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O corpo é o nosso primeiro lar
Hanna Postova
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Uma inquietação de memórias me veio à cabeça enquanto me preparava para escrever este texto. Pensando nesta morada que é o meu corpo, nesta unidade indissociável que habito, mas que às vezes foge de mim, deitei- -me no chão, olhei para o céu e, em minha mente, chamuscaram lembranças. Recordei-me das aulas de teatro, ainda adolescente, caminhando lentamente pelo espaço e buscando observar cada parte do meu corpo com curiosidade e estranhamento. Passaram memórias da jovem mulher nas aulas de dança, encarando o rosto no espelho da sala de aula e descobrindo os movimentos e expressões que aquele corpo podia arriscar.

Fui levada, então, à mulher adulta em busca do silêncio das aulas de ioga, treinando a percepção de cada parte deste corpo inquieto e viajando por ele, de olhos fechados, enquanto as costas se acomodavam no piso a cada inspiração e expiração. As memórias, de repente, me trouxeram de volta para o momento presente, e pude reconhecer a jornalista que, deitada, observava a movimentação no céu e as próprias sensações.

Junto com as lembranças e percepções momentâneas, naquela pausa legítima, reencontrei, por um instante, o corpo que habito, com todos os seus sentidos e sutilezas. Mas como parecia difícil ter momentos como aquele no turbilhão do dia a dia! Grande contradição: entre afazeres, obrigações, mensagens instantâneas, pensamentos estratégicos, nos perdemos de nós mesmos, nos desconectamos do indissociável. 

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O tempo das coisas

 “Nós não temos um corpo, nós somos o nosso corpo”, nos lembra a bailarina, coreógrafa e professora de dança e educação somática Jussara Miller. “A partir dessa percepção, o corpo torna-se protagonista dos mo(vi)mentos da vida: o corpo em experiência, o corpo em presença, o corpo em relação”, revela. Porém, muitas vezes nos distanciamos dessa consciência de integralidade e perdemos a oportunidade de nos posicionar diante da vida, despertos para a experiência do corpo sensível e da escuta de si mesmo. “Atualmente, estamos vivendo com o olhar para fora, para o fazer, o cumprir tarefas, e tudo com muita pressa, resultando na exaustão pelo imperativo da produção. Com isso, nos atropelamos e abandonamos o corpo, como se fosse possível separar-se dele”, reflete Jussara.

Aprender a ouvir as movimentações do próprio corpo é um caminho para uma conexão íntima consigo mesmo.

Questionada sobre o mesmo dilema, a terapeuta de BodyTalk Isadora Ferreira atribui essa desconexão da sabedoria do corpo ao estresse, principalmente aquele gerado pelo imediatismo com o qual nos habituamos com o desenvolvimento da tecnologia. Ela explica que a realidade multitelas e de atualizações rápidas faz com que tenhamos gatilhos mentais de curiosidade e imediatismo constantes, já que, a cada vez que rolamos a tela do celular, temos uma promessa de gratificação instantânea. “Eu percebo que as pessoas estão ficando cada vez mais nervosas quando elas precisam exercitar o mínimo de paciência, e isso contribui para que queiram que tudo seja resolvido rapidamente”, explica a terapeuta.

Em contraposição ao imediatismo imposto, nosso corpo tem seu próprio tempo. Mas, se tivermos disposição para ouvi-lo, acessaremos uma sabedoria preciosa de fluidez e respeito aos processos naturais que caracterizam nossa existência.

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A sabedoria do corpo

 “O nosso corpo é um espelho vivo do que acontece dentro da nossa mente consciente e subconsciente”, explica Isadora. Nessa perspectiva, ele estabelece uma conversa constante conosco por meio de manifestações que revelam como internalizamos os acontecimentos da nossa história, influenciados também pelas nossas crenças. Se olharmos com interesse para esses sinais, podemos ir revelando e cuidando de questões que não vieram à consciência e se espelham através do corpo.

O acesso a essa sabedoria exige, porém, um querer para nos livrar de alguns comportamentos automáticos, como tomar um remédio imediatamente para cessar uma dor. Ao percebermos a chegada de uma dor de cabeça, por exemplo, a terapeuta nos propõe que, antes de remediar, possamos incluir questionamentos que nos ajudem a contextualizar esse sintoma físico: pergunte-se “quando?”, “como?”, “onde?”, “com quem?”. “Assim nos educamos a olhar para o que está acontecendo conosco com uma curiosidade saudável. Abandonamos a narrativa de que o corpo está com defeitos e entendemos que ele está nos comunicando algo”, ressalta Isadora.

A terapeuta ainda nos lembra que, apesar da desconexão, essa sabedoria é algo que nos acompanha como sociedade em um inconsciente coletivo, manifestado por meio de expressões cotidianas que remetem às partes que nos compõem e suas relações com variadas situações: “essa pessoa não me desce bem”, “isso é dor de cotovelo”, “preciso dar passos firmes na vida”, “me deu um frio na barriga”.

Foto: Diego Rosa/Unsplash

O despertar da consciência

O desenvolvimento dessa importante consciência que desejamos despertar em nosso corpo pode ser alcançado por experiências que promovem autocuidado, como ioga, dança e práticas com abordagens somáticas, que consideram a unidade corpo-mente, e o diálogo entre o interno e o entorno, trabalhando a atenção ao corpo em sua integralidade. A bailarina e professora Jussara Miller nos explica que consciência corporal é um reconhecimento do próprio corpo diante de suas sensorialidades, tornando as atitudes e movimentos práticas conscientes diante da escuta do organismo. “É um saber- -fazer baseado na experiência sensível, abrindo a percepção para o que acontece no momento presente, sendo possível agir em resposta ao que percebemos, o que possibilita um refinamento a cada instante. Essa consciência é uma maneira de reconhecer que o corpo está em transformação constante”, descreve Jussara, trazendo à luz a complexidade da vida e de suas mudanças.

Ao não ignorar as mensagens enviadas pelo corpo, nos permitimos um encontro com o agora, quando podemos sentir, ser e estar.

Todas essas reflexões nos levam a um ponto importante para restabelecer a conexão que, em algum momento de nossa história, nos afastou da nossa morada: a presença. Estamos em diversos lugares ao mesmo tempo, executando simultaneamente muitas tarefas, cultivamos uma mente racional que se prende ao passado e ao futuro, mas que tem muitas dificuldades de perceber as sutilezas do agora. “A presença é a ativação dos estados de atenção: a atenção a si, ao espaço e aos outros. Esses três estados de atenção, agindo em sinergia, provocam o estado de presença”, detalha Jussara. Nesse sentido, as práticas corporais podem nos ajudar a cultivar a presença, assim como estar no agora pode auxiliar a perceber as sensações do nosso corpo e o que ele quer nos dizer. 

O movimento de cada um

Se o corpo conecta nosso mundo interno com o externo, o movimento permite que possamos nos comunicar com singularidade. Nesse sentido, movimentar o corpo é uma forma de ser, estar e de se sentir no mundo. “Somos todos seres dançantes. Todo indivíduo pode dançar quando se permite movimentar por meio do seu querer e do seu sentir. Se conhecer, se expressar, se permitir sentir pelo movimento”, ressalta Jussara.

Em seu livro A Dança (Summus Editorial), o bailarino e coreógrafo brasileiro Klauss Vianna descreve que “o trabalho corporal tem uma dimensão terapêutica na medida em que toma o corpo como referência direta de nossa existência mais profunda”. Ele explica que, muitas vezes, temos dificuldades de vivenciar nossas emoções e sentimentos profundos, e somos habituados a não olhar, não sentir. No trabalho corporal, temos a oportunidade de acessar os espaços internos bloqueados, enrijecidos, permitindo que a estrutura física volte a se movimentar, a respirar: “Em linguagem corporal, fechar, calcificar e endurecer são sinônimos de asfixia, degeneração, esterilidade. Respirar, diferentemente, significa abrir espaço. Portanto, subtrair os espaços corporais é o mesmo que impedir a respiração, bloqueando o ritmo natural dos movimentos. Imagem forte de nossa emoção, a respiração representa nossa troca com o mundo”.

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Ao abrirmos espaço para esse corpo que respira e se movimenta livremente, aprendendo seu ritmo, nos permitimos conhecer e aceitar aquilo que somos. Algumas vezes, o que precisamos é deitar no chão e retomar nossa consciência física diante do Universo. Em outros momentos, o que necessitamos é caminhar e arriscar ritmos. E, assim, dançando pela vida, conseguimos expandir e reconhecemos nosso espaço e nossa atuação no mundo, que também segue seu movimento.

O corpo é mais do que a armadura que nos carrega. É quem somos. Habitá-lo facilita para que tenhamos uma vida mais plena.


ANAIZA SELINGARDI é jornalista e busca dançar pela vida, reconectando-se com os ritmos e diálogos do próprio corpo.

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