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O que aprendi ao meditar nas ruas
Isabell Winter | Unsplash
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Parar e silenciar a mente em locais públicos nos ensina a encontrar calma no meio do caos e também a olhar a cidade com mais generosidade

Toda sexta-feira, às 18h30, saio para meditar. Mas não sigo para um lugar calmo e silencioso. Pelo contrário. Me encontro com o grupo Indo com as Ruas, em São Paulo, e nos reunimos em algum local público, em geral bem barulhento. Como silenciar a mente em um lugar assim? Esse é o grande aprendizado.

Os encontros reúnem praticantes ou não. Sentamos juntos e todos são bem-vindos. Em roda, 15 a 20 pessoas tiram os sapatos e sentam sobre eles para servirem de apoio, como se fossem almofadas. As bicicletas – sempre tem gente que vem pedalando – ficam no centro.

Tentamos não nos prender a um endereço fixo. No encerramento, escolhemos o destino da próxima semana, de preferência um lugar de grande circulação, fácil de chegar por transporte público. O convite é divulgado pelas redes sociais. Já meditamos em cenários emblemáticos da cidade: Praça da República, Praça Roosevelt, vão do Masp, Largo da Batata, saída dos metrôs Butantã e Tietê, Centro Cultural São Paulo, Viaduto do Chá.

Quem coordena a iniciativa é a monja Waho, uma das discípulas da monja Coen, que já realizava práticas meditativas na ocupação do Parque Augusta, a última área de Mata Atlântica do centro de São Paulo, que corria risco de ser transformada em empreendimento imobiliário.

Naquele momento, a prática do zazen (sentar-se em meditação) também simbolizou um gesto de apoio pacífico à preservação do parque. Foi nesse espaço de resistência que nasceu a proposta de meditar nas ruas. “Por que não levar para outros lugares públicos?”, pensou ela, juntamente com a jornalista Gabriela Portilho, outra praticante.

Para os recém-chegados, a monja Waho dá as orientações. Pernas cruzadas, coluna ereta, palma da mão esquerda sobre a direita, polegares unidos, como se estivessem segurando um papel, formando um semicírculo. Sentir a respiração fluir.

A proposta da meditação, especificamente do zen-budismo, é sentar-se em silêncio. Não significa calar a mente, como se nada existisse. Mas sim perceber, escutar e acolher o que vier sem julgamento – para mim, a parte mais difícil. Afinal, a gente adora julgar os outros e a nós mesmos o tempo todo.

Cenas da rua

Já foram muitos os encontros. Na saída do metrô Vila Madalena, um bairro conhecido pelos bares e frequentado por jovens, era possível ouvir, durante a meditação, os passos da multidão e o nervosismo das buzinas. A pedrinha da calçada machucava meu tornozelo. E, na roda, o ilustrador Dado Motta produziu “zazenhos” (desenho e meditação zen) daquele instante – são eles que ilustram essas páginas.

Em outro dia, o ponto de encontro foi na Praça da República, região central da capital paulista. Alguns moradores de rua se aproximaram de nós. Uma mulher chegou gritando que amava comida japonesa e tai chi chuan e sentou-se. Visivelmente bêbada, invocava deus e o diabo para conseguir ficar em silêncio. Suplicava para que alguém falasse com ela. Dizia que se ficasse quieta iria chorar. Depois de algum tempo, ela se foi. O desespero dela me incomodou. Ela parecia a materialização do que acontece em nossa mente.

Um encontro curioso aconteceu também quando meditamos na Praça Roosevelt, no centro da cidade. Skates passavam zunindo perto de nós – pelo menos era essa a minha impressão. Dois meninos, que não tinham nem 15 anos, se aproximaram, colocaram os skates no centro da roda e sentaram-se conosco. Nunca tinham meditado. Um deles logo se cansou, mas o outro ficou até o fim. E sorriu: “Gostei”.

No Largo da Batata, em Pinheiros, local de grande concentração de pessoas e uma área que reúne muitas lojas e prédios comerciais, além de sentar, fizemos a meditação andando. Em fila indiana, um passo após o outro, caminhamos no contrafluxo de uma rua congestionada. Um treino aos sentidos.

Em cada novo lugar que meditamos, uma nova história foi e vai sendo escrita. Nada grandioso. Simplesmente contemplar o balé de folhas secas caindo diante de nós.

Budismo engajado

Meditar na rua não nasceu para protestar ou reivindicar nada. No zen, não há uma causa a ser defendida, um objetivo a ser alcançado. “Por outro lado, isso não significa que devemos aceitar tudo como é em passividade, sem críticas”, ensina a monja Coen, presidente do Conselho Religioso da Comunidade Zen Budista Zendo Brasil.

Ocupar em silêncio um espaço público não deixa de ser um ato político, uma intervenção urbana. Não se trata de uma novidade. Existe um movimento chamado Budismo Engajado, uma expressão criada na década de 1960 pelo mestre zen Thich Nhat Hanh, que não queria limitar a prática do budismo aos templos e passou a apoiar grupos em prol da paz e dos direitos humanos durante a Guerra do Vietnã (1955-1975).

O Dalai Lama, prêmio Nobel da Paz em 1989, percorre o mundo para denunciar a invasão do Tibet pela China e propagar a compaixão como antídoto à violência.  O Zen Peacemakers, um grupo dissidente do zen-budismo tradicional, fundado em 1996 por Bernie Glassman, tem realizado um trabalho de inclusão social com moradores de rua nos Estados Unidos.

Uma de suas ações é promover retiros de rua pelo mundo. Em 2012, São Paulo abrigou o primeiro Retiro de Rua da América Latina do Zen Peacemakers, com a participação do mestre americano Genro Roshi. Tive o privilégio de ser um dos nove participantes que fizeram uma imersão de quatro dias morando pelas ruas da capital paulista, sentindo na pele o que é ser invisível para a sociedade – e relatei a experiência, na época, aqui na vida simples.

Nova relação

Vivemos tão isolados e distantes uns dos outros, atrás de muros altos, cercas elétricas e vidros de carros fechados. Essa nova prática, de meditar uma vez por semana na rua, tem suavizado minha relação com a cidade (porque tem horas que dá vontade de fugir do caos). Esse contato íntimo com as ruas me fez perceber que toda essa camada de proteção também está dentro de nós, dentro de mim. Sou testemunha de que existem moradores da cidade com o desejo de mudança.

Cada uma das cenas que presenciei, das pessoas e movimentos urbanos que conheci, eram apenas ideias vagas na minha cabeça que se tornaram experiências reais. Quem sabe, se derrubarmos nossos muros internos, viver na cidade se torne mais leve, menos inóspito e mais acolhedor?

“A abertura não vem de resistirmos aos nossos medos, mas sim de passarmos a conhecê-los bem”, diz a americana e monja budista Pema Chodron. Aos poucos, as ruas têm se tornado extensão da minha casa. Nelas, sinto-me cada vez mais à vontade. Chego e já vou sentando.

Jhony Arai é jornalista, descobriu o zen-budismo há 19 anos e mergulha diariamente nessa prática.

 

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