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Encontre sua paz
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O caminho que nos leva para a quietude, diferentemente do que estamos habituados a crer, é feito de ondas fortes e mares revoltos, demanda coragem e uma boa dose de amor

O mar sempre me assustou. A imensidão, a profundidade. Lembro quando era criança e, ao enfrentar as ondas, eu pedia que meu pai ou minha mãe não soltassem a minha mão. Talvez por isso eu tenha me encantado tanto com o olhar do carioca Henrique Pistilli. Para ele, o oceano sempre foi território de sabedoria, de conhecimento e de experimentação.

Henrique é conhecido como Homem Peixe, nome também da série que protagoniza no canal da TV a cabo Off e na qual ele fala da sua relação com o oceano, construída através de uma modalidade de mergulho chamada surf de peito — nela, você desliza na onda sem o uso de qualquer tipo de acessório. Foi numa tarde, assistindo ao programa, que ouvi de Pistilli uma frase que me incomodou:

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“A gente tem medo de estar no vazio, no silêncio, mas é desse lugar que realmente conseguimos escutar a sabedoria da vida”. Ele dizia isso olhando para um horizonte onde só existia mar e mais mar. A riqueza está naquilo que nos dá medo. Será? Movida por isso, decidi conversar com Pistilli sobre algo que me habitava havia algum tempo e que queria trazer para as páginas de vida simples: como encontrar a nossa paz? A minha, a sua, não necessariamente a paz mundial, mas aquela que lhe pertence, seu cantinho de silêncio, de encontro, de calmaria.

Sendo mar

Há alguns anos, conversei longamente com Henrique exatamente para as páginas desta revista. Reencontrá-lo foi um presente. Pistilli continua sendo mar. Ele vive entre o Havaí, o Rio de Janeiro e Fernando de Noronha, onde mora oficialmente. Mas ele é maior do que as convenções sociais propõem. E acaba navegando por onde quer e para onde seu coração lhe manda. E isso é lindo.

A primeira lição que aprendi com Henrique é que a paz, aquele momento que tanto almejamos, de calmaria, aconchego, mora dentro da gente. Para encontrá-la é preciso, antes, se encontrar, aceitar, acolher tudo o que vier, de bom e de ruim. “O que a gente vê fora é o que temos dentro. Posso olhar para um furacão e ver beleza nele. Para muita gente, uma onda gigante é assustadora. Eu vejo inspiração”, diz. Henrique me conta que o mais apavorante quando mergulhamos dentro da gente é sempre o medo do que vamos encontrar (e temos uma baita medo disso).

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Mas nesse momento devemos separar o que é real do que é fantasia, do que não faz sentido. Na maior parte das vezes, explica ele, temos medos irreais. O medo apareceu? Sinta, perceba, acolha. E, a partir daí, tome a decisão, mais centrado, sem se deixar levar apenas pela emoção. Ele faz, então, um paralelo com uma onda gigante: diante dela, você pode optar por surfá-la ou esperar pela próxima. Mas essa decisão precisa ser consciente, mesmo que exista um pouco de medo. O que não pode é que apenas esse sentimento defina sua escolha. A partir disso, você simplesmente não se acovarda, mas está presente. Na dúvida, recomenda ele, respire profundamente. Porque, entre uma expiração e uma inspiração, o corpo acalma e essa sensação de tranquilidade vai para a mente.

Algumas respostas…

“O medo pode até permanecer lá, mas ele não o assusta mais. Passa apenas a ser uma presença vazia. É contemplação”, termina Henrique, o homem que, definitivamente, sabe conversar com o mar e, segundo me confessou, é ali, na imensidão, que se sente mais seguro.

Fico pensando na conversa com Henrique. Estranho dizer que, ao mergulhar dentro da gente, nos deparamos com algo desconhecido… Mas é isso o que acontece. As primeiras experiências de meditar podem ser assim, angustiantes. Isso porque, quando você silencia e se propõe a se observar de dentro para fora, muitos incômodos começam a surgir: as costas doem, as pernas formigam, a orelha coça, a mente não cessa um minuto sequer. Nada parece colaborar e você se questiona onde está a paz interna, a calmaria? Pistilli, o peixe, havia me deixado uma pista: a resposta para essa questão estaria no vazio que nos habita.

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O vazio

É estranho falar que a paz pode estar no vazio, porque, para a maior parte, ele é falta. Decido, então, entrar. Nesse caminho, descubro uma expressão, de origem oriental, chamada Ma, que significa, literalmente, vazio. Encontro referências disso nas animações do diretor japonês Hayao Miyazaki. Foi ele quem criou o incrível A Viagem de Chihiro, a saga de uma garotinha japonesa que vê seus pais transformados em porcos após comerem guloseimas em uma vila fantasma.

Para voltarem à forma humana, Chihiro precisa cumprir uma jornada e enfrentar um mundo cheio de fantasmas e seres desconhecidos para ela. O filme é tocante, delicioso de ver, mas, ao mesmo tempo, inquietante em algumas partes. Há momentos em que a garotinha faz… nada. Em um dos trechos, ela está sentada no vagão de um trem. E, por alguns minutos, permanece sentada e é só isso. Não há ação, ninguém expressa uma única palavra. Isso é Ma, um vazio ou pausa.

O conceito de Ma, descubro, é representado na cultura japonesa pela união de dois símbolos: a porta e o sol. Dessa maneira, Ma não é um vazio qualquer, mas com propósito. Isso porque uma porta aberta é essencialmente um espaço vazio, um vão de onde conseguimos enxergar a luz que passa (pela porta). Assim, Ma é uma ausência que permite que algo se manifeste através dela. Ou seja, é no nosso vazio que também surge a nossa luz, a sabedoria que nasce com a gente, mas que fica acomodada em algum cantinho escuro. Ma, sigo descobrindo, é a pausa entra as notas musicais. É o branco. É a pausa nas conversas. O silêncio. O tempo que estamos insistentemente atropelando para ocupar com algo que não seja a gente mesmo e que, assim, não permite uma escuta mais verdadeira e profunda.

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O meu próprio silêncio

Decido olhar para o meu silêncio. Começo a meditar. Vale saber que não sou meditadora frequente. Nunca me senti à vontade nesse lugar. Insisto. E acontece o mais perturbador: meus pensamentos não cessam e eu não sinto nenhuma onda de calmaria. Até que, dias depois de me propor a meditar todos os dias, entendo: essa sou eu. Há que olhar, acolher para o que eu mesma estou tentando me dizer. Sigo para minha próxima conversa. Dessa vez com a psicóloga Karen Vogel, autora da obra Quando Aprendi a Me Amar (Conscientia Editora) e que organiza retiros de autocompaixão.

De cara, Karen já me adianta: “Quando a gente busca a paz, isso tira a paz” — fez um baita sentido, principalmente porque foi esse sentimento que tive durante as meditações. Isso acontece porque, quando nos calamos, para meditar por exemplo, aquilo que somos vem à tona. E, junto com o amor, gratidão, felicidade, vem também raiva, tristeza, frustração. “Brigamos o tempo todo com a gente mesmo porque ‘não quero sentir essa tristeza’, porque acreditamos que isso é ruim. Daí usamos as estratégias do não sentir e comemos demais, falamos sem parar, compramos algo que não temos necessidade”, diz. “Acolher é dizer para si mesmo que você vai pensar naquilo e estar aberto para sentir o que vier junto com isso.” E essa é a parte mais difícil.

E ela é difícil porque, conforme me explica a instrutora de mindfulness Solange Viana, vem junto com uma autorresponsabilidade grande. “Em geral, as pessoas atribuem a sua instabilidade emocional à economia, ao chefe, ao trabalho, ao vizinho. Ao que vem de fora, enfim. E buscam a paz como se ela fosse uma pílula mágica, um lugar a alcançar em outro espaço que não em você”, diz.

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A paz começa da gente

Simone é coordenadora nacional da Campanha Escolha a Calma, uma iniciativa da Brahma Kumaris na América Latina, um movimento espiritual mundial que tem como proposta promover o desenvolvimento pessoal, a paz e a não violência. Segundo ela, a prática da meditação todos os dias, mesmo que por alguns minutos, ajuda muito nessa busca. Ao sentar, parar, respirar você mergulha no seu universo interno, consegue observar seus pensamentos e se perceber — se possível sem tantos julgamentos. Essa consciência é que vai ajudá-lo a encontrar o seu espaço de calmaria, de pausa, independentemente de onde estiver ou do que acontece ao redor, das tristezas, das dificuldades e das frustrações.

Por mais que pareça clichê e repetitivo, Solange me diz uma frase que ouvi diversas vezes — e de pessoas variadas — ao longo dos encontros que tive para compor esta reportagem: “A paz começa dentro da gente”. “Não preciso ir para um templo budista, para a igreja, para o alto de uma montanha. O cenário realmente não importa, porque a paz estará dentro de você sempre”, afirma.

A especialista em desenvolvimento humano Lisiane Szeckir concorda. Ela criou um método chamado Revolução Amorosa, um programa de dois dias no qual ela dá algumas pistas de como podemos fazer esse cultivo, independentemente do cenário. Segundo ela, as pessoas buscam uma situação ideal para, então, se sentirem em paz consigo mesmas. “Isso não vai acontecer quando você tiver alguns quilos a menos, encontrar o emprego ideal ou o companheiro ou companheira dos sonhos. É preciso entender que a própria medida é o grande caminho e ser, assim, mais generoso consigo mesmo e com seu tempo”, diz. Generosidade e acolhimento são assim, componentes importantes.

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O encontro

As palavras de Solange e de Lisiane reverberam dentro de mim e encontro respaldo também nas ideias do professor americano Alan Wallace. “Nada do que acontece fora pode realmente fazê-lo feliz. A sensação de paz, serenidade, felicidade, de florescer não vem do que o mundo tem para lhe oferecer. Mas do que você está trazendo para o mundo”, afirma. Wallace é um grande conhecedor do budismo. A pedido do próprio dalai-lama, ele promove retiros sobre bem-estar emocional e consciência, seguindo os preceitos dessa doutrina.

O mais bacana do olhar de Wallace é que ele mostra que o encontro com a própria paz não se limita apenas a nós mesmos. E é nesse momento que a sua paz pode, sim, transformar não apenas você mas o seu entorno. “Quando prestamos atenção ao que acontece dentro de nós, passamos também a olhar mais verdadeiramente para o outro. Essa é a base da bondade amorosa, da compaixão. O seu bem-estar passa a estar associado ao daqueles que estão ao seu redor.” A força da fala de Wallace é enorme porque me faz perceber que a minha paz reverbera em outras pessoas. E, assim, como um efeito dominó, é possível realmente espalhar paz por aí.

O caminho percorrido por Nathália Roberto foi esse. Há pouco mais de quatro anos, ela trabalhava com moda. Tinha uma equipe para coordenar, uma carreira, viajava para diferentes partes do mundo e dividia o mesmo teto com o namorado. Parecia tudo bem, mas não estava realmente tudo bem. As coisas passaram a não fazer sentido, um incômodo enorme começou a se instalar. Caos interno. Ausência de paz. Foi quando ela fez um curso de empreendedorismo e percebeu que queria seguir para outra direção.

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O nascimento de Kind

Foi assim que nasceu, em 2014, a Kind, uma iniciativa que ajuda por meio de cursos e encontros outras mulheres a percorrer seus caminhos com mais independência e a colocar em prática antigos projetos: empreender e se conhecer um pouco mais. Nessa mesma época, ela conheceu também o budismo e as ideias de Alan Wallace, com quem já fez dois retiros. Foi com Wallace que ela entendeu que a paz talvez não seja algo que a gente encontre, mas que precise ser cultivado.

“É um trabalho que não tem fim”, ela diz. Isso porque precisamos nos olhar todos os dias, nunca haverá um pronto, um ideal. É o que é. Dia após dias. Não existe um momento extraordinário, de iluminação. A paz está na percepção de que existe beleza na gente e tristeza também — e tudo bem, faz parte de quem somos. E há alegria, gratidão nas miudezas, no vento que bate, na chuva que cai, no café recém-coado. A paz habita tudo. Então ela nunca se esvai. Ela existe agora. “O Alan Wallace sempre costuma dizer que mais importante do que o tempo que você passa meditando é o que você faz nas horas que lhe restam. Cultivar a paz tem a ver com a forma como você está vivendo no mundo”, resume.

Concordo. Aliás, esse é um ponto essencial do livro Silêncio — O Poder da Quietude Num Mundo Barulhento (Harper Collins), de Thich Nhat Hanh, uma ótima leitura para quem está em busca dessa escuta que vem de dentro. Thich Nhat Hanh é um monge budista vietnamita e, nessa obra, fala sobre as dificuldades e acertos para silenciar.

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O cultivo de nossa dimensão

Em um dos trechos, ele escreve: “Precisamos cultivar a dimensão espiritual de nossas vidas se quisermos ser livres,  leves e estar verdadeiramente à vontade. Precisamos praticar para que possamos restaurar esse tipo de espaço. Somente quando conseguirmos abrir um espaço dentro de nós mesmos, poderemos realmente ajudar os demais”. E segue: “Reserve um tempo, todos os dias, para ficar atento à sua respiração e aos seus passos, para trazer sua mente de volta ao corpo… para lembrar que você tem um corpo! Separe um tempo, todos os dias, para ouvir com compaixão a criança que você carrega dentro de si, para escutar as pequenas coisas que clamam para serem ouvidas. Depois, você saberá ouvir os demais”.

De volta para casa

Neste ponto, releio uma frase sobre a busca da quietude escrita pelo lama Padma Samten, que por três anos foi colunista de vida simples: “A nossa mente já tem esse espaço interno”. Ou seja, esse sentimento ou estado de paz sempre existiu dentro cada um. Como disse Nathália, não é um encontro, é um cultivo. O que fazemos é voltar para casa. Ser, de novo, a gente mesmo. Nos perdemos e nos reencontramos. A paz é a gente, na nossa infinidade interna, no vazio que nos habita, na imensidão que somos. Volto novamente para a menina que fui. Agradeço aos meus pais por me conduzirem até o fundo do mar para que eu me sentisse mais segura, mas sei que, agora, posso seguir sozinha. Não tenho mais medo desse oceano, dessa sabedoria que existe em mim. Que eu consiga mergulhar profundamente, sempre. Essa é a verdadeira paz.

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