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Conhecendo um novo Eu na Alemanha e na Áustria.
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Neste artigo:

Há vários eus dentro de nós que vão surgindo ao longo da vida. Algo nos acontece, mudamos de país e eis que a cada etapa, um novo eu surge.

Muitas vezes me pego pensando quantos Eus diferentes se escondem em mim, em você, no rapaz bem arrumado com seu terno risca de giz que acaba de perder o metrô e também na elegante senhora que está sentada no banco do parque curtindo a presença do sol – além de sua própria.

Será que eles sabem que dentro de cada um de nós se escondem várias outras versões de nós mesmos? Pensando bem, eu também não sabia disso antes de me casar com um brasileiro expatriado e me mudar do Brasil. Aprendi um tempo depois da nossa chegada à Alemanha, em um vilarejo nos alpes com apenas 4 mil habitantes. Lá eu não tive escolha: minha nova versão tinha que nascer.

Meu eu original

Sempre fui vista por familiares e amigos como comunicativa, amigável, simpática, prestativa, emotiva,  inteligente e brava – não conseguia me calar diante uma injustiça, por menor que ela fosse. Chorava enquanto brigava pelo o que eu acreditava e a briga continuava até que a decisão justa fosse tomada. Apesar de ser taurina, eu não queria ter razão. Só não queria que algo injusto acontecesse. Tinha bons argumentos, conseguia conversar sobre muitos assuntos. Eu gostava da minha versão original. É claro que eu também tinha meus defeitos, mas dos defeitos eu não me lembro. É da mulher com essas qualidades que eu sinto falta.

novo eu Dan Visan | Unsplash

Começar a vida do zero

A mulher de quem tenho saudades, minha versão original, foi morar na Alemanha com 24 anos. Ela tinha mais uma qualidade: gostava de coisas novas. Minha família e amigos ficariam no Brasil. Ao mesmo tempo que ficava triste por isso, focava na parte boa: quem não acharia interessante a ideia de começar a vida do zero ao lado de quem te ama e te apoia? Poder ter uma nova profissão, aprender uma nova língua, conhecer novos lugares. Tudo parecia – e era – desafiador, excitante.

Por fim, depois da fase alegre vivendo como turista na nova cidade, a rotina uma hora ia se consolidar. Meu marido voltou ao trabalho e eu me via o dia inteiro em silêncio, almoçando sozinha. E, apesar de ainda não saber pedir água em alemão, tinha que me aventurar sozinha nas idas aos médicos para consultas de rotina. Eu sei que parecem ser coisas simples, mas para quem era grudada nos irmãos e tinha a companhia de pelo menos um deles para fazer tudo (sim, inclusive em consultas médicas), me via sem ninguém na maior parte do tempo.

E isso assusta. Talvez seja esse mesmo susto que faz um bebê chorar ao nascer: absolutamente tudo ao  redor é estranho, é desconhecido. Eu queria sim começar minha vida do zero, mas não sabia — nem queria — que fosse como um bebê assustado.

O silêncio silencia

Tanto tempo em silêncio fez com que se calasse a mulher comunicativa, simpática, prestativa. Metade do que definia minha versão original estava indo embora. Comecei a aprender alemão sozinha, em casa. Essa foi a forma que eu encontrei para ocupar o tempo durante o dia. O silêncio ensurdecedor em casa era invadido pelos pensamentos focados no aprendizado da nova língua e quando vieram as dificuldades com as declinações e as palavras “ao contrário”, achei que a parte inteligente também estivesse indo pelo ralo.

um novo eu Crédito: Rogelio Lopez | Unsplash

Ainda sou brava. Ainda brigo pelo que eu acho certo. Ainda não me calo diante de algo que acho injusto. Como eu poderia me expressar se não dominava a língua alemã? Tive que me calar. E chorei por isso. Chorei por perder tantos pedaços de mim. A última qualidade — ser emotiva — ficou. E nem a via como qualidade mais.

Mein neues ich: versão alemã

Chegou o Natal. Nossos vizinhos eram donos de uma joalheria em um vilarejo próximo e em novembro eles me chamaram para ajudar na loja. Eu sairia mais de casa, treinaria o alemão que estava aprendendo, ganharia um salário legal e havia possibilidade de contratação, já que eles precisavam de um funcionário fixo. Aceitei. Aprendi sobre pontualidade (1 minuto fora do horário é se atrasar), aprendi que apesar dos alemães serem considerados grosseiros, na verdade eles só são sinceros demais e isso, às vezes, soa como grosseria aos nossos ouvidos.

Aprendi que pode demorar para o contato, mesmo que diário, chegar ao nível de amizade. Entretanto, quando chega, é amizade para o que der e vier. Aprendi que as lojas em cidades pequenas fecham das 12 às 14h para o almoço. E todo o comércio fecha meio-dia aos sábados (inclusive supermercado) e reabre somente na segunda. Aprendi também a beber cerveja  — às vezes não tem como fugir dos estereótipos.

Novo trabalho

No meu primeiro dia de trabalho, fechamos a loja ao meio dia, fomos à cervejaria do vilarejo e meu chefe sugeriu pegar uma cerveja pequena para eu experimentar. Notei que a pequena tinha 300ml e pedi mesmo sem saber se conseguiria tomar. Enquanto eu olhava o cardápio para decidir qual prato eu pediria, soube que ali era o local onde tomaríamos uma cerveja apenas. O lugar do almoço seria outro. Ao chegar, pedimos os pratos e ele pediu outras duas cervejas: uma pequena para mim e outra de meio litro para ele. Depois de duas semanas eu já o acompanhava na cerveja de meio litro. Só conseguia uma (e não duas, como ele), mas era um início.

Apesar de ainda sentir falta da minha versão original, a minha nova começava a ganhar forma: era extremamente pontual, assalariada e cervejeira.

viena Crédito: Dan Visan | Unsplash

Agora na Áustria

Acabaram as festas de final de ano e, com elas, meu período de experiência na joalheria. Após receber um feedback super positivo, estava com um contrato prestes a ser assinado. Pouco antes de assiná-lo, meu marido recebeu uma proposta de emprego em Viena, Áustria.

Apesar de estar novamente de malas prontas, agora o desconhecido e a solitute não me assustam mais. Mesmo tendo conhecido pessoas incríveis aqui em Viena e há dois anos ter me tornado mãe, ainda consigo ver o poder e o prazer de curtir o sol em minha própria companhia, como a elegante senhora do parque.

A vida é uma constante mudança, uma constante troca de experiências vividas, um eterno perder e ganhar de novas habilidades para que possamos perceber nossos novos limites e também nossas novas potencialidades. Finalmente entendi que minha versão original era, na verdade, a inicial.


LETÍCIA DIETHELM , autora do www.vivaviena.com.br – site com dicas práticas e diretas para auxiliar turistas brasileiros/lusófonos em suas viagens a Viena, ama a arquitetura da capital austríaca e, do Brasil, sente falta de cumprimentar com dois beijinhos e um abraço, como fazia em Brasília.

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