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Brechó: o usado passado a limpo
Becca Mchaffie (Unsplash)
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Consumidores e vendedores de brechós enxergam nas roupas usadas um jeito de se conectar a histórias e dar novos sentidos a elas no presente.

Desde pequena, gosto de fuçar o armário da minha mãe. Se algo me atrai, elogio e ela logo lança: “Pega, mas devolve!”. Foi assim com um vestido preto, um blazer, uma saia… Às vezes, ela se dá por vencida e decreta: “É sua”. Com meus amigos, a coisa é parecida. Uma jaqueta descolada, um biquíni vermelho e uma faixa fluorescente saíram dos armários deles para morarem no meu. Olhar essas peças me faz lembrar desses amigos e, ao vesti-las, a sensação é de estampar no corpo essa memória. Também gosto de trocar minhas próprias peças — inclusive com desconhecidos – em bazares em casa ou em feiras ao ar livre. As trocas se intensificaram em uma viagem que fiz pela América Latina de 2016 a 2017. Carregando uma quantidade limitada de roupas na mochila, o jeito era substituir o que já não servia pelo que se tornava necessário. Comprei por um valor simbólico peças de frio de uma chilena que conheci em Cuzco, no Peru, e me despedi de jaquetas pesadas quando me aproximava da Colômbia no verão.

Uma vez, apareceu uma camiseta estampada com triângulos na cama que eu ocupava em um quarto compartilhado de hostel. Passei a usá-la e, como ninguém reclamou sua propriedade, ela se tornou minha nova companheira de viagem. Um de seus triângulos me apareceu como uma tatuagem em um sonho durante um voo. Ao pousar, conheci um tatuador que gravou a forma na minha pele, como símbolo de encontro e desapego. Era de se esperar que os brechós cruzassem meu caminho. Na volta ao Brasil passei a frequentar vários deles. Foi aí que conheci também as pessoas por trás das escolhas das peças: os expositores de brechós, que compartilharam comigo sua relação com roupas antigas e as conexões que elas possibilitam.

Histórias de bolso

As peças do Club Monaco Brechó, especializado em jaquetas, chamam atenção por suas cores vibrantes, estampas geométricas e referências aos anos 1980 e 1990. O “curador”, Leo Dario Lejsek, conta para onde essas peças o levam: “Me imagino nos Estados Unidos indo para um fliperama ou para uma festa com meus amigos décadas atrás”. Leo nasceu na Bolívia, e seus pais compravam roupas em brechós porque não havia lojas de departamento com preços acessíveis por lá na época. Quando se mudou para São Paulo, aos sete anos, as lojas, encontradas a cada esquina, tomaram um espaço maior na vida da família.

Há quatro anos, as roupas antigas voltaram a ser presentes para ele. “Meu TCC foi sobre trabalho escravo. Pesquisei as oficinas de costura em São Paulo, onde as condições dos bolivianos são das piores, e tomei consciência sobre o cenário de algumas marcas grandes da moda”, conta. Como alternativa à indústria têxtil, que também é uma das que mais poluem o meio ambiente, Leo passou a garimpar, a usar roupas de brechó e a conscientizar as pessoas sobre a importância de fazer as roupas circularem também como forma de repensar o consumo e inspirar um estilo de vida mais sustentável.

Assim, foi criando o próprio acervo. Hoje, nas viagens que faz a lazer ou a trabalho, garimpa peças imaginando as histórias de quem as vestiu. “Encontrei no bolso de uma jaqueta uma carta em inglês em que a pessoa dizia para o irmão que sentia saudade dele e que logo estaria em casa”, conta. “Fiquei pensando: será que esse bilhete foi entregue? Será que esses irmãos se encontraram?”, diz Leo, que já achou nos bolsos pedaços de pão, papéis de bala, moedas de vários países e fotografias.

Roupas antigas, novas Histórias

Saber as histórias por trás das roupas também move Camila Gonçalves, do Brechó Itinerante. Fascinada por peças das décadas de 1950, 60 e 70, ela já viajou pelo interior de São Paulo batendo de porta em porta para ouvir sobre as roupas e comprá-las. “Em Piratininga, parei em um bar muito antigo, e por lá conversei com uma senhorinha. Anotei em um guardanapo: ‘Gostei muito das suas coisas, se um dia a senhora quiser vender, está aqui meu número’. Cinco anos depois, a neta dela me ligou: ‘minha avó morreu e eu encontrei na bolsinha de mão dela o seu bilhete’. Fiquei maravilhada por ela ter guardado meu recado. Fui lá e trouxe muita coisa especial”, conta.

Você talvez tenha ouvido – ou falado – que roupa de brechó é velha, suja, de morto, “vai  saber quem usou e que energia ela guarda”. Ela guarda momentos felizes, tristes e inusitados que alguém passou enquanto a usava, mas espera outros donos para ganhar novas histórias. É o que defende Thainá Almeida, consultora de imagem e estilo. Thainá abriu, há dois anos, o brechó Inventei Moda, e conta que gosta de imaginar uma peça de outra época em alguém do presente, ressignificando seu estilo. “Se cairmos nessa de seguir tendência, desvalorizamos o que foi criado. É aí que as coisas viram lixo”, alerta. “Temos que aprender a ressignificá-las e a usá-las no contexto de hoje. O mundo já está cheio de roupas, é preciso fazer circular”, diz. Thainá descobriu nos guarda-roupas masculinos dos anos 1970 as calças pantalonas e camisas coloridas onde hoje imperam roupas “simples e sem graça”, diz.

Mateus Pedro Neves, do Brechó Vintage Club, também adorou quando um cliente lhe contou que os cropped eram comuns nos anos 1940 entre homens que jogavam tênis. “Não tinha esse tabu de homem não poder usar uma roupa apertada ou curta. Fiquei feliz em saber disso.” E trabalhar em brechó ajudou Mateus a criar uma nova história para si. Por gostar de homens, sofreu resistência de sua família em aceitá-lo. E viu nas roupas antigas uma maneira de conquistar sua independência e sair de casa. Hoje, as peças o fazem descobrir o passado e reinventar para si um novo presente. Caminhar entre araras, garimpar objetos e apreciar peças antigas podem nos ajudar a ressignificar muito – dentro e fora da gente. Uma roupa nos permite viajar por histórias e também nos ajuda a recontar a nossa própria. Por trás de tudo isso estão os afetos, encontros, desencontros e tudo o que queremos cultivar – em qualquer guarda-roupa ou em nossa própria pele.


Martina Medina é jornalista e gosta de garimpar brechós.

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