nem a urgência de ir ao banheiro, nem conversas enfadonhas. Tampouco o cansaço. Antes que meus olhos fiquem arenosos e vermelhos, decido cochilar. E, se eu falhar em algo, posso me dar a chance de acertar na próxima. Isso significa, para mim, cuidar-se com amor. Parece simples. Causa e efeito. Mas não é. Numa cultura que glorifica a superação ininterrupta dos limites humanos, como se, com isso, fôssemos autorizados a nos unir aos deuses do Olimpo, sermos bons, amorosos e praticar o autocuidado com nós mesmos não é o caminho mais óbvio. Nem o mais aplaudido. 

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Mas, afortunadamente, chega o dia em que dizemos: “Basta! Não vou mais me maltratar”. Eu mesma, anos atrás, me obriguei a assistir a uma aula no cursinho em plena crise de enxaqueca. Não sei se a náusea, entrecortada pelas pontadas na cabeça, era o que me incomodava mais ou a tristeza por ter me arrastado até aquela sala barulhenta. Algumas voltas depois, pude compreender que, naquela época, mais valia o desempenho do que a pausa no quarto escuro para me refazer e sondar o que se passava em camadas mais fundas do meu ser a ponto de o meu corpo sentir tamanho desconforto. “Eu me perdoo por isso”, repeti algumas vezes para mim mesma. 

Ao contar sobre esse episódio, sinto se aproximar da memória aquele poema que descreve o reencontro com o amor que sempre esteve dentro de nós e que podemos nos ofertar em doses diárias. “Devolva seu coração para si mesmo/ para o estranho que te amou toda a sua vida/ a quem você ignorou. Devolva-o para aquele que te conhece de cor”, instigam os versos de Love after love, de Derek Walcott

A poesia, sem dúvida, enternece, mas como nos cuidar amorosamente? Pressinto essa urgência porque ela também me alvoroçou uma porção de vezes, principalmente quando observava pessoas gentis consigo mesmas. Tão natural. Tão fácil. “Também quero me tratar assim”, urgia por dentro.

Gente amorosa por perto

Aqui, talvez, desponte uma primeira pista: mire-se no exemplo de gente próxima que seja fluente no cuidado amoroso cotidiano. Boas referências transformam vidas. E como ensinam! Tenho uma amiga, Fabiana Barreira é o nome dela, que se cobre de zelo, e é tão bonito de se ver. Ela se cerca de chás e óleos essenciais; vez em quando, faz banho de assento para honrar seu feminino e escalda-pés para relaxar; namora devagar o pôr do sol de Palmas, no Tocantins, onde vive, e reverencia a lua cheia como se estivesse se curvando diante de uma divindade; também nada cedinho, dança em certas noites, pratica yoga, recorre à acupuntura e à psicoterapia, passeia de bicicleta para a cabeça ficar leve e dorme o quanto precisa. 

Mas não pense que Fabiana é refém de um cronograma abarrotado, como se cuidar de si fosse igual a gerir uma empresa. Não, não… “Faço de acordo com as possibilidades do dia a dia ou em fases mais difíceis, nas quais priorizar o autocuidado me deixa mais apta a superar as adversidades da vida”, esclarece. Não há idealização, ela quer dizer. Somente o possível. E o que é o amor senão uma reconciliação com o bom e o belo que estão ao nosso alcance,  apesar  do  que  nos  assombra, não é mesmo? “O autocuidado traz tanto conhecimento sobre mim, até mesmo de saber que, em determinados períodos, só vou poder me dar o chazinho, um escalda-pés, uma boa noite de sono, e este vai ser o melhor cuidado que eu posso e preciso me dar”, frisa Fabiana. 

“Acredito que esse desejo nasce quando entendemos que, se fazemos parte de um todo, que é divino, então somos tão merecedores  de  cuidados  quanto  qualquer centelha que compõe esse Universo”, sustenta Luciana Chammas, terapeuta floral e  diretora  da  Healing  Florais.  Na  visão dela, cuidado de si e amor-próprio se retroalimentam. Um vai fortificando o outro e mostrando para a gente que dá para encontrar mais conforto, mais carinho e mais leveza aqui e ali. Como precisamos dessa parceria! Sem ela, nos esquecemos de nós, nos negligenciamos e deixamos que forças em trânsito do lado de fora nos invadam porque sequer conhecemos nossas bordas.

“Como consequência, atuamos no mundo segundo necessidades externas, as quais, muitas  vezes,  não  estão  alinhadas  com aquilo em que realmente acreditamos. E, por isso, acabam por consumir nosso tempo e energia”, alerta a terapeuta. 

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Nossa natureza é afetiva

Todos nós nascemos capazes de nos amar por aquilo que somos. Ana Fanelli, nutricionista e instrutora de Mindful Eating e Mindfulness, aprendeu essa verdade palmilhando as veredas da compaixão. Entretanto, exacerbados pelas tarefas e pelos desafios da vida, tendemos a vendar o  olhar  de  apreciação  que  poderíamos lançar sobre nós mesmos e, com isso, nos isolamos da nossa natureza afetiva. Porém, nada está perdido. “O autocuidado é escolher de forma consciente abrir este espaço para se cuidar, demonstrar que se importa com você, aprendendo a ter ações que promovam a saúde e o bem-estar”, defende Ana. Não tem problema se a prática for bem homeopática. Um pequeno gesto vai se alinhavando a outro e a mais outro até notarmos que uma teia de bem-querer e proteção já existe e é confiável. “Ao fortalecermos os recursos internos, regulamos nossas  emoções,  temos  mais  confiança, nos apoiamos e deixamos de nos comparar com outros ou depender de reconhecimento externo”, ela lista.

Isso porque, na compreensão de Anna Paula Rodrigues Mariano, Psicoterapeuta e Arteterapeuta Existencial, coordenadora do Espaço Cuidar, o exercício do autocuidado, seja nas delicadezas da rotina ou em momentos desafiadores, nos ajuda a desenvolver a autorresponsabilidade, sem a qual não há verdadeira liberdade. “Responsabilizar-se pelas nossas escolhas e pelas consequências delas é libertador. Nos sentirmos protagonistas da nossa história, cuidando de nossas decisões de forma que haja coerência entre o que pensamos, sentimos e agimos, é fonte inesgotável de amor-próprio”, enaltece a psicoterapeuta. 

Nossos relacionamentos também se beneficiam tremendamente do amor que direcionamos para nós. Veja: se aprendemos a nos cuidar por inteiro, também podemos estar inteiros nas nossas relações. Isso significa respeitar as fronteiras entre nós e as pessoas à nossa volta como também as características que nos diferenciam. “Entendendo esses limites, podemos estabelecer relações mais saudáveis e maduras, sem tantas projeções ou gatilhos emocionais, que são armadilhas em qualquer tipo de relacionamento”, afirma Anna Paula. 

Se isso ainda soa para alguns como egoísmo ou excesso de foco nas próprias necessidades, busquemos  outro  enquadramento:  “Vale  pensar  que,  enquanto  um ser estiver em sofrimento, o todo está em sofrimento. Portanto, melhor eu me cuidar para estar saudável e poder colaborar de maneira efetiva pela harmonia do mundo que quero construir”, sugere Luciana. E o que não falta no planeta são coisas quebradas à espera de mãos caprichosas. 

Então, não se censure. Quanto mais alimentamos  em  nosso  cotidiano  o  que nos nutre de verdade, mais espaço haverá para o cuidado gentil se alastrar. Não precisa ser algo complicado. “Uma tia que vivia com recursos escassos me disse uma vez que gostava de tomar banho com determinado  sabonete,  que  custava  mais caro. Mas esse era o presente que ela se dava. Simples assim”, conta Luciana. 

Para ela, fontes de carinho e satisfação, fáceis de se encontrar na nossa vida, são lembretes de que temos, sim, o direito ao autocuidado e, portanto, ao bem que ele nos faz. “Essas ações estabelecem um diálogo direto com a alma e promovem a paz no mundo interno. Paz que tanto procuramos”, vislumbra a terapeuta. 

O escritor Mario de Andrade era outro que extraía imensa satisfação de experiências comezinhas, que o colocavam em contato com seu corpo e com sua alma poética. “Eu tanto aprecio uma boa caminhada a pé até o alto da Lapa como uma tocata de Bach.” A justificativa: “Sempre gostei muito de viver, de maneira que nenhuma manifestação da vida me é indiferente”. Nem mesmo a dor, segundo ele, “feita para a gente sofrer”. Escoar mesmo. Adiante o que emergia para Mario era oxigênio. Puríssimo. Com o qual ele podia fazer mergulhos cada vez mais profundos na existência “Que sucede? A minha variedade de viver é tão incomensurável que não me fatigo dela nunca.” 

Na dor, mais amor

Saber destinar às nossas feridas emocionais o devido cuidado é um aprendizado e tanto. Um aprimoramento do amor que, às vezes, se manifesta com mais naturalidade em momentos e situações, digamos, mais brandos. Mas não na hora em que somos confrontados  com  nossas  partes  “feias” ou “fracas”. Para Ana Fanelli, a chave para a transformação está na honestidade com que nos dispomos a olhar os fatos nos olhos e admitir como nos sentimos em relação a eles. Não adianta negar que o machucado dói nem buscar soluções instantâneas. “É preciso  se  reconhecer  vulnerável  e  sair do modo habitual de ‘quero resolver o problema’, para reconhecer o desconforto, acolher a situação e escolher realmente se cuidar, se confortar, e, caso precise, buscar o apoio necessário”, ela pontua. E sugere a reflexão: Como podemos “cuidar de nós mesmos como cuidaríamos de alguém que amamos de verdade?”, repassando as palavras de Kristin Neff, coautora do Manual de  Mindfulness  e  Autocompaixão:  Um  guia para  construir  forças  internas  e  prosperar na arte de ser seu melhor amigo (Artmed). 

Se você está ferido e almeja a cicatrização, então é melhor cuidar do corte da melhor maneira possível. “O preço que se paga é muito alto quando negligenciamos a nossa dor”, sublinha Luciana Chammas. Por outro lado, se decupamos amorosamente o que se passa conosco, buscando uma cura que se instale na raiz do problema, não só passamos a ter um conhecimento mais completo sobre nós mesmos como, dali por diante, ficamos mais criteriosos em relação ao que escolhemos para nós. Se algo vier para reforçar a energia amorosa para com a nossa existência, será bem-vindo; do contrário, não nos servirá. 

Para  que  alcancemos  tal  refinamento, ressalta Anna Paula, temos que respeitar não só nosso ritmo e nossos limites como também  nos  percebermos  como  seres em  movimento,  em  perene  construção, desconstrução, reconstrução. “Somos dotados da capacidade de ressignificar até mesmo as experiências mais difíceis que compõem  a  nossa  biografia.  E  quando isso acontece, acompanhado pelo cuidado amoroso, o processo de nos tornarmos quem podemos/queremos ser ganha tons mais suaves, mais leves.” 

De fato, especialmente nos trechos pedregosos da nossa jornada, não há necessidade de se adicionar carga ao que já está pensando. Dependendo do caso, pedir ajuda aos mais próximos e fazer valer sua rede de apoio é a atitude mais amorosa que você pode conceder a si mesmo.

Aproveito a deixa para repescar um fio de prosa que havia ficado para trás no bate-papo com minha amiga Fabiana. “E como você faz para, como disse, ‘acolher suas fragilidades com amor?’” A resposta vem embalada pela doce lucidez que enxergo em seus gestos e olhares: “Fico com elas naquelas horas em que até a gente, se pudesse, fugia da gente também”. Ela ainda explica que, quanto mais embala suas aflições, mais humana se percebe e, consequentemente, mais amor tem a oferecer a si mesma e aos outros. 

Nem bem a conversa terminou, fui ao encontro da poeta Mary Oliver. Só para reforçar o que acabara de ouvir. “Você não precisa andar de joelhos e percorrer cem quilômetros de arrependimento no deserto. Você só precisa deixar que esse animal terno que é o seu corpo ame o que ele ama”, ela versa no poema Gansos  Selvagens. É isso! Mais zelo amoroso, menos autopunição. Como escreveu Carlos Drummond de Andrade, desse jeito banhado em candura, “a vida fica sendo assim uma ocasião de amar, e o amor se estende à própria vida”.

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