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Como se aproximar da poesia
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Existe poesia cotidiana. Na maior parte das vezes, não nos damos conta, mas ela está bem pertinho de nós, todos os dias. Só é preciso reconhecê-la

O céu do sertão de Paripiranga, na Bahia, é um palco sem cortinas. Na primeira vez que presenciei aquele céu, meu corpo se vestiu de perplexidade. Meus pais viveram toda a infância lá e têm essa paisagem estampada nas retinas. O céu fundo de estrelas despertava em mim uma poesia para além de palavras.

Na memória se repetia uma pergunta imaginada pelo poeta norte-americano Ralph Waldo Emerson: “e se as estrelas aparecessem apenas uma vez a cada mil anos?”. Talvez as pessoas nem dormissem na noite da revelação de luzes no céu. Mas como as estrelas se tornaram uma aparição comum, o maravilhamento murcha, encoberto por uma casca de indiferença e percepção acostumada.

Lá em Paripiranga, ao lado da minha avó com pele sulcada pelo sol e pela gravidade do trabalho, perto dos baldes com água para lavar os pratos, rodeado pelo som de grilos, por vezes de sapos, cada estrela se apresentava com uma intensidade ancestral. Assim como minha avó: um firmamento inteiro em pé, mais de 80 anos no chão. E, agora, já em São Paulo, onde até a paisagem do céu é menos nítida, por causa da poluição visual, do excesso de iluminação, e da pressa, eu me pergunto: para além das estrelas, o que aparece todo dia, mas muitas vezes não percebo por causa das camadas de pó nos sentidos? E qual a relação entre cotidiano e poesia?

O incêndio de um fósforo

poesia cotidiana na foto de um palito de fósforo solitário istock

Uma fila de formigas atravessou nosso caminho, meu e da minha companheira Serena Labate. O extraordinário da multidão banal nos fez parar, observar, aprender e fotografar. Então, foi esse o encontro que deu origem a uma postagem na internet, que compartilhei com uma imagem daquelas pequeninas formigas e o seguinte texto: “extra! extra! notícia do jornal das miudezas: formigas são flagradas carregando pedaços de árvores”.

A palavra “miudeza”, cujo sabor descobri na obra do poeta Manoel de Barros, abriu-se para mim com outro significado naquele dia. Como resultado, meses depois, o “jornal das miudezas” se tornou uma publicação impressa, com periodicidade trimestral, projeto gráfico da Serena e textos e fotografias meus e de colaboradores. Não apenas esse jornal seja um pretexto para aproximar poesia e vida, poesia e política, poesia e chão, poesia e o perigo de ignorarmos o que está na nossa frente. Bem como serve para compartilhar versos como: “um palito de fósforo guarda fogo suficiente para incendiar sua casa inteira”. Mais do que um jornal, um meio de comunicação, é a prática da poesia como um alerta que nos puxa para o presente.

Ainda que a poesia esteja profundamente ligada à palavra poema, ela não se resume ao poema escrito. Muito deveria nos interessar a poesia como uma maneira de habitar nossa realidade com mais lucidez, presença e afeto. A poeta Maria Vilani, do Grajaú, em São Paulo, sabe que na palavra poesia cabem incontáveis significados, tanto que ela diz o seguinte: “quero deixar um versinho em cada pessoa que passar por mim”.

“Cada pessoa é um poema”

Assim, Dona Vilani cria versos em livros (A Lágrima e o Riso, Varal e muitos outros) e também versos que são gestos, por meio de ações que celebram a poesia coletivamente. É uma das fundadoras do Centro de Arte e Promoção Social (CAPS) do Grajaú, organização criada em 1990 que promove rodas de conversa frequentes, atividades como a Carreata Poética, que amplifica vozes e ritmos nas ruas, e o ateliê de escrita, para fortalecer o cuidado com cada mínima palavra.

“A poesia é uma força que está em nós, nosso estado de espírito é poesia. Cada pessoa é um poema e isso é infinitamente grande, não dá pra mensurar”, disse ela com a intensidade de quem generosamente acolhe as pessoas nos vários encontros que mobiliza, numa conversa em que estavam presentes também seu marido, Cleon Monteiro, e Alessandra Silveira, ambos capsianos, firmes participantes do CAPS.

Semeando poesia cotidiana

Além disso, os últimos textos criados pelos frequentadores do ateliê de escrita, que acontece toda semana, aos domingos pela manhã, foram publicados nos livros Filosofia Escrita ao Extremo e Escritas ao Extremo, por meio do selo Capsianos, e são explícitos exemplos de como a escrita é um convite a prestar atenção nas próprias memórias, imaginações, experiências, e confiar na força da palavra viva. A poeta chilena Gabriela Mistral dizia assim: “[a palavra viva] é aquela em que se sente a quentura do sangue e ao mesmo tempo o frescor de ervas com orvalho”.

Dona Vilani nos conta que, na época em que trabalhava como professora de escola pública, abria toda aula com um poema ou pequeno conto. Muitos alunos se apaixonaram por poesia devido a esse ato sutil. Entre os vários poemas de Dona Vilani que se impregnaram em mim, escolho agora o trecho de um deles para compartilhar com você, assim como ela fazia nas aulas: “Eu vi um cachorro manco / Você já viu um cachorro manco? (…) Meu coração pensou e pesou / A tristeza do cachorro manco”.

Ao nos questionar se já fomos atravessados pela presença de um simples cão na rua, a poesia da dona Vilani nos faz refletir, dessa forma, se realmente nossos sentidos têm intimidade com o mundo.

O poeta e a cidade

“Tenho relação de grande familiaridade com a rua, gosto muito de me perder na cidade”, conta o poeta mineiro Ricardo Aleixo, uma pessoa permeável a tudo ao redor. Ele considera, assim, que a rua é o lugar do encontro, onde nem precisamos procurar por nada, pois alguma coisa sempre vai acontecer.

Ele é um poeta especialmente atento aos sons. Quando tinha 18 anos, levou uma bolada no olho e, mesmo após muitas cirurgias, perdeu quase totalmente a visão no lado direito. Tendo já uma forte miopia no olho esquerdo, dedicou-se a descobrir como lidar com essa situação.  Então encarou como um fator positivo que o levaria a explorar o máximo da escuta. “Conheço a cidade como a sola do meu pé”, escreve Aleixo num dos seus poemas no livro Pesado Demais Para a Ventania, palavras que apontam para essa audição alargada com a qual ele tateia o chão.

Aliás, ele gosta muito de gravar com o celular os sons das ruas para depois escutá-los como música em casa. Aprendeu com as provocações do artista John Cage que, se um som o incomoda, é importante ouvi-lo por dois minutos. Se continua a incomodar, experimente ouvir por quatro minutos. Por oito. Por dezesseis. Em algum momento aquilo vai ficar interessante. Aleixo e Cage querem que nos aproximemos do que nos incomoda como um ato poético.

Na noite mais longa

poesia cotidiana na foto de uma noite estrelada iStock

Um dos poemas de Aleixo que mais me marcou se chama “Na noite calunga do bairro cabula”. Poema que nasceu de uma tragédia que o indignou profundamente em 2015: a chacina de 12 jovens, assassinados em uma ação da Polícia Militar, no bairro do Cabula, na Bahia. Com esse poema, portanto, Aleixo denuncia o extermínio da juventude negra e exclama que a poesia também é terreno para a palavra expressar o terrível. “Morri quantas vezes / na noite mais longa?”, pergunta-se Aleixo nos versos.

Enquanto me contava do seu encontro com os sons e da notícia que o marcou tão duramente, vinham à minha cabeça as palavras da Angelica Garcia, uma amiga, educadora e pesquisadora, que compartilhou comigo sua visão sobre poesia e vida: “poesia são os encontros que o chamam para o aqui e agora. São os encontros que tiram da nossa mente as obrigações e tarefas. Encontros que nos lembram de como a vida é passageira e de muitas coisas que não deveríamos esquecer”.

Quando ela fala sobre encontros que de repente fisgam nossa atenção, lembro um dia em que caminhávamos juntos, eu, Angelica e outro amigo, o Gabriel, e ela coletava do chão as flores caídas. Então essas flores foram parar na casa dela, num copo com água, como recordação de que os encontros insignificantes não são insignificantes. E o que são poemas senão maneiras de juntar palavras vivas, assim como Angelica recolhe o que escapou sorrateiramente das árvores?

Neste exato agora

Com tantas palavras neste texto, minha insistência aqui é que na poesia cabem poetas e não-poetas. Percebê-la mais perto, mais sua, é como partilhar uma comida que sempre tem um sabor diferente, que nos instiga a perceber o gosto do tempo. Quando recentemente entreguei um poema impresso para uma diretora numa escola e ela respondeu com estranheza, justificando que poesia é apenas para “almas elevadas”, brinquei depois em um poema dizendo que poesia é para almas levadas, isso sim. Almas levadas são aquelas que dançam, deixam-se ser esticadas pelos encontros. Experimente ler um poema de que você gosta para alguém ainda hoje, seja onde for, sem planejar muito. Pois são atos assim inauguram portas diretamente a outros cantos da poesia e de nós mesmos.

A poesia pode, assim, se tornar um compromisso cotidiano para nos aproximar, como uma fogueira que nos une ao seu redor. Seja em forma de poema ou indignação, seja em forma de som ou de formiga, seja em forma de ateliê de escrita no domingo. Seja aquela poesia que vibra no céu de Paripiranga ou mesmo aí, onde você está, neste exato momento, agora.


André Gravatá é escritor, trabalha na área de educação e segue escrevendo poesia em seu “jornal das miudezas”. Para saber mais: sorverversos.com

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