Liberdade ou solidão? Sair sozinho expressa autonomia
'Dar um rolê' apenas com a própria companhia muitas vezes é visto como fracasso social. No entanto, esses momentos podem fortalecer o autoconhecimento, criar independência emocional e melhorar a autoestima

Quantas vezes, por falta de companhia, você deixou de ir ao cinema ver um filme que queria muito, curtir um show de um artista que é fã ou simplesmente não deu um passeio num sábado de sol? Será que precisamos sempre de alguém? Inclusive, dependendo da companhia a experiência pode ser até pior. Sair sozinho muitas vezes é visto pela sociedade como solidão, falta de amigos e fracasso relacional. No entanto, deixar o julgamento de lado para passear acompanhado apenas de si é uma expressão de autonomia que nos aproxima da nossa essência.
Recentemente, as redes sociais ferveram com seguinte meme: a frase “liberdade ou solidão?” sempre acompanhada de fotos de pessoas sozinhas, principalmente em bares. Humor, mas também reflexão. No entanto, vamos com calma. Não é fácil se desapegar da necessidade de companhia a qualquer custo. É um processo que se constrói aos poucos, mas vale a pena. Traz diversos benefícios para nossa tempestade de sentimentos internos.
Estar sozinho não é ser solitário
A psicóloga Katherine Sorroche afirma que essa certa vergonha de sair sozinho costuma ter raízes em inseguranças profundas e no medo de julgamentos sociais. Além disso, acrescenta que estar sozinho é um estado físico, enquanto sentir-se solitário é uma experiência emocional subjetiva.
“Podemos estar cercadas de pessoas e ainda assim nos sentirmos solitários. O cérebro interpreta a solidão emocional como uma ameaça à sobrevivência, o que ativa respostas de estresse. Já os momentos voluntários de solitude podem ter o efeito oposto: reduzem a ansiedade e ajudam na auto regulação emocional.”
Katherine acrescenta que esse medo geralmente está ligado à necessidade de aceitação social. “Principalmente em mulheres, porque elas aprendem desde pequena a se moldarem às expectativas do outro. Sair desacompanhadas pode parecer uma quebra de ‘normalidade’. A insegurança vem de um sistema interno que associa validação externa ao nosso valor pessoal – algo que pode ser desconstruído com o fortalecimento da autoestima e do autoconhecimento.”
Experimente ir ao cinema sozinho, comprar o ingresso para um show sem pensar se terá companhia ou não. Vá ao parque acompanhado apenas dos seus próprios pensamentos e, por que não, das próprias inseguranças e vulnerabilidades. Consequentemente, algo pode mudar dentro de você.
‘Antes só do que mal acompanhado’
Membro da Sociedade Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental, a psicóloga Letícia de Oliveira acrescenta que também há um julgamento interno em não conseguir sair sozinho. Quando estamos desacompanhados, geralmente associamos ao sentimento de fracasso. A famosa frase “antes só do que mal acompanhado” é muito falada, mas poucas vezes colocada em prática.
“Na verdade, fracasso é estar numa relação falida só para estar acompanhado. Conseguir fazer as coisas desacompanhado é um sinal de autonomia, autoestima e independência emocional. É uma força. Uma fortaleza. Muito mais genuíno do que carregar uma pessoa só para se sentir acompanhado”, afirma Letícia.
A psicóloga dá exemplos dentro do atual contexto que a sociedade impõe aos relacionamentos interpessoais e também na forma como nos sentimos internamente e levamos a vida. Para ela, estar sozinho traz a sensação de vulnerabilidade porque vivemos em uma sociedade conservadora que tem críticas em relação ao estar desacompanhado.
“Quantos casamentos, quantas relações falidas a gente não presencia apenas para que a pessoa não chegue sozinha a um evento, para que tenha alguém com quem se sentar em um restaurante – mesmo que, no fim das contas, os dois fiquem no celular, um de frente para o outro. O desconforto de estar sozinho é tão grande, tão aversivo, que muitas pessoas recorrem à companhia de alguém, mesmo que esse alguém não some, não agregue.”
Contato com o interno
No entanto, soltar as amarras para sair sozinho e curtir a própria companhia não é um processo que ocorre do dia para a noite. O primeiro passo pode ser entrar em contato com nosso eu interno que carrega nossas vulnerabilidades. É necessário se estruturar. Não é apenas uma questão de se colocar à prova, mas de fazer isso de forma genuína. Sem preparo, há a chance da experiência desmoronar e frustrar.
“É preciso, aos poucos, entrar em contato consigo, aprender a lidar com as próprias vulnerabilidades e se expor, gradativamente, a situações desconfortáveis. Assim, esse movimento se torna tolerável e, depois, agradável. Sair sozinho pode ser terapêutico, mas só é quando a pessoa já está minimamente preparada para essa evolução”, ressalta Letícia.
Para Katherine, é preciso começar devagar. Pelo pequeno. Nos detalhes. “Escolha um lugar em que você já se sinta confortável, como um café, uma livraria ou um parque. Leve algo com você: um livro, um caderno, uma música. Foque no prazer da experiência, não na ausência de companhia. Treine o olhar interno: perceba o que você sente, do que gostou, o que te incomodou. Aos poucos, a estranheza dá lugar à liberdade.”
O meme ‘liberdade ou solidão?’ está relacionado ao humor, mas também traz reflexões
Com certeza, liberdade
Os benefícios de sair sozinho de forma genuína incluem redução do estresse, maior clareza emocional, estímulo à criatividade, aprofundamento do autoconhecimento e fortalecimento da autoestima. “Quando aprendemos a estar bem conosco, deixamos de buscar no outro a validação que só pode vir de dentro. Isso muda a qualidade das relações, que passam a ser mais conscientes, menos dependentes e mais nutritivas”, diz Katherine.
A psicóloga é especialista em saúde mental da mulher, psicologia do puerpério, parentalidade e primeira infância. Em sua análise sobre o tema, ela também traz um recorte de gênero.
“Quando uma mulher percebe que pode cuidar de si, se fazer companhia e se abastecer emocionalmente, ela acessa uma liberdade que não depende de ninguém. Essa autonomia fortalece a confiança, amplia escolhas e transforma a forma de viver – com mais presença, mais limites e mais prazer. É um resgate do protagonismo. Um reencontro com a própria potência.”
Letícia acrescenta: “Quem cultiva esses momentos geralmente tem uma relação mais segura consigo mesma. Isso não significa estar ‘resolvida’, mas sim em processo de escuta e aceitação. Fazer algo sozinha exige coragem, presença e a confiança de que sua companhia é suficiente. Esses hábitos são sinais de um vínculo interno fortalecido.”
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