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APRENDENDO A APRENDER – Ser inteligente é o mesmo  que tirar boas notas?
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Ainda hoje, esbarramos com resquícios de um passado em que se valorizavam certos conhecimentos e aptidões mais do que outros, como se fossem talentos natos e decisivos. A educação hoje nos ensina que precisamos ser mais abertos para identificar aquilo em que cada um é bom e usar essa característica a favor de um desenvolvimento integral

criancas

Um dia antes de escrever este texto, durante o almoço, uma conversa me chamou atenção. As pessoas com quem eu estava discutiam sobre o seu passado escolar. “Estudei em colégio militar. Sempre fui mau aluno, passava raspando”, disse um dos interlocutores, que trabalhou durante mais de uma década no governo federal, elaborando políticas educacionais e hoje é diretor
executivo de uma instituição de pesquisa apoiada pela Universidade Stanford, uma das mais prestigiadas dos Estados Unidos.

Outro, empreendedor e professor de psicologia em uma universidade federal, concordou: “Também sempre fui mau aluno no meu colégio.”

Pouco antes, havia discutido sobre a relação entre inteligência e boas notas com Leticia Lyle, sócia-fundadora da Camino Education, parceira de VIDA SIMPLES nesta série de textos sobre educação. “Quando eu olho para a turma com quem eu estudei e vejo as pessoas que eu achava mais ou menos inteligentes, a trajetória de cada uma mostra que a inteligência estava menos relacionada às notas do que a outras características delas”, me contou.

As noções de inteligência têm se transformado ao longo do tempo. Na Grécia Antiga, as ideias de Platão e Aristóteles já colidiam nesse sentido. Platão defendia a possibilidade de estudar o mundo e de imitá-lo, mas pregava que aqueles que se dedicassem à arte deveriam ser expulsos da pólis. Já Aristóteles acreditava na existência de uma variedade maior de saberes, todos valiosos: o racional, o técnico, o prático, a Sabedoria e o saber criativo.

Durante muitos séculos, essa discussão seguiu mais no plano filosófico do que prático. Entre meados do século 19 e o início do século 20, ela voltou a ser fundamental.

O mundo passava por grandes mudanças econômicas, tecnológicas e sociais: cada vez mais países se industrializavam, voltavam sua atenção ao desenvolvimento científico e implantavam sistemas educacionais mais amplos. Isso gerou o surgimento de dois aspectos que moldaram a ideia como a inteligência foi vista a partir de então.

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O primeiro deles se deu porque, com cada vez mais alunos, tornou-se necessário criar estratégias para agregá-los – de acordo com a idade e o seu conhecimento, criando as séries e etapas escolares – e observar sua aprendizagem – desenvolvendo
mecanismos de avaliação e as notas.

O segundo foi a criação de testes de inteligência, que atenderam a interesses diversos: identificar estudantes que enfrentariam dificuldades escolares e quais teriam potencial para seguir os estudos e se desenvolver em diversas carreiras. Nessa visão, a inteligência era ligada a uma aptidão em testes de raciocínio lógico-matemático e, muitas vezes, vista como uma característica natural, quase genética.

Na prática, esses dois pontos criaram sistemas de exclusão. No limite, teorias naturalizaram a ideia de que as pessoas traziam de nascença diferentes potenciais de aprendizagem, apontados pelos testes de QI e pelo desempenho escolar, e isso explicaria diferenças sociais e econômicas – perspectiva muito associada ao racismo e a teorias que pregavam superioridade de grupos étnicos.

INTELIGÊNCIA E VIDA ESCOLAR

Na última edição, convidei você a refletir sobre a maneira como estudantes são avaliados ainda é limitadora, pois reconhece só uma parte do que se considera importante aprender. Associada à antiga ideia de que a inteligência é algo natural, ela pode ter consequências muito negativas. Um exemplo é o do sistema educacional alemão. Lá, crianças são direcionadas a diferentes escolas após o final da educação primária, de acordo com seu desempenho acadêmico. Essa diferenciação também indica quais teriam mais aptidão para seguir os estudos em uma formação técnica ou universitária.

No Brasil, os resultados são ainda piores. Alunos que não se saem bem nas avaliações são reprovados diversas vezes, gerando um fenômeno chamado de distorção idade-série – quando há uma diferença de mais de dois anos na série em que o estudante deveria estar de acordo com a idade. Ela vem acompanhada de um estigma que recai sobre o aluno: do seu próprio ponto de vista, assim como entre familiares e até entre educadores, ele passa a ser visto como um incapaz de aprender.

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O resultado, com frequência, é que ele largue a escola, um problema enorme para o nosso sistema educacional. Dados mostram que, hoje, 40% dos jovens de até 19 anos de idade não concluíram ainda a Educação Básica. Obviamente, a noção de inteligência não é a única causadora da desistência dos estudantes – questões como a infraestrutura escolar, a formação dos professores e as condições socioeconômicas têm um forte papel nisso –, mas parece claro que ela permeia esse fenômeno.

O QUE É INTELIGÊNCIA, HOJE

Um dos principais definidores do conceito contemporâneo de inteligência é Howard Gardner, professor da Universidade Harvard. Ele defende que existem diferentes inteligências presentes em todos os seres humanos e que o desenvolvimento delas se dá por uma mistura de aptidão inata e também por meio da educação. Por um lado, a proposta de Gardner cria um alívio, porque rompe com a noção de que nem todos podem aprender e que as notas em avaliações são definidoras da inteligência dos estudantes.

Mais do que isso, ele nos provoca a olhar para cada indivíduo para reconhecer seus potenciais. Essa mudança de paradigma é fundamental para repensarmos os impactos que provas e notas podem ter sobre os estudantes e nos provoca a olhar para habilidades que vão além daquelas mapeadas em provas e testes.

É necessário repensar como educamos jovens e as funções que as escolas desempenham. Observar isso tudo é, hoje, mais importante do que nunca, quando habilidades como a criatividade, a capacidade de resolver problemas e o relacionamento interpessoal são extremamente valorizados. Mas também não podemos perder de vista a importância de garantir que todos os estudantes tenham acesso a aprendizagens essenciais.

Entender que nem todos têm o mesmo potencial para desenvolver sua inteligência lógico-matemática não significa que Matemática não deva ser ensinada. Na verdade, impõe um desafio às escolas, às famílias e a nós mesmos: precisamos reconhecer as aptidões e os interesses de cada um – em nós e nos outros – e usá-los em favor da construção e do desenvolvimento em outros aspectos.

A SÉRIE APRENDENDO A APRENDER é uma parceria entre a Vida Simples e a Camino Education. A proposta é apresentar novos olhares e caminhos sobre como buscar conhecimento para entendermos melhor a gente mesma, o mundo ao redor e aquilo que nos interessa, dentro ou fora dos espaços formais.

CAMINO EDUCATION tem seu trabalho focado nos valores humanos. Une experiências e perspectivas de educadores, administradores, empreendedores e acadêmicos para criar um ecossistema global em que estudantes, professores, escolas, famílias, comunidades e organizações podem unir forças, criar caminhos educacionais inovadores. www.caminoeducation.com

WELLINGTON SOARES é jornalista formado pela Universidade de São Paulo. Trabalhou por seis anos na produção de conteúdos para professores da Educação Básica. Atualmente, descobriu-se professor e dá aulas, mas segue escrevendo e ajudando organizações do terceiro setor a produzir conteúdos sobre Educação.

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