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Arrisque mais
Sadeq Mousavi | Unsplash
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Perdi as contas de quantas vezes fui ao colégio de bicicleta. E também em quantas delas fui parar no chão no meio do caminho. Acontece que quando a gente é criança e vive num emaranhado de esparadrapos, carrega os cotovelos esfolados por aí como se fosse coisa grande. Na infância, os machucados são tidos como imensas honrarias, títulos de nobreza, a marca de uma aventura que – ainda que malsucedida – nos distingue dos meninos da rua de baixo porque, enfim, respiramos fundo e tomamos coragem de nos arriscar entre uma ou outra traquinagem na volta para casa. Com sorte, nunca parei de ralar os joelhos. Tanto e de tal modo que meus amigos sempre sabem que eu perdi alguma coisa quando esbarram em um objeto manchado de laranja, tudo culpa daqueles frasquinhos de antisséptico que insistem em estourar dentro da bolsa. Continuo por aí, cheio de remendos.

Como se as minhas decisões – acertadas ou não – fossem se costurando na pele através de pequenas cicatrizes, marcas e arranhões que decidiram ficar comigo depois de tudo. De vez em quando, claro, tentei me livrar desses rabiscos. A gente, quando cresce, fica com essa mania besta de apagar todos os riscos.

Não só os que o tempo e a vida escreveram em nosso corpo. Mas também aqueles que cercam os nossos desejos, os sonhos que temos, as oportunidades que acenam lá de longe. Na vida adulta, arriscar-se, aceitar novas empreitadas, soa como algo distante, da infância, coisa de quem não tem muito juízo. Às vezes, é preciso perdê-lo para acertar as contas. “Quando eu falava para as pessoas que eu ainda não sabia andar de bicicleta, elas ficavam muito surpresas ou admitiam que também não sabiam”, diz o programador Bruno Romaskiewzc.

Em vez de se contentar com uma bela distância das magrelas, ele apostou que sobreviveria a alguns tombos. Então, combinou com um grupo de amigos de passar uma tarde no parque do Ibirapuera, em São Paulo, e só sairia dali depois de ter aprendido a pedalar.

Não se sinta tão seguro

Sem querer, no boca a boca, a brincadeira de Bruno foi crescendo e deu início à “Oficina de Coisas Banais que Você Deveria ter Aprendido na Infância Mas Não Aprendeu”, uma iniciativa que acabou se espalhando por mais duas capitais (Vitória e Brasília) e juntou um monte de gente disposta a voltar a ser criança e a aprender algo novo. E não só a andar de bicicleta, mas também a sair por aí de patins, fazer bola de chiclete ou a dar nó no cadarço. “Criei um evento numa rede social para lembrar os amigos e as pessoas acabaram gostando e se apropriando da brincadeira também”, comenta Bruno.

“Quando vi, já tinham mais de cinco mil pessoas confirmadas”, diz. Apenas algumas dezenas compareceram ao dia em que o evento estava programado. “No encontro, percebemos que muita gente se sentia um pouco arrependida por ter deixado alguma coisa por fazer na infância”, revela o programador. “E que talvez por isso elas chegassem até nós tão inseguras”.

Mas bastaram alguns minutos para que se soltassem e se aventurassem por um ou outro tombo. Muitas vezes sem perceber que foi exatamente aquele frio inicial na barriga que as levaram até ali. “Nossa sociedade supervaloriza a ideia da segurança“, avisa o psicólogo Jésio Zamboni. “E muitas pessoas perseguem isso como um ideal de vida, como se fosse bom não ter conflito, desequilíbrio, alguma decepção“, continua Zamboni. Acontece que essa sensação de estabilidade, que nos leva a permanecer na tal zona de conforto, funciona mais ou menos como aquelas rodinhas que nos acompanham desde a primeira bicicleta. Elas nos deixam mal-acostumados e nos forçam a seguir em linha reta sem tombos. E aí fica muito mais difícil aprender a pedalar em duas rodas e sem apoio. Ou viver. Arriscar-se não tem nada a ver com sentir-se seguro, mas com enfrentar aquilo que nos tira do eixo.

Não à toa, uma das maiores felicidades da infância é quando saímos por aí em ziguezague, assim que alguém decide desaparafusar as rodinhas laterais de apoio. Por isso, pare e pense em tudo o que você tem se ancorado quando bate aquele medo de se arriscar e as coisas não darem certo. Será que não está na hora de pegar a sua chave de rodas e afrouxar os próprios parafusos? “A vida muda o tempo todo e temos que ter essa habilidade de variar com o mundo, de nos sentirmos livres, sem qualquer amarra, porque aí somos mais capazes para agir e criar diante dos nossos problemas”, explica Zamboni.

Tudo pode dar certo

Alguns parafusos a menos nos levam a perceber que a vida, acima de tudo, é uma aposta. Isso não significa que devemos ficar à mercê de estatísticas que, a primeira vista, parecem ser um daqueles bichinhos que grudam na gente e ficam ali remoendo as nossas possibilidades. Claro, quando falamos em arriscar – seja para aprender a andar de bicicleta ou largar aquele emprego chato – invariavelmente pensamos nas chances de algo dar certo ou não. E, dentro da margem de erro, é fácil apostar que os nossos sonhos são improváveis e que as coisas vão dar errado.

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“Eu segui pelo caminho que todos juravam ser o mais seguro e acabou não dando em muita coisa”, conta a cantora lírica Patrícia Eugênio. A voz, doce que só, já deu aulas e mais aulas de Física. “Eu sempre quis compreender melhor o mundo e as leis que o regiam”, diz. “Por isso, essa ciência sempre me chamou a atenção. Eu queria entender as coisas mais simples, dar uma explicação para aquilo que acontece no cotidiano“. Em meio às contas e fórmulas, foi levando a vida. E cumpriu o passo a passo: fez mestrado e doutorado em – pasmem – Geofísica Espacial. Mas, quando botou os pés em uma faculdade para lecionar, percebeu que aquilo não a faria feliz. “Foi o pior período da minha vida”, diz a cantora. “As pessoas projetavam em mim todo medo e dificuldade que tinham em relação à Física, como se eu fosse a culpada”.

Perdida, encontrou na música a solução para as próprias equações. O hobby, que surgiu durante a graduação, quando uma amiga a convenceu a participar do coral da universidade, foi tomando cada vez mais espaço em sua vida. Até o ponto que não deu mais. Há quatro anos, Patrícia decidiu que seu lugar era no palco e não mais nas salas de aula. “Deixei tudo para trás, todos os anos que passei me qualificando, até mesmo um casamento. O que fiz foi arriscado – Foi. Mas tem valido tanto a pena. É o que me salva no fim do dia“, revela.

Não existe uma receita pronta para ser feliz. E a vida também não permite atalhos. Cada jornada é única: cabe a nós ter coragem para trilhar o nosso caminho e não aquele cheio de tijolos amarelos, que nos apontam rumo à estabilidade financeira, prestígio social, ternos e gravatas. Porque se a gente não pegar para viver os nossos sonhos, vai acabar vivendo o dos outros. E, aí, o único risco que corremos é o de passar nossa jornada decepcionados por não termos conseguido nos encaixar nas expectativas que nos foram propostas.

“Quantas vezes não nos encontramos com uma pessoa que tem uma situação de vida considerada ideal, um bom emprego, uma família como manda o figurino, uma situação financeira estável e está insatisfeita, deprimida, infeliz?”, questiona o psicólogo Jésio Zamboni.

É um equívoco acreditar que existe um ideal comum que devemos perseguir. Por isso, é preciso ter “a mente aberta, manter a espinha ereta e o coração tranquilo”, parafraseando a música “Coração Tranquilo”. “Quando fazemos o que não gostamos, acho que a chance de dar errado é até maior”, arremata Patrícia. “Eu posso não ter renda fixa, férias ou finais de semana, ter que aprender um monte de canções que não estão entre as minhas preferidas, mas sei que na minha vida eu quero ser feliz. E vou correr atrás disso. Acho que as coisas têm mais chance de dar certo quanto são certas para a gente”, conclui.

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Toda vez que damos um passo, todo o nosso mundo sai do lugar. Talvez, por isso, seja tão difícil dar o pontapé inicial nessa coisa de ser feliz. Aquilo que jurávamos mais certo, a fé que tínhamos em nossas verdades, no nosso mundo, vão se desfazendo vagarosamente quando aceitamos começar uma nova jornada. “E, devagar, o tempo transforma tudo em tempo”, anota o poeta português José Luis Peixoto. “O ódio transforma-se em tempo, o amor transforma-se em tempo, a dor transforma-se em tempo. Os assuntos que julgávamos mais profundos, mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis, transformam-se devagar em tempo. Por si só, o tempo não é nada. A idade não é nada. A eternidade não existe”.

Todas as certezas da administradora Fernanda Paiva vieram abaixo em um mês. “Eu tinha planejado algo para a vida inteira e, de repente, estava me questionando se era aquilo mesmo que queria“, diz. Em 30 dias, trocou o cargo de gerência em uma multinacional no interior de São Paulo – meta que havia construído desde a adolescência – para montar uma empresa de mergulho em Maceió. “Quando pedi demissão, muita gente quis me matar”, revela, aos risos. “E, quando falei para o meu pai, ele quase teve um ataque do coração. Disse que eu estava trocando tudo o que construí por causa de uma paixão”.

A rota de Fernanda se modificou quando tirou férias na capital alagoana e esbarrou em Luis Miguel, um português que havia se estabelecido a beira-mar e que lhe daria algumas aulas de mergulho. Apaixonaram-se. E, quase sem querer, ela percebeu que ali, com ele, estava imersa em felicidade. E, nessas encruzilhadas em que a vida nos aponta um novo jeito de seguir, todas as coisas que jurávamos mais certas para nós – um emprego de anos, um casamento, a vocação da adolescência – se desfazem no instante de um olhar, de um beijo, e o nosso mundo desmorona como um castelo de areia.

Se arriscar, enfim, tem a ver com a nossa capacidade de ser imprudente, de se deixar ruir para perceber que podemos nos reconstruir e remodelar a todo momento. E, para isso, não precisamos de grandes justificativas, de um motivo certo. Fernanda arriscou se jogar de cabeça na felicidade recém-descoberta mesmo que as pessoas considerassem seus argumentos mera bobagem. E, então, viu o emprego formal se transformar em uma rotina a beira da praia, na descoberta de um amor arrebatador, num companheiro para o que der e vier. “A grande briga é interna”, avisa. “Porque, quando a gente se arrisca, também se questiona se o que está fazendo é loucura. Mas passa. É só pensar: se não der certo, a gente começa de novo. Sempre dá tempo”.

A vida é um risco

Estou sendo otimista com essa coisa de correr riscos, eu sei. E também entendo que, às vezes, quando a gente se joga pode dar com a cara na parede. Mas, por mais que talvez você se encontre certo da sua felicidade, confortável em sua cadeira enquanto lê essas palavras, pode ser que no próximo parágrafo o destino lhe pregue uma peça. “A vida se transforma rapidamente. Muda num instante. Você se senta para jantar e aquela vida que você conhecia acaba de repente? Isso foi tudo o que a escritora americana Joan Didion conseguiu colocar para fora após ver o seu mundo virar de cabeça para baixo. Joan perdeu o marido e a filha, com alguns meses de diferença. A experiência, relatada no livro O Ano do Pensamento Mágico (Nova Fronteira), nos faz pensar sobre nossa fragilidade e também na urgência em aprender a jogar tudo para o alto. Ela se viu sozinha, na velhice e sem os companheiros. Foi desafiada a recomeçar.

“Eu não estava preparada para aceitar aquelas notícias como definitivas”, escreve. “Em algum nível eu acreditava que o que tinha ocorrido continuava podendo ser revertido”. Então, ela passou um ano entre o que chamou de pensamentos mágicos, imaginando que o marido, Gregory, passaria a qualquer instante pela porta. Ou que ouviria a voz da filha, Quintana, cada vez que o telefone tocava. “Eu não queria terminar esse ano”, continua a escritora. “Porque sei que à medida que os dias passam e janeiro se torna fevereiro, e depois se torna verão, certas coisas vão acontecer“. Até que Joan entendeu que a vida não para e decidiu encarar suas feridas, suas dores e a necessidade de reaprender a caminhar sem aquilo que julgava tão certo.

Eu também já me peguei inúmeras vezes – provavelmente como boa parte das pessoas – entre esses pensamentos mágicos. Esperando que o tempo resolvesse os meus problemas ou como se os ponteiros do relógio fossem varinhas de condão. E, ao ler o livro de Joan entendi, através de suas palavras e da experiência – tão dolorosa – dela, que não adianta se esconder. Em algum momento, receberemos o chamado para se jogar de cabeça e nos arriscarmos. Fazemos isso, na verdade, o tempo todo. Sem nem perceber. Escolhemos uma pessoa, entre sete bilhões possíveis, para passar a vida juntos. Topamos amar os nossos filhos, sem nem saber ainda quais os seus rostos, cheiros, jeitos, choros. Arriscar-se é uma parte natural e inseparável da própria trajetória.

Está no nosso cotidiano, bem à frente do nariz. Eu me enxerguei diversas vezes nessas situações, ao escrever essa reportagem. Me identifiquei com os medos, as travas, o receio de tirar os parafusos que boa parte de nós tem diante das escolhas, da possibilidade de caminhar em um novo terreno. Há bem pouco tempo, abandonei a cidade onde nasci e cresci para me aventurar sem rumo certo na capital paulista.

Deixei para trás o convívio diário com a minha família, um emprego legal e alguns amigos, que decidiram se afastar porque não concordavam com a minha decisão. Durante as primeiras semanas, pensei seriamente em voltar atrás. Mas não fiz isso. O lado ruim? Até hoje é difícil engolir o choro na hora de ligar para casa e avisar que estou bem – mesmo estando com o coração aos pedaços.

Mas, quer saber, aos poucos fui ganhando novos amigos, alguns amores, uma nova vida. E, mal havia colocado meu dia a dia no eixo, peguei minha mala novamente e segui para o Rio de Janeiro, após aceitar uma nova proposta de emprego. Muitos amigos me dizem, em alto e bom som, que eu tenho alguns parafusos a menos por ter feito isso. Mas não me importo. Isso porque, ao me arriscar, eu entendi que ser feliz é como andar de bicicleta. A gente nunca mais esquece como se faz.

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