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O que aprendi ao fazer pão
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O generoso alimento que acompanha a civilização há mais de 10 mil anos ensina sobre o amor na doação de si mesmo e o cultivo da paciência

Primeiramente gostaria de dizer que fazer pão me emociona. E é difícil até descrever como fico ao sentir o cheiro que ele exala quando está no forno ou quando o corto ao meio no dia seguinte, já em sua textura mais correta de consumo, com a massa menos úmida, ainda que seja sempre uma tentação parti-lo ainda quente. Não falo dos pães feitos em escala industrial, o pão que me arrepia a pele é simples. Simples até demais. Leva apenas trigo, água, fermento natural e sal. Leva tempo, atenção, um bom punhado de sensibilidade, uma porcentagem grande de afeto, de respeito e admiração à história da humanidade, que há 14 mil anos começou a assar em pedras uma massa achatada, feita da combinação de farinhas de trigo e cevada selvagens, raízes trituradas e água.

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O pão sempre foi generoso comigo. E com muitas pessoas que sentiram em algum momento da jornada a necessidade de reinvenção. Ainda bem jovem, estudei por quatro anos o processamento e conservação de matérias-primas, produtos e subprodutos da indústria alimentícia. Mas como as palavras escreviam dentro de mim desde os 11 anos, cursei Jornalismo e a essa profissão me dediquei. No início do ano passado, a revista que editava foi extinta, me levando a pensar que já era hora de realizar algo ligado à área gastronômica. E, como num estalo, o fluxo de ideias me fez refletir sobre minhas mãos e como a elas eu era grato; nas poesias em cadernos, nas reportagens digitadas no computador, nos passes energéticos que eu canalizava. Elas também haveriam de me levar a algo novo, embora ancestral: o pão.

Paciência

Mas eu não queria simplesmente fazer pão. Queria um retorno às técnicas mais artesanais. E primeiro era necessário cultivar o meu fermento natural, obtido por meio de uma mistura diária de farinha e água em proporções corretas até que se “capturem” as bactérias e leveduras presentes no ar e na própria farinha, que por sua vez se alimentarão dos nutrientes que nela estão, sendo responsáveis, respectivamente, por produzir os ácidos acéticos ou láticos, responsáveis pelos ricos sabores e texturas, e o dióxido de carbono que fará o pão crescer. É na prática um ecossistema complexo, o qual, dando tudo certo, encontrará êxito depois de alguns dias. E é assim a primeira lição que aprendi: ter paciência.

Todos os dias, a saber como estava, abria ansioso o armário no qual guardava o meu fermento natural, esperando pelas primeiras bolhas de gás. Somava feliz uma por uma até que a contagem parou. Por algum erro no processo, meu levain (em francês) havia morrido. E dessa constatação veio o segundo aprendizado: lidar com frustração. Depois de dias alimentando o fermento, só restava agora jogá-lo no lixo. A segunda tentativa não teve um desfecho diferente. Não foi fácil lidar com os questionamentos internos me fazendo querer crer que eu deveria desistir. Autodidata na panificação, recobrei o que fiz passo a passo e recorri a artigos e vídeos até compreender o que havia de errado.

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A paciência foi fundamental para, na terceira tentativa, poder gozar a alegria de ter meu fermento natural ativo. Meses depois, produzindo pães em escala maior, compreendi que essa virtude é obrigatória a um padeiro. Da mistura dos ingredientes até ir ao forno, o processo de feitio de um pão de fermentação natural chega a levar mais de 30 horas. É necessário esperar, admirar a natureza em atuação.

Para o pão, você não está absolutamente no comando

Mas fazer pão está além do cumprimento de etapas técnicas, da escolha da farinha e da qualidade do forno. É preciso aceitar que você não está no comando absoluto. Ainda que tudo tenha sido bem executado e os sentimentos empregados sejam os melhores – acredite, energia boa é transmutada no pão –, é a natureza quem define o resultado. Se o dia está mais quente ou frio, as bactérias e leveduras agem de maneira diferente, e mesmo que duas massas tenham sido preparadas ao mesmo tempo, o resultado também pode ser diferente. Não estar no comando traz também a necessidade de outra virtude: a resiliência.

Tive de encarar inúmeros reveses em meio aos primeiros livros e vídeos que utilizei para o estudo. E nos incontáveis testes que fiz e ainda faço, e até nas adaptações para adequação do meu ateliê de pães, que foram até o ponto que me é financeiramente permitido em relação à compra de utensílios e equipamentos.

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Aprendi também que se compartilha o pão. Foi feito para isso, para alimentar a todos. Está com a humanidade há milênios. Com o pão fortaleci um vínculo familiar que me é muito caro. Ninguém me arranca a memória de sovar a massa com minha filha mais velha, Liz. Ou ver a menorzinha Manuela com o nariz branco de farinha. Quantas vezes minha esposa, Bianca, acordou de madrugada comigo para ajudar a preparar os pães, e até amigos e familiares compartilharam esse momento em algum apuro de produção?

Administrar o tempo

Quando preparo uma quantidade mais expressiva de pães, às vezes, preciso recorrer a uma masseira para conseguir misturar os ingredientes. É o único processo mecânico que utilizo. Mas confesso que meu maior prazer é deixar minhas mãos presentes em todas as etapas. Quando estou ali, diante da massa, consigo intuitivamente fluir e fazer a conexão com as pessoas que, século após século, fizeram o mesmo que eu. Com o pão encontro respostas sobre a vida, alimento minha família e aqueles que não conheço.

Essa mesma conexão é o que sente a padeira carioca Nanda Benitez, dentista de formação, que a cada ano angaria mais seguidores em seu canal no YouTube. A cozinha foi ao longo do tempo ganhando uma proporção maior em sua vida, a ponto de Nanda estudar gastronomia, se dedicar com afinco à produção de pães e abandonar a odontologia. “O pão hoje é uma batalha interior. A cada vez que evoluo ao fazê-lo, me sinto melhor como pessoa. Entendi que realmente não sou capaz de controlar tudo, e o que consigo como ser humano é administrar apenas algumas coisas.

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Mas, quanto melhor eu as administro, melhor fico, mais cresço e melhor me posiciono diante do mundo. E o que é o pão senão administrar tempo, temperatura e paciência? A vida é isso. O pão é um encontro, porém devemos estar dispostos a nos encontrar.” Sim, Nanda, pão é isso: o grão moído, a mão que o mistura à água, o símbolo da criação. E da transformação.

➥ Para saber mais sobre o tema: http://bit.ly/Alimentofeito

Gustavo Ranieri se encanta em colocar as palavras no papel e em fazer pão.

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