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Compre de quem faz
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Ao valorizar o trabalho autoral, criamos um comércio mais justo e sustentável. E enxergamos as relações de um jeito mais afetuoso e cheio de significado

Muitas bonecas fizeram companhia para a garotinha que fui. Mas uma delas encontrou um lugar especial nas minhas memórias: era feita de feltro, com braços longos e pernas finas. Uma linha dourada e macia fazia os cabelos cacheados. Ganhei de uma amiga da minha mãe, que comprou de uma artesã. E, apesar de ter muitas bonecas, aquela feita à mão com tanto primor se tornou especial porque levava um pouco mais de alguém. Era a minha boneca com alma. 

Há alguns meses, tive a mesma sensação da minha antiga menina. “Débora, este kit foi produzido com muito carinho para o Ben. Feito com amor pela nossa família”, dizia o cartão manuscrito. Eram brinquedos de madeira e crochê que comprei para o meu bebê, feitos pela Cintia e o Alexandre, que produzem brinquedos educativos. Senti que aquelas peças eram mais do que objetos. Eram sobre o sonho de outras pessoas e um desejo meu de querer um mundo diferente. 

Talvez, se você colocar reparo no seu cotidiano – ou na sua história –, vai encontrar objetos que também moram nesse lugar para além da coisa em si. Pode ser aquele anel de uma joalheira que você conhece, o pão artesanal que saboreou no café, uma peça que trouxe de viagem feita por um artesão local. Existe algo muito bonito acontecendo: a valorização do feito à mão. De comprar de quem faz e do poder de transformação que essa nova relação de consumo carrega.

Parte da nossa cultura 

Para muita gente, o artesanal ainda é visto como um trabalho menor, não tão bem-feito, de pouco valor. E isso tem a ver com a nossa história. “Um dos significados de artesanato no dicionário é de que é algo primitivo, feito sem cuidado. Esse é um preconceito comum em sociedades colonizadas como a nossa, em que o que tinha valor era o que vinha da metrópole, da Europa. Numa sociedade escravocrata temos enraizada a ideia de que quem pode compra pronto. Que ‘sujar as mãos’ é indigno”, me diz a pesquisadora Adelia Borges, especialista em design e artesanato, curadora da loja do MASP e autora de Design + Artesanato: o Caminho Brasileiro (Terceiro Nome). 

Bruno Andreoni também tem se dedicado a refletir sobre o fazer por meio do projeto Revolução Artesanal. Pergunto por que agora as coisas estão mudando. “Nascemos assim, fazendo nossas coisas e criando nosso mundo. Mas em algum momento nos desconectamos disso. E agora sentimos que é preciso voltar para esse lugar. Com algo que tem a ver com valorizar o humano, e não mais o industrial como antes. Há um surgimento de artesãos contemporâneos e também de um novo olhar para o artesanato de tradição”, diz.

Há pouco mais de um ano, o designer Renan Quevedo embarcou numa jornada pelo Brasil a fim de lançar um novo olhar à cultura brasileira do feito à mão. “Por muito tempo as pessoas não se importavam em pagar 300 reais por um vaso de metal feito em um processo industrial, mas não valorizavam uma peça de 30 reais feita de barro por alguém que carrega um saber ancestral daquilo”, diz Renan, que em seu projeto Novos para Nós compartilha histórias que valorizam a figura do artesão. “Assim, as pessoas começam a entender que por trás de uma peça existe uma pessoa. Alguém com um repertório de vida, um motivo para fazer cada coisa existir. Passamos a entender o processo e aí comprar dele fica mais interessante do que ir a uma loja, colocar algo no carrinho e ir embora”, diz.

E um movimento muito rico tem valorizado o trabalho de pessoas que decidiram largar suas profissões originais e resgatar o fazer manual. Foi contando histórias de artesãos contemporâneos com essa trajetória que Karine Rossi e Dani Scartezini criaram a Manual, rede que valoriza o fazer e a cultura do artesanal e fortalece artistas, designers e pequenos produtores que prezam pelo trabalho autoral. “A gente queria ressignificar o artesanato que a nossa cultura desvalorizou.

As peças dos artesãos de quem contávamos as histórias eram exclusivas e muito bem-feitas. Foi aí que decidimos bater na porta de um museu e levar o nosso Mercado Manual [festival em que o artesão vende seu trabalho] para lá, a fim de elevar o artesanato à categoria das artes”, diz Karine. Hoje, o Mercado Manual acontece em museus da cidade e, além de reunir artesãos e artistas e oferecer oficinas sobre o fazer, discute sustentabilidade, consumo consciente ou impacto social. Agora, a Casa Manual, uma loja que traduz essa valorização, acabou de ser inaugurada num shopping em São Paulo. 

Um tecer de novas relações

Quando valorizamos o trabalho de quem faz, criamos uma relação para além de comprador. Num mundo que se torna cada vez mais digital, é nesse contato com o outro que também recuperamos nossa humanidade. “Esses momentos simbolizam essa vontade de ver coisas reais, tocar. E o feito à mão traz esse sentido de pertencimento”, reflete Adélia Borges. “Porque esse objeto carrega o afeto de quem fez. O artesanal toca mais meu coração”, diz. Esse contato é valioso para quem compra e para quem vende. Bruno Andreoni conta como a partir dessa relação é que ele dá significado ao que produz com sua marca de cadernos Veio de Lá. “Sou inventivo com o miolo dos  cadernos e isso convida a pessoa a tocá-los. E é nessa interação que eu vejo valor naquilo que criei.” Para Priscila Cortez, dona da Maria Tangerina, que produz bolsas e mochilas livres de crueldade animal, é nessa troca que ela também sente que existe um aspecto além da compra pela compra. “Gosto quando as pessoas me contam que, depois da compra da bolsa, entenderam o que tinha algo por trás, e que a partir disso passaram a comprar de forma mais consciente e a pesquisar mais sobre o tema”, diz.   

Essa relação mais íntima com o que a gente consome também abre espaço para olharmos a maneira como estamos consumindo. “As peças geralmente têm um valor maior do que as de um fast fashion, por exemplo, mas também nos ajuda a entender o custo de um produto e a refletir sobre nosso consumo. Além disso, os objetos que têm história não vão direto para o lixo. Você compra não por impulso, mas porque aquilo faz sentido”, conta Patrícia Toledo, curadora da Rede Manual. É poderoso quando a gente entende que cada escolha tem a capacidade de impactar o mundo. “Quando você dá preferência ao pequeno, oferece a oportunidade dessa família custear uma educação melhor para os filhos em vez de enriquecer as grandes corporações”, observa Renan. “Além disso, podemos rastrear melhor a origem do que a gente compra, questionar se aquilo foi feito com mão de obra escrava. Comprando do pequeno, damos a chance de desenvolver a economia local”, completa Adélia.

A Priscila se viu num dilema quando não conseguiu mais produzir todas as bolsas. “Eu precisava de ajuda, mas queria alguém com a mesma energia boa que eu colocava nas peças”, diz. Ela acabou encontrando o Cardume de Mães, que reúne costureiras em um empreendimento da chamada economia solidária. “Me apaixonei por elas e juntas descobrimos novas formas de fazer”, conta. Agora, ela também tem feito parcerias com grupos que trabalham com saúde mental, para dar a possibilidade de mais gente ter uma fonte de renda e trabalhar a criatividade. É um dos muitos exemplos de como essa economia local mobiliza mais pessoas. “Uma característica do manual é o coletivo. E aí isso se torna uma rede”, observa Daniela, da Rede Manual.

Uma vida autêntica

trabalho autoral

Se lançamos um olhar sensível ao que é produzido, podemos ver o valor da imperfeição naquela xícara que tem algo de torto, fora dos processos industriais. É como se ela problematizasse a busca sobre o que é perfeito e mostrasse o belo que há na nossa rota. “Quando tentamos nos assemelhar ao perfeito, a peça perde a graça. Vejo uma imperfeição, uma lasquinha que faltou, que na verdade conta a história de onde vim, para onde vou. Acho que é nesse momento que vejo que a vida faz sentido”, diz Renan. 

Esse movimento nos convida a colocar o fazer manual em prática também, mesmo que por hobby. “Ganhamos habilidades. Você se concentra em fazer uma coisa só, a se focar. Esses processos destravam a gente de ser perfeito, de ser produtivo, de servir de engrenagem para um sistema que não respira. Que vê a gente como máquina”, me diz Claudia Kievel, cofundadora e curadora da feira Jardim Secreto. Ela vê como esses negócios podem ser um futuro para uma vida com mais contemplação. “A gente precisa desacelerar. Acelerar para chegar aonde? Não tem ponto de chegada. Tem trajetória. A gente quer valorizar a trajetória”, diz. E Bruno complementa: “No fazer manual, o tempo se alarga, a gente para de fazer com a cabeça e passa a fazer com o corpo todo. O fazer exige estar inteiro e isso hoje em dia é tão raro. É aí que abre uma janela dentro de você”. Nas janelas de possibilidades, que possamos valorizar a porção de alma que está em tudo o que a gente faz. Seja neste texto, na boneca ou em tudo o que você escolher tocar por aí.


Débora Zanelato gosta de ver com as mãos e acha que peças artesanais tocam muito mais o coração. @deborazanelato

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