Entenda o fenômeno dos livros ‘Bobbie Goods’
Em tempos de excesso digital, colorir se tornou uma forma simples de desacelerar a mente entre todas as idades

Seja nas redes sociais, nas prateleiras das livrarias ou no carrinho de compras dos sites de vendas, os livros “Bobbie Goods” viraram um fenômeno no Brasil. Para dar uma ideia da dimensão, três versões diferentes da editora ocupam os três primeiros lugares entre os mais vendidos na Amazon.
E não pense que eles são feitos apenas para crianças. Adolescentes, adultos e idosos também mergulharam nesse mundo. Mas por que esses livros são tão procurados? O que explica esse interesse repentino em livros para colorir?
Momento de desacelerar
De acordo com psicólogos, esse fenômeno pode ser explicado por diversos fatores. Um deles é: sentar, escolher o livro, o lápis e passar um tempo no movimento de colorir ajuda a desacelerar. Funciona como um respiro em meio a uma rotina que exige cada vez mais rapidez e hiperconexão.
“Ao colorir, o cérebro desacelera, o córtex pré-frontal — ligado à tomada de decisões — relaxa, e entramos em um estado semelhante ao de meditação, chamado de “flow”, um mergulho atencional que nos distancia das preocupações e ativa redes neurais de descanso e reparação”, afirma a psicóloga clínica infantil Katherine Sorroche.
No entanto, ela ressalta que os livros para colorir não são considerados arteterapia. “Colorir pode sim ter efeitos terapêuticos, mas é importante distinguir: a arteterapia é uma abordagem conduzida por um profissional qualificado, com objetivos terapêuticos definidos e uma escuta clínica ativa durante o processo”, diz.
“Já colorir de forma espontânea, mesmo sem orientação, pode ser uma prática de autocuidado emocional. Uma maneira acessível de autorregulação, expressão simbólica e conexão interna”, acrescenta.
Doutor em psicologia clínica, André Sena Machado afirma que o simples ato de colorir é uma atividade repetitiva e de baixa pressão, o que a torna naturalmente relaxante.
“Essa imersão no momento presente ajuda a reduzir a sobrecarga mental e aliviar o estresse, oferecendo um respiro em rotinas agitadas.”
‘Bobbie Goods’ virou fenômeno de vendas e nas redes sociais
Traços suaves e temas reconfortantes
Mas não é apenas a ação de colorir. O sucesso dos livros com o estilo “Bobbie Goods” também passa pela estética. Geralmente, eles têm traços suaves e temas reconfortantes, que evocam nostalgia e remetem à simplicidade da infância. Por exemplo, os temas dos três livros mais vendidos da Amazon são: “Do dia para a noite”, “Dias frios” e “Dias quentes”.
“Em um mundo acelerado e dominado por telas, colorir oferece um escape manual, um retorno a algo tátil e genuíno. Essa busca por conforto emocional é ainda mais evidente em tempos de incerteza, quando atividades que resgatam a sensação de segurança e leveza ganham destaque”, afirma Machado.
“Esses livros oferecem uma experiência sensorial suave, acolhedora e livre de julgamentos — quase como um retorno simbólico à infância”, acrescenta Katherine.
O apelo popular dos livros para colorir está entre pessoas de todas as idades. Claro que há o sentimento de nostalgia e de voltar à infância quando, convenhamos, tudo era mais leve. Mas o efeito da prática também colabora.
“Colorir não tem idade. Na verdade, muitos adultos redescobrem essa prática com um novo olhar: como espaço de pausa, criatividade e cuidado com a saúde mental. O benefício está menos no conteúdo e mais na experiência que se vive durante a atividade”, ressalta a psicóloga.
“Jovens e adultos também podem se beneficiar muito. Para os mais velhos, é uma forma de relaxar e expressar criatividade sem a pressão de criar algo do zero. A simplicidade da atividade a torna democrática, permitindo que pessoas de todas as idades encontrem prazer e alívio no processo”, complementa Machado.
No entanto, vale um olhar atento em dois momentos: quando a busca por livros de colorir se torna uma fuga constante da realidade ou quando substitui outras formas de expressão e conexão mais profundas.
“É saudável buscar conforto, mas o ideal é que esse conforto não nos isole de outras necessidades psicoemocionais, como refletir, elaborar, conversar e sentir”, alerta Katherine.
Outro aspecto
Livros para colorir também ajudam pessoas diagnosticadas com TEA (Transtorno do Espectro Autista) e TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). No entanto, deve ser feito de forma controlada e com cuidado.
Conselheira clinica da Genial Care e especialista em análise do comportamento aplicada ao TEA, Alice Tufolo concorda que sair do excesso de estímulos digitais da atual sociedade pode ser benéfico para muitas crianças e adultos autistas. “As imagens detalhadas também favorecem o desenvolvimento da coordenação motora fina.”
“Por outro lado, é importante observar que os desenhos nos livros ‘Bobbie Goods’ costumam ser bastante complexos, com muitos elementos, sobreposições e pequenos detalhes. Para crianças com sensibilidade a estímulos visuais ou que apresentam maior dificuldade de organização visual, isso pode se tornar um fator de sobrecarga”, ressalta.
“Em vez de acolher, o excesso de informação pode gerar frustração ou desorganização. No caso das crianças, nem todas se interessam por atividades como desenhar ou pintar. E tudo bem.”
O que importa é respeitar os interesses autênticos de cada pessoa. Precisa ser o ponto de partida para criar experiências boas, e não atuar como uma limitação.
“Oferecer o desenho como uma possibilidade, e não como uma exigência, é o que sustenta uma prática realmente inclusiva. Observar como a criança reage, se há curiosidade, desconforto e vontade de continuar são as pistas fundamentais”, explica Alice.
Exemplo de como são algumas páginas sem coloração
Ler também é importante
Como tudo na vida, é sempre necessário equilíbrio. Para jovens e adultos que mergulham nos livros para colorir, é importante ressaltar que ler também é um hábito fundamental. Os três primeiros livros mais vendidos na Amazon não terem uma letra sequer não é um alerta, mas chama a atenção.
“A leitura ativa outras áreas do cérebro e promove reflexão, vocabulário emocional e pensamento crítico. São práticas complementares: enquanto uma acalma e acolhe sensorialmente, a outra nutre intelectualmente e amplia repertórios. Ambas podem conviver como formas de cuidado e cultivo pessoal”, explica Katherine.
“Para jovens e adultos, combinar as duas atividades pode enriquecer a rotina: a leitura desafia a mente de forma ativa, e o colorir oferece um descanso reparador. Ambos têm seu valor e podem coexistir harmoniosamente”, complementa Machado.
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