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Sacerdotes urbanos
NicoElNino | iStock Double exposure of woman practicing yoga and city background with office building, concept about revitalizing in modern business life
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Entre árvores e arranha-céus, praticantes de antigos cultos, ligados à natureza, encontram espaço para evocar suas crenças em plena metrópole

O som do tambor soa em um ritmo compassado e envolve os participantes do ritual para o que vem a seguir: convidar a presença do deus irlandês Manannan Mac Lir (divindade celta ligada ao oceano) para que traga a inspiração e a força dos mares, conduzindo-os pelas vias da sabedoria ancestral. Chamas de velas desenham formas nas paredes. Sentados em almofadas, os praticantes respiram reconfortados. Pela janela – e onze andares abaixo da sala onde se encontram – é possível ver as luzes de uma movimentada avenida de São Paulo. Mas o barulho intermitente de uma ambulância – ao menos para esse grupo de pessoas – passa despercebido.

Embora a cena descrita acima possa parecer exageradamente exótica ou peculiar para muitos, esse tipo de evento é relativamente comum em metrópoles de todo o planeta. Hoje já são muitos os chamados sacerdotes urbanos, gente que busca alívio e sentido para a vida através do resgate de tradições filosóficas e espirituais, provenientes de sociedades pré-cristãs e ligadas à natureza – como o druidismo, a bruxaria e o xamanismo – mesmo em uma cidade grande.

Conectando-se à natureza

“Ser um sacerdote não é estar acima de alguém hierarquicamente. É apenas desenvolver esse contato íntimo com as vozes da natureza, saber interpretar, mesmo numa cidade como São Paulo, entre árvores e arranha-céus, as necessidades das pessoas, da comunidade e do mundo”, afirma Marcos Reis, analista de sistemas, músico e xamã.

Marcos conduz rituais e vivências de xamanismo, um conjunto de crenças ancestrais que, ao fazer uso de instrumentos nativos, ervas e cânticos, estabelece contato com outros planos de consciência. O objetivo desses rituais é proporcionar conhecimento, equilíbrio e saúde.

Segundo ele, a conexão com a natureza em plena selva de pedra pode ser estabelecida de diversas formas, e a principal delas é o que ele chama de tomada de consciência. Marcos exemplifica: “mesmo em uma metrópole, todo alimento que comemos passou, em sua origem, por mãos de pessoas da roça. Ou as sementes que só brotaram depois de serem banhadas pela chuva”. E continua: “estarmos cientes desse processo nos leva ao entendimento dos ciclos da natureza e de como nos encaixamos neles. Isso aumenta as nossas chances de viver bem”.

Cantos inspiradores, poemas, meditações, ervas aromáticas, alimentos saudáveis e ofertados com reverência, o compartilhar de histórias pessoais e de sentimentos. Segundo os praticantes do xamanismo, esses são alguns dos pontos fundamentais para estimular a conexão com o natural e para que o senso de comunidade esteja presente durante os ritos realizados, mesmo longe da mata.

“É possível substituir a floresta e os campos por salas, jardins ou pequenos recantos; a fogueira, pelas chamas de velas; o céu estrelado, por um ambiente acolhedor, tornando, assim, o contato com o todo mais simples e fácil”, completa Marcos, que destaca os ritos como uma oportunidade única de fortalecer o significado da palavra clã. “Há a necessidade de encontrarmos irmãos e irmãs que compartilhem de uma mesma sensibilidade”, diz.

Para a tradutora Petrucia Finkler, adepta da bruxaria natural (prática que prega a sintonia consigo mesmo e com os quatro elementos da natureza), os momentos de quietude e de meditação, assim como a adoção de uma conduta diária atenta aos ciclos da vida, são importantes para obter momentos de equilíbrio. “Ao trabalharmos a atenção para as estações do ano, com suas variações de luz, de temperatura, de comportamento dos animais e também do nosso, a tendência é resgatarmos um sentimento de pertencimento e um estado de gratidão”, diz ela. “Para muitos, é como se fosse um reencontro com algo que foi esquecido sobre si mesmo”, completa ela, que mora em São Paulo.

Restituindo os elos perdidos

Crédito: oatawa | iSotck

A correria diária e sempre conectada parece nos impedir de observar que a natureza se manifesta a todo instante. Enquanto caminhamos pela rua, de olho em nossos smartphones, a Lua está linda, mas não temos tempo para dar atenção a isso. As primeiras flores estão pipocando nas árvores, mas nem percebemos.

Para os praticantes desses rituais, essa é a chave: atentar para o que está ao nosso redor, para o fato de que também fazemos parte deste ciclo natural das coisas e, assim, acessar a sabedoria que se acredita estar contida nisso tudo.

O psicólogo Eliandro Santos considera a falta de contato com o meio ambiente – e o verde – uma das mais impactantes na rotina das grandes cidades. “Ao distanciar-se de uma realidade em que a população dependia de chuvas e do Sol, de épocas de frutas e de cópula de animais, o homem moderno passou a se perceber como algo externo à natureza, não mais como ser integrante do ambiente ecológico que o cerca. A poluição atmosférica e os processos artificiais na produção de alimentos trouxeram uma sensação pasteurizada da mudança das estações ou mesmo da luz do dia e da escuridão da noite”, diz ele.

Por isso, ele afirma, resgatar essa espiritualidade ligada à natureza pode ser enriquecedor: “Há uma sensação de pertencer novamente ao mundo e à comunidade. Há a chance de vivenciar de uma alegria primitiva e genuína ao celebrar a chuva ou o desabrochar das flores”, exemplifica.

Muito além do rito

O que se percebe em quem participa dessas religiões voltadas à Terra é que elas vêm acompanhadas de responsabilidade e de consciência ecológica. Cria-se um compromisso com o mundo. “Por entendermos que somos parte do todo, passamos a ter mais responsabilidade sobre nossas escolhas e também sobre o impacto que cada uma delas pode causar na nossa vida, na dos outros e no planeta”, enfatiza Petrucia.

Andréa Guimarães, desi­gner e praticante do druidismo (religião dos celtas, que tem como princípio básico a sacralidade da natureza) faz questão de frisar que o envolvimento de sua tradição com o meio ambiente está muito relacionado à participação ativa em movimentos de conscientização e de preservação. “Vivemos em um mundo ameaçado pela poluição e pela exploração predatória dos recursos naturais”, ela diz.

“A cada dia fica mais urgente saber o que pode ser feito para reverter essa situação e o druidismo, como tradição ancestral e religião verde, estimula questionamentos, ações e reações às questões ambientais locais, principalmente nas grandes cidades”. Para os druidistas, a natureza a ser defendida não está apenas nas florestas, nos mares, nos rios e em lagos remotos. “Ela tem de ser resgatada onde vivemos, pois tudo isso faz parte de um único planeta”.

Para Andréa, a receita para se estar mais próximo da natureza e ter uma vida melhor e mais saudável é mais simples do que parece e não requer, obrigatoriamente, o envolvimento com qualquer crença ou religião. “A melhor prece que se pode fazer a uma deidade da natureza é reciclar o lixo que produzimos em casa. E também encorajarmos as pessoas a tomarem as rédeas de suas próprias vidas, ensinando-as a jamais dependerem de preces para o alcance de suas conquistas”, diz.

Cristina Judar é jornalista e autora das HQs Lina e Vermelho, Vivo, do livro de contos Roteiros para uma Vida Curta e do romance Oito do Sete, vencedor do prêmio São Paulo de Literatura.

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