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Aprenda a rir de si mesmo
Jessica To'oto'o | Unsplash
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Assumir seu lado ridículo, fracassar, despertar risadas alheias e, ainda assim, ficar contente? Ora, permita que seu palhaço interno assuma o comando

Um dos mais aclamados – e queridos – palhaços da atualidade, o americano Avner, o Excêntrico (ou Eisenberg, segundo seu registro oficial), esteve no Brasil  para apresentar o espetáculo Exceções à Gravidade, no Festival Internacional de Circo do Sesc. O evento trouxe também para a capital paulista outros artistas memoráveis, como os suíços Pierre Byland e Gardi Hutter. Em um vídeo que registra a passagem de Avner pelo festival, ele diz de maneria clara: “Ao palhaço está permitido fazer coisas que nós não podemos. Somos ensinados a não fracassar nunca, mas o palhaço deve fracassar e, então, sobreviver”.

A possibilidade de aceitar o inevitável fracasso, de lidar com isso de maneira positiva e seguir adiante, na certeza de que outros escorregões virão – afinal, somos todos falíveis e imperfeitos –, sempre foi, para mim, uma das características mais fascinantes do palhaço. Figura cômica e excêntrica, ele é herdeiro dos bufões e dos bobos presentes na cultura popular medieval,  personagens  marginais  e  grotescos, responsáveis pela paródia e pelo escárnio permanentes do comportamento humano na vida cotidiana e nas esferas de poder.

Datam da segunda metade do século 16 as primeiras referências à palavra “clown”: designava o tipo rústico, simplório e estúpido que fazia a plateia rir nas encenações do teatro de moralidades da Inglaterra. Mais tarde, passou a integrar os teatros de feira ambulante, já fazendo uso da pantomima – influência evidente da commedia dell’arte italiana, segundo o pesquisador Mário Fernando Bolognesi, em seu livro Palhaços (Editora Unesp). O encontro entre as tradições inglesa e italiana teria resultado na concepção do clown circense. Nos incipientes espetáculos de circo do século 18, essas figuras satíricas, excêntricas e desajeitadas ocupavam o picadeiro entre um número e outro a fim de provocar um relaxamento cômico.

Foi o francês Jacques Lecoq quem levou o palhaço de volta ao teatro. “Explorando o terreno do ridículo e do cômico, descobri a busca do próprio clown, que ia dar ao ator uma grande liberdade ante ele mesmo”, Lecoq conta em O Corpo Poético – Uma Pedagogia da Criação Teatral (Senac). As primeiras experiências foram feitas na década de 1960 em sua escola, onde já trabalhava com os alunos a expressão corporal e a “viagem” pelas máscaras – neutras, larvárias, expressivas e as da commedia dell’arte. Ficava evidente que não se tratava de representar um tipo engraçado, mas de assumir um estado de vulnerabilidade e risco diante dos demais. Para Lecoq, nem todos os que passassem pelo treinamento se tornariam clowns; seguiriam por outros caminhos artísticos, mas com os aprendizados daquela vivência de autoconhecimento.

Ao palhaço está permitido fazer
coisas que as outras pessoas não podem.
Todos nós somos ensinados a não fracassar
nunca, mas o palhaço deve fracassar
e, então, sobreviver

A menor máscara do mundo
O nariz vermelho do palhaço – ou do clown, que aqui uso como sinônimos, apesar das distinções feitas por alguns pesquisadores (um seria de picadeiro; o outro, do teatro) – é a menor máscara do mundo. Mas também é a que mais deixa exposto o seu portador, pois por meio dela se revelam os medos, os anseios, o desejo de ser amado e as fragilidades daquele que a usa. Ao contrário do que muita gente acredita, não basta colocar um singelo nariz vermelho, vestir uma roupa extravagante e fazer piadinhas para se tornar um clown. Um palhaço não interpreta um personagem; ele é quem é.

É esse estado de disponibilidade que norteia o curso oferecido pelo Solar da Mímica, espaço de investigação artística mantido pelos artistas Alberto Gaus e Vanderli Santos, com sede em uma deliciosa chácara em Juquitiba, na região metropolitana de São Paulo. O treinamento do clown se insere na pesquisa sobre o corpo que Gaus, mímico e palhaço, desenvolve há quase quatro décadas e denomina “teatro ativo”, uma linguagem que prioriza a escuta e a relação sempre dinâmica com o outro. “Assim como nós somos únicos no universo, o nosso clown também é único, não existe outro igual. E, quando assumimos essa grandeza, ele aparece, vem à tona”, diz Vanderli.

“O humor desse clown nasce da essência absoluta do ser e, quando ele consegue espaço para se manifestar, causa outro riso, não um riso sarcástico que utiliza o outro como motivo de chacota, mas sim um riso que reconstrói, como um bálsamo curador.” O formato do curso oferecido pelo Solar da Mímica é o de um retiro de sete dias. Confesso que, para mim, foi um processo dolorido, mas que resultou prazeroso no final. Embora já tivesse feito outras oficinas de iniciação ao clown antes, sempre em busca da libertadora sensação de me permitir errar e ser ridícula diante dos outros sem grandes constrangimentos, foi durante uma improvisação específica que me senti, pela primeira vez, palhaça. Compreendi, então, na prática, o sentido das qualidades atribuídas ao clown: presença, verdade e generosidade.

“Todos somos idiotas, mas não nos permitimos ser na vida cotidiana. Isso não significa querer chamar a atenção, mas sim assumir a essência do idiota, que é algo sublime. Por isso, o nariz vermelho é a possibilidade do não julgamento”, diz Joana Marques Barbosa, palhaça profissional e professora de clown desde 2009. Quando ainda era uma estudante de psicologia, Joana fez seu début na arte do palhaço com a atriz paulistana Bete Dorgam, uma das mestras da linguagem no Brasil. Gostou tanto que tornou a participar do mesmo curso outras vezes. Ali descobriu-se Maria Gelatina, a “Joana em estado puro”, preguiçosa e molenga.

Depois de uma temporada em Londres, estudando o método desenvolvido por Jacques Lecoq em uma prestigiosa escola, Joana criou a esquete The Tale of Cloud Clown (A Fábula do Palhaço Nuvem, em inglês) para explorar outra vertente de seu clown. O espetáculo conta a jornada de um palhaço preguiçoso que cai da estrela em que dormia e, durante a queda, atravessa uma nuvem, que gruda nele. Chega a uma cidade chuvosa, olha para tudo pela primeira vez e não entende nada: como as pessoas podem viver naquelas condições? “Cada vez que coloco o nariz, descubro coisas novas, experimento novas redenções”, diz Joana.


Contradições e vulnerabilidade
Talvez o grande desafio para o palhaço seja conquistar cúmplices para sua aventura pelo acaso. Ele não quer errar, mas erra e nem se dá conta. A plateia ri ao reconhecer as contradições e a vulnerabilidade daquela figura, mas ri também por reconhecer-se nela – e isso é universal. Entre outubro e novembro de 2014, o coletivo Cromossomos, formado pelo palhaço Arthur Eder Toyoshima e outros dez clowns de distintas nacionalidades (brasileira, chilena, espanhola, italiana e venezuelana), fez uma expedição composta por espetáculos, cortejos musicais e oficinas pelos campos de refugiados saarauís, no sul da Argélia. Expulso de seu território no Saara Ocidental pelo governo do Marrocos, o povo saarauí aguarda desde a década de 1970 ter direito a seu próprio Estado.

O nariz vermelho é a menor máscara
do mundo e a que mais deixa exposto
seu portador, pois por meio dela se revelam
os medos, os anseios, o desejo de ser amado
e as fragilidades de quem a usa

“Foi uma experiência magnífica”, conta Arthur. “Não havia julgamento nem preconceito por parte do público, estavam todos muito abertos.” Sob orientação artística do palhaço e mestre Ésio Magalhães, os espetáculos aconteceram principalmente em escolas e para centenas de estudantes. Graças aos traços orientais, Arthur caiu na graça da criançada. Os pequenos sempre queriam ver “el chino”, em especial nas esquetes em que um carateca tentava quebrar pedaços de madeira e falhava. Os palhaços também se identificaram com os saarauís; apesar de terem decidido não se envolver em temas políticos, acabaram, ao final, se engajando numa manifestação contra o muro erguido por Marrocos para isolar os refugiados.

Essa experiência de empatia e alteridade tem sido uma constante na trajetória da atriz e palhaça Priscila Bichuette já como a Birgite Bordô, a quem conheci quando ambas nos iniciávamos na arte do clown. Integrante do coletivo Forças Amadas, que atua no projeto municipal Ônibus-Biblioteca em comunidades da periferia de São Paulo, ela já esteve com Iván Prado, o Capitán Jadoc, da ong espanhola Pallasos en Rebeldía, na aldeia indígena Kariri Xocó, em Alagoas, e entre os Krahô do Tocantins, quando conheceu o hotxuá – o palhaço sagrado ou sacerdote do riso, figura ancestral responsável por animar a tribo durante a Festa da Batata. No teatro, sem o nariz, mas imersa no espírito do clown, Priscila apresentou o espetáculo Cuidado Frágil, no qual era uma professora que ensinava a ovos os meandros da existência. “Vim para o mundo fazer isso”, ela diz, emocionada. “Sempre tive essa ingenuidade e essa tontice, mas ainda não havia encontrado meu lugar. Meu palhaço transborda, não tenho como não sê-lo na vida.” Entre seus mestres, destaca a canadense Sue Morrison, herdeira das tradições ancestrais do palhaço sagrado norte-americano. Enquanto ainda trabalhava como fonoaudióloga em um posto de saúde, conheceu o trapezista Dover Tangará, hoje falecido, que lhe apresentou outros tantos artistas circenses, entre eles os palhaços Puchy, morto em 2014, e Pepin. O encontro resultou no documentário Circo Paraki, no qual Priscila narra a história desses personagens incríveis.

Ainda que você não queira atuar profissionalmente como um palhaço ou seguir uma trajetória artística, dê uma chance ao clown que mora aí dentro. Não se leve tão a sério e ria de suas próprias bobagens. Só temos a ganhar ao admitir que podemos ser patetas e, a despeito de todas as exigências sociais e da supervalorização do sucesso, que fracassamos. O importante – relembro o que disse Avner, o Excêntrico – é sobreviver. E seguir adiante.

MARIA FERNANDA VOMERO é uma eterna aprendiz de palhaço. Enquanto ensaia voos artísticos, continua tropeçando semreceio de ser alvo de risadas.

 

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