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O bom de se perder: o que vale é a jornada
Daniel Jensen | Unsplash
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Deixar para trás os caminhos que já não servem e se aventurar em novas oportunidades nos mostra que a felicidade não nos espera no final da caminhada, mas nos acompanha por toda a jornada

Assim que o asfalto chegou à nossa rua, ao contrário dos meus pais, que estampavam um sorriso de orelha a orelha em poder aposentar os espanadores de pena – provavelmente também felizes por terem, pela última vez, espantado o pó levantado pelas máquinas da prefeitura –, eu e as outras crianças do balneário encaramos o betume escuro como a nossa primeira grande derrota. Os que primeiro caíram da bicicleta, em vez de amortecidos pela areia, ralaram os joelhos. Já não era possível, também, desenhar com os dedos todos os triângulos necessários para um jogo decente com bolinhas de gude e ainda nos faltavam os cascalhos e as pequenas britas, antes utilizados para tapar os buracos que enchiam com a chuva, certeiros como munição para os estilingues.

A paz entre as crianças e o betume foi selada poucos meses depois. A vizinhança começava a pendurar mais uma vez as bandeirolas verdes e amarelas entre um muro e outro, os pais faziam os cálculos para saber quantas extensões seriam necessárias para colocar a televisão, de tubo, na garagem. Isso porque, em poucos dias, começaria mais uma Copa do Mundo, e o asfalto, até então cinzento, tornou-se colorido de tantas pinturas e rabiscos com as bandeiras de todos os países, mascotes e jogadores da competição. O único contragosto era que o evento acontecia, naquele ano (2002), do outro lado do mundo, no Japão e na Coreia do Sul. Era preciso deixar os despertadores prontos para tocar às três da madrugada, a tempo de cada jogo.

O futebol também selou, de alguma maneira, as pazes com o fotógrafo Terra Brito. “Eu queria casar com a Raquel, estava louco por ela, mas precisava de uma confirmação do mundo”, conta ele, que apostou com a namorada que, se o São Paulo vencesse o Corinthians naquele dia, os dois juntariam as escovas de dentes.

Desempatando o jogo

Ainda na cama, no dia seguinte, a produtora editorial Raquel Siqueira, então namorada de Terra Brito, procurou o resultado do jogo. “Quando vi o placar final, me senti um pouco frustrada por não ter sido uma goleada do São Paulo e também fiquei em dúvida de como interpretar o resultado”, conta ela, aos risos, frente ao empate de 1 a 1 entre os times. “Lembro que fiquei meio abismada com a proposta (de o resultado do jogo guiar a vida do casal), pois ele estava falando mesmo sério, mas não questionei. Preferi respeitar a fé alheia”, relembra, diante do método pouco convencional que Brito usava, com alguma frequência, para tomar decisões. “O curioso é que, no futebol, muitos têm uma superstição para ajudar no resultado da partida. Mas a minha loucura é o contrário: eu não influencio o resultado, é ele que me influencia”, conta o são-paulino, que tinha, à frente, de tomar uma decisão que contrariava tudo o que o casal planejava havia apenas alguns meses.

Antes de se encontrarem um no abraço do outro, em 2013, os dois haviam enfrentado, quase que ao mesmo tempo, uma separação. “Estávamos tão traumatizados que combinamos de nunca nos casarmos e de vivermos felizes apenas como namorados”, conta Raquel, que trazia um filho da primeira relação, assim como Brito. “Chegamos a nos pedir em não casamento e fizemos até planos de dar uma festa de não união”, brinca. Agora estavam ali, diante de mais um empate. E sem direito a prorrogação. Ou penalidades máximas. “Como o São Paulo empatou, depois de fazer um gol nos últimos minutos, senti que, no fundo, a partida teve um gosto de vitória. Enfim eu estava perdoado, por mim e pelo mundo que inventei. Podia cometer essa insanidade que é o amor, principalmente o casamento”, conta ele, que, no dia seguinte, já estava visitando o lugar para o qual o casal se mudaria dois meses depois.

Quantas vezes, em nossa jornada, também não seguramos os nossos passos à espera de pequenos sinais, recados desse tal destino que insistimos em culpar, mesmo sem nem conhecê-lo, para encontrar justamente dentro da gente a bravura que, no fundo, sempre esteve ali à nossa espera? Procuramos uma moeda no bolso para que, cara ou coroa, nos mostre qual a decisão mais certa a tomar. E, de vez em quando, não tem jeito. A vida empaca. E aí a gente precisa mesmo é aprender a desempatar o jogo. “Não tenho a menor dúvida de que foi uma boa escolha, faria tudo de novo”, conta Raquel. “Curtimos demais, recebemos muitos amigos, passamos por altos e baixos, engravidei do Eros (primeiro filho do casal, hoje com 2 anos), nos separamos por um tempo e depois voltamos a ficar juntos.” Afinal, a vida, como escreve Guimarães Rosa, é assim mesmo, “esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa; sossega depois desinquieta”. E sabe o que ela quer da gente? Coragem. “As mudanças são um sinal de que estamos seguindo em frente. Está tudo certo, em perfeita sincronicidade. Viu por que não questiono a fé alheia?”, finaliza a produtora editorial, feliz.

Devore as oportunidades

Quando já nem mesmo todas as moedas perdidas em nossa carteira dão conta, e as possibilidades excedem as suas duas faces – a cara e a coroa, o sim e o não –, apontando para diversos caminhos e oportunidades distintas, apelamos então para os dedos, que procuram insistentemente esses centavos sempre perdidos no fundo da bolsa. E, com a língua entre os dentes, se vai enumerando todas as probabilidades na ponta de uma única mão. Uni, duni, tê, salamê minguê. Um adolescente, diante da escolha da profissão, questiona-se se presta vestibular para medicina, como querem seus pais, ou se arrisca arquitetura. E por que não tentar direito, moda ou comunicação social? “Um estudo do psicólogo americano Barry Schwatz aponta que há um paradoxo da escolha, em que nem sempre ter muitas opções é o melhor caminho”, explica Cynthia Perovano, especialista em saúde mental e mestre em psicologia institucional. “O pesquisador sugere que, com a multiplicação das oportunidades possíveis na sociedade, o nosso lado que quer fazer a escolha certeira se sente cronicamente insatisfeito.” Assim, segundo a psicóloga, em vez de nos contentarmos em fazer a melhor escolha possível, acabamos corroídos pelo remorso e pela dúvida, questionando-nos a todo o momento se realmente examinamos efetivamente cada uma das possibilidades.

Ainda nos anos 1950, a escritora americana Sylvia Plath destacou no romance A Redoma de Vidro (Biblioteca Azul) a dificuldade da protagonista Esther Greenwood em lidar com a indecisão. “Eu via a minha vida ramificando-se diante de mim como uma figueira, e na ponta de cada galho, com um figo gordo e roxo, um futuro maravilhoso acenava e piscava”, escreve, “um figo era um marido, um lar feliz e filhos, outro era uma poetisa famosa e consagrada, outro era uma professora brilhante”. Esther sente-se faminta, mas não consegue jamais escolher qualquer um dos frutos. “Talvez querer tudo signifique não querer nada”, escreve Plath, “então, enquanto eu permanecia sentada, incapaz de optar, os figos começaram a murchar e escurecer e, um por um, despencar aos meus pés”.

Diante da árvore que faz florescer a nossa vida, é preciso lambuzar-se com os frutos, roê-los até o caroço, lamber a seiva que escorre pelos dedos. Mesmo que, às vezes, o gosto não seja o que imaginamos. “É inevitável quebrar a cara de vez em quando, é importante compreender que a frustração faz parte do processo e que não é o fim do mundo”, considera Cynthia. Os figos, afinal, continuam lá, nos galhos. Alguns, claro, perdem o viço e, apodrecidos, vão ao chão. “Algumas portas podem realmente se fechar. Se você era apaixonado por alguém, mas nunca se declarou, essa pessoa pode estar feliz em um relacionamento ou não estar mais entre nós”, exemplifica a psicóloga. Mas outros figos sempre estarão, suculentos, à nossa espera. “Ouço muitas histórias de quem quer resgatar um caminho. Viajar, aprender a dançar, fazer uma tatuagem, começar a tocar violão. São sonhos que não morreram, mas que foram deixados de lado por circunstâncias da vida”, encoraja.

Aprenda a (se) perder

Se a vida amarga, que nem jiló, é sinal de que chegou o momento de aprender a perder. “Os acontecimentos tristes nos levam a duas opções, e uma é construir uma fortaleza dentro da gente”, diz a designer Thaís Aragão. “A outra é descobrir que somos capazes de fazer coisas que nunca imaginamos”, completa. A expectativa para conhecer Nova York (EUA) ficou por um triz quando ela terminou um namoro dias antes de embarcar. E decidiu seguir com a aventura sozinha, apesar do medo de passar seus dias chorando enfurnada no hotel. “Entendi que o momento perfeito para a realização de um sonho talvez nunca chegasse e, mesmo que surgisse, poderia acabar de uma hora para outra.”

Meses depois de voltar de viagem, no Carnaval de 2013, Thaís reencontrou o ex-namorado e percebeu que não havia mais volta. Em cada pedacinho do seu coração partido, ela procurou a felicidade. E a reencontrou. “Com a dor da constatação de que não teríamos um futuro juntos, decidi que queria recomeçar a vida em outro lugar”, conta ela, que em 2015 se mudou para Portugal, onde a mãe morava havia anos. Praticamente todos os dias a designer se pega pensando no que seria se não tivesse encontrado tanta bravura dentro de si. “A gente só consegue enxergar o lado bom algum tempo depois, mas a incerteza do ‘e se’ nas nossas escolhas pode doer mais do que qualquer coisa”, arremata.

“Perca um pouquinho a cada dia”, escreveu a poetisa americana Elizabeth Bishop, em meados dos anos 1970, enquanto morava entre Ouro Preto, em Minas Gerais, e Petrópolis, no Rio. “Aceite a tormenta de esquecer as chaves, de gastar as horas bestamente”, continua, enumerando suas perdas, entre elas a do amor de sua vida, a arquiteta Lota Macedo de Moraes. “Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada”, anota, “pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério”.

Passamos tanto tempo quebrando a cabeça, recolhidos entre os cálculos e as equações que vão nos mostrar o rumo exato a ser seguido, sem perceber que pouco importa, no fim das contas, qual caminho seguir. Aos poucos, na nossa jornada, vamos acrescentando placas de sinalização, frustrações que nos impedem de voltar para trás. A indecisão torna-se tão branca quanto o cal nos meios-fios. O medo reside nas frestas de cada paralelepípedo nas calçadas. O arrependimento aquece o asfalto e nos queima a sola dos pés. Escolher não tem mistério. Então perca-se. Não se preocupe com o caminho, e sim com a jornada. E, assim, perceba que, no fundo, a estrada pela qual seguimos ainda é aquela mesma rua feita de areia em que, na infância, nos foi apresentada a felicidade.

Daniel Vilela não gosta muito de figo e acredita piamente que a árvore de sua vida está carregada de mexericas. Ou tangerinas, se preferir.

 

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