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Racista, eu? Reflexões para o Dia da Consciência Negra
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“Mil nações moldaram minha cara / Minha voz, uso pra dizer o que se cala / O meu país é o meu lugar de fala”. Esses primeiros versos compõem o início da música “O que se cala”, da cantora brasileira Elza Soares, falecida neste ano e imortalizada como uma das maiores artistas do país. 

Se fôssemos contar a história do Brasil nesta matéria, de fato poderíamos ilustrar com as mil nações que juntas formam a cultura brasileira. Todas com sua diversidade de cores, comidas, sabores, cheiros e modos de vida. Somos formados por povos originários, pelas pessoas escravizadas vindas de África em navios negreiros, por colonizadores portugueses, além dos milhares de imigrantes vindos da Europa e da Ásia que chegaram para embranquecer o país, considerado negro demais para constituir uma sociedade moderna e integrada ao Ocidente. 

Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), somos 42,7% de brancos, 56,2% de negros e 1,1% de amarelos e indígenas. Somos o país com o maior número de pessoas negras fora do continente africano, mas também o último a ter abolido a escravidão em todo o continente americano. São contradições que nos levam a conviver em um país multicultural, diverso, mas ao mesmo tempo segregacionista e… racista. 

Como assim racista?  Uma pesquisa do Instituto Poder Data revelou em 2021 que 82% dos entrevistados veem racismo no Brasil, 38% se consideram racistas e 51% afirmaram não ter preconceito. Ainda assim, o preconceito racial permeia as instituições, as escolas, universidades e locais de trabalho de forma estrutural, como apresenta o professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Silvio Almeida, na obra Racismo Estrutural (Editora Jandaíra).

Para o autor, há diversas formas de racismo perpetuadas na sociedade brasileira que se entrecruzam e juntas têm uma mesma função: estruturar e edificar a mentalidade e o imaginário da população, queiramos ou não. Datas como o Dia da Consciência Negra servem para debater e lembrar da importância da luta contra o racismo. 

Ressignificação da data

Durante décadas, o dia 13 de maio foi celebrado como o marco do fim da escravização de pessoas negras no Brasil a partir da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel, em 1888. Ao longo dos anos, as tentativas de apagamento de resistência das populações negras e o esvaziamento do significado político da data levou os movimentos negros do país a reivindicarem o 20 de novembro como espaço dedicado ao Dia da Consciência Negra. 

Para a pesquisadora e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Izabel Accioly, apesar das conquistas ao longo dos anos, há ainda caminhos a serem percorridos no combate ao racismo e à estigmatização. “Podemos constatar que o povo negro foi escravizado por 338 anos. A Lei Áurea foi assinada em 1888, o que nos torna um povo considerado livre há apenas 134 anos. Portanto, nós negros, temos mais tempo como povo escravizado do que povo liberto”, explica a pesquisadora. 

A data é reservada para comemorar a luta dos movimentos e coletivos, além de incentivar organizações e toda a sociedade civil a juntos desenvolverem estratégias e ações capazes de criar um outro mundo possível, baseado no amor, na compaixão e no respeito mútuo.

Entre as pessoas lembradas na data está a figura de Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra, catadora de materiais recicláveis e moradora da favela do Canindé, na cidade de São Paulo. Com tão pouco – cadernos, canetas e folhas de papel encontrados no lixo – Carolina foi escrevendo sua própria história, semelhante a de muitas outras pessoas negras no Brasil. Conhecida pelo livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada (Ática), Carolina é reconhecida como uma das escritoras mais importantes da história do Brasil. 

É neste ritmo de mistura das memórias, da conexão com a ancestralidade e da luta por um mundo sem racismo que o 20 de novembro é construído em meio à diversidade de pessoas e movimentos. Para Samuel Gomes, escritor, professor e consultor de diversidade, há pontos importantes a serem lembrados neste ano. “Há muito o que ser celebrado. Nunca antes na história desse país, que comemora esse ano os 200 anos da sua independência, tivemos tantos espaços ocupados por pessoas pretas, conquistados através de muita luta”, afirma. 

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Falar sobre racismo ainda é tabu?

Conversar sobre racismo no almoço de domingo em família, na praça com nossos amigos ou em uma viagem talvez ainda seja algo delicado de ser abordado. Há quem diga que somos todos iguais, que o racismo é coisa do passado e que os tempos são outros. A verdade é que, infelizmente, milhões de pessoas ainda sofrem por causa da sua cor de pele, estilo de cabelo e marcas de identidade. 

Por muito tempo, acreditou-se em uma certa mistura entre brancos, negros e os considerados “mestiços” no Brasil, o que foi descrito posteriormente como “mito da democracia racial”, uma falsa sensação de que os diferentes povos e culturas presentes no país viviam em harmonia. “Ao negar o problema, nega-se também a solução. Por isso, é fundamental acabar com o tabu sobre o debate racial e que as pessoas estejam atentas e sejam responsáveis por seu letramento racial”, defende Izabel Accioly, que acredita em uma transformação social na qual todos nós sejamos antirracistas. 

Debater um assunto como esse no Brasil se torna difícil pela maneira como ele está presente na nossa sociedade. “A forma como o racismo se assumiu aqui no Brasil foi o de negar a sua própria existência”, explica a professora Geísa Mattos, pesquisadora de Racismo e Branquitude no departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC). 

Para a pesquisadora, é preciso ressignificar o olhar sobre o tema a partir da perspectiva da população negra e, além disso, as pessoas consideradas brancas necessitam assumir uma responsabilidade na luta contra o racismo, afinal, elas – eu, que escrevo esse texto, estou incluso – se beneficiam da estrutura racista da sociedade que potencializa os privilégios brancos. 

“Somente quando a gente tiver uma sociedade verdadeiramente inclusiva, onde as pessoas negras possam estar protegidas em seus direitos, direito à vida, à educação e à saúde, teremos uma sociedade igualitária. Enquanto existir a desigualdade racial que a gente vivencia hoje não há vida saudável possível”, defende Geísa.

O primeiro passo talvez seja aceitar e compreender que o racismo é um fenômeno presente no Brasil. Assim, podemos tomar conta dos nossos privilégios ou, no caso das pessoas negras, de como elas são afetadas e impactadas negativamente pelo preconceito. A partir dessa consciência é que juntos podemos construir uma sociedade baseada na harmonia social e na inclusão racial em diferentes espaços. 

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Racismo e violência

Preciso agora que você, leitor, reflita junto comigo sobre questões importantes que servem para ilustrarmos como o racismo se perpetua no Brasil:

  • Quantas vezes você já foi revistado pela polícia? 
  • Quantos professores negros você teve na escola? E na universidade? 
  • Nos lugares que você frequenta há uma diversidade de pessoas e cores? 
  • Quantos autores negros você estudou nas disciplinas do colégio? 
  • Você já foi perseguido pelo segurança de um shopping?

Essas e muitas outras perguntas poderiam ser  feitas para que a gente reflita o espaço que é dado às pessoas na sociedade, como o fato da maioria das pessoas em situação de rua, entregadores de aplicativo ou em profissões que ganham mal serem majoritariamente compostas por negros. 

Marcus Gigio se formou como advogado no ano de 1997 na Universidade Federal do Ceará (UFC), a única pessoa negra, segundo ele, de toda a Faculdade de Direito da instituição na época. “Eu tive a sorte de nascer um preto de classe média e sou um ponto fora da curva nesse sentido”, explica Gigio, que hoje está concluindo o doutorado em Sociologia pela mesma universidade. 

Para o pesquisador, os resquícios do colonialismo e da mentalidade racista potencializam a reprodução do racismo, especialmente determinando o comportamento das pessoas negras na sociedade. “Eu moro na Praia de Iracema [bairro nobre da cidade de Fortaleza] a dois quarteirões de um supermercado, eu não posso me dar o luxo de, assim que acordar, descer para comprar pão. Por quê? Eu vou ser olhado, talvez eu seja seguido pelo segurança. Então, para eu sair de casa e vir para a universidade, por exemplo, tenho que fazer um cálculo milimétrico de como me vestir e me comportar

Sua pesquisa atual investiga a violência policial no Lagamar, uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) próxima à região de classe média da capital cearense. Gigio comenta que os seus resultados o levam a identificar um caráter racista à polícia, que trata de forma diferente pessoas brancas e negras. 

Mas isso está permeado em diversos outros espaços e lugares da sociedade. “Essa superestrutura é branca”, lembra Gigio, “quem disse que a lei tem que ser como é? Até a moda e a cultura? Os brancos”, acrescenta. 

Mudar a nossa lógica de visão e buscar combater as violências racistas é um passo importante que deve ser dado por todo o conjunto da população. Só assim poderemos reverter dados preocupantes para o país, como mostra o relatório “Pele alvo: a cor da violência policial”, que coletou dados da violência policial no Brasil e revelou que 5 pessoas negras foram assassinadas por dia no ano de 2021 por forças policiais. “É um projeto de ódio racial, de exterminação de pessoas”, enfatiza a pesquisadora Geísa Mattos. 

Casos como esse trazem à tona outras situações, como quando a delegada negra Ana Paula Barroso foi vítima de racismo em uma loja de roupas em um shopping da cidade de Fortaleza. Para o antropólogo Patrício Carneiro, isso revela como as relações sociais estão permeadas pelo preconceito racial. 

“Essas relações mais imediatas já acontecem porque elas sabem que existem uma estrutura racista que dá suporte a isso. Se um segurança de um shopping e uma equipe de trabalho se sente segura o suficiente para agir do jeito que agiu, é sinal de que sabem que o shopping todo mantém uma cultura racista, mesmo que isso não seja assumido. E se um shopping se comporta assim é porque ele sabe que há uma cidade racista que dá suporte ao que ele faz”, afirma o pesquisador, que é doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) e professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB).

Caminhos para o combate ao racismo

Em Morro Velho, uma canção de Milton Nascimento indicada por Marcus Gigio, entrevistado para essa reportagem, conta as histórias que se cruzam entre duas pessoas negras, suas trajetórias e destinos predestinados. “Filho do senhor vai embora / Tempo de estudos na cidade grande”, é o que diz uma das partes. Você pode ouvir a música completa abaixo: 

Ao longo dos séculos vimos o povo negro sendo colocado à margem, sempre ocupando os piores lugares nos rankings de acesso a saúde, educação, moradia, renda, empregabilidade”, comenta Izabel Accioly. A antropóloga defende que haja um esforço de toda a coletividade para a superação do preconceito racial, “medidas estruturais precisam ser adotadas nas áreas em que estamos mais vulnerabilizados. Pensando em medidas de grande porte, observo que as ações afirmativas nas universidades e concursos públicos tiveram um impacto social muito positivo”, finaliza. 

Para Samuel Gomes, o esforço nos investimentos na área de educação e na formação de várias frentes de luta para o combate ao racismo são importantes para a eficácia das soluções propostas. “É preciso os dirigente de estados, municípios, que o legislativo, o judiciário e toda a sociedade civil entre nessa luta porque é vergonhoso saber que o nosso país foi um dos últimos a abolir a escravidão”, afirma o professor. 

Marcus Gigio comenta que a branquitude tem um papel fundamental na compreensão e crítica de seus próprios privilégios obtidos ao longo dos séculos de racismo. “Ele [o racismo] sempre vai ocorrer, sabe por quê? Por conta da identidade branca, ela está ligada ao privilégio e ao extermínio do outro não branco.”

Por isso que iniciativas que buscam aproximar o debate racial em torno das populações não negras é importante, como o livro Pequeno Manual Antirracista (Companhia das Letras),da filósofa Djamila Ribeiro, que de forma clara instiga pessoas à luta contra o preconceito. Tem o papel de “tornar palatável, sobretudo à branquitude, a luta antirracista e eu acho isso válido. Didaticamente, explicar o que é a luta antirracista”, explica Gigio. 

Em uma de suas atividades no Lagamar para a pesquisa de doutorado, Gigio conta que uma das participantes, uma senhora negra, o inspirou e o deu dimensão da resistência contra a discriminação. “Uma senhora me falou ‘olha, eu não desisto, porque eu sou igual a carrapato no pé do boi, porque eles pisam, mas eu persisto’”, conclui. 

Movimentos de transformação

Passeamos aqui por diferentes debates, perspectivas, abordagens e muitas reflexões – coletivas e individuais – sobre o racismo no Brasil. Mas, para além de todos problemas, soluções e estudos, há inúmeros movimentos de transformação dentro das empresas, da sociedade e dos movimentos negros organizados no Brasil

Episódios como o assassinato do estadunidense George Floyd pela polícia ou do Beto Freitas em um supermercado da cidade de Porto Alegre levaram pessoas do mundo todo a reivindicarem respeito, direitos e garantias de punição para as pessoas que perpetuam o racismo. “É notório que graças às redes sociais, nós pretos, temos tido mais vozes para denunciar o que acontece com a gente por séculos e consequentemente, temos ainda mais apoio da mídia em transmitir nossas mensagens”, explica Samuel Gomes. 

“Tem muita gente preta contando novas histórias, criando imaginários possíveis para futuros pretos, escrevendo livros, sendo roteiristas, médicos, doutores, vivendo o sonho que os nossos ancestrais sonharam pra gente”, enfatiza o escritor. “Quero ver mulheres pretas líderes no mercado, homens negros donos de empresas, quero muito ver uma TV que normalize a existência de corpos como o meu não pelo viés da violência, ausência ou dor, mas sim da alegria, conquista, pelos nossos feitos e legado”, conclui. 

O professor e antropólogo Patrício Carneiro lembra que o racismo está perpetuado dentro das instituições brasileiras, e que iniciativas de promoção à igualdade racial em empresas, órgãos públicos e outros espaços da sociedade são importantes para mitigar esse fenômeno. “A sociedade está mudando e essas relações estão mudando. As populações negras estão gradativamente ocupando os mais diferentes espaços da sociedade, inclusive os espaços de poder”, comenta o pesquisador. 

Segundo ele, é necessário reconhecer os esforços das organizações na luta contra a discriminação racial, mas também na mudança de mentalidade, especialmente de pessoas brancas que se engajaram nessa luta. “Tem-se que reconhecer o protagonismo negro, que tem ajudado a reconstruir essa sociedade, essa cultura e relações, mas na minha leitura também há uma parcela que se pode atribuir às mudanças das relações entre a população negra e não negra, branca principalmente. Porque esse ‘pacto narcísico da branquitude’ tem sido cada vez mais exposto, denunciado e escancarado.”

Movimento negro já é livro, é pesquisa, ciência, arte, religião, política e economia”, defende Carneiro. “O que é o movimento negro, qual o futuro do movimento negro? É o futuro da ciência, da religião, da arte, da política, da economia, da cultura, porque o movimento negro é tudo isso”, conclui. 

Se você chegou até aqui – querido leitor da Vida Simples – espero que tenha aproveitado a leitura, tomado conhecimento do nosso papel enquanto cidadão e tenha sido instigado a participar das ações e celebrações de resistências não só durante o Dia da Consciência Negra, mas também dentro de casa, nas aulas de yoga, nas reuniões do filho no colégio, nos encontros do condomínio e nos espaços de trabalho. 

Para terminar, deixo com vocês uma frase de outra grande escritora negra brasileira, Conceição Evaristo: 

“Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.”

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