As escolhas e os desafios do amor contemporâneo
Entre a tradição e a ruptura, não monogamia surge como alternativa às relações convencionais e propõe novas formas de afeto, autonomia e cuidado coletivo
A data 12 de junho sempre fica marcada pelo Dia dos Namorados. Momento de comemorar uma relação com jantar especial, presentes e declarações de amor. Fato é que o amor, ou melhor, a forma de amar contemporânea muda conforme o tempo passa. A vida amorosa passa por transformações e ganha outros contornos com a construção de novas possibilidades de afeto: a não monogamia.
Por motivos históricos, sociais, emocionais e psicológicos, essa forma de se relacionar está intrínseca ao amor nos dias atuais, independente de geração, crenças e julgamentos. O tempo passa, a sociedade muda e o ser humano acompanha a translação da Terra.
Mas o que motiva tantas pessoas a buscarem uma relação fora dos padrões tradicionais? Qual sentimento, valor ou troca elas almejam na não monogamia?
O que é a não monogamia?
Como o próprio nome diz, a não monogamia se contrapõe ao tradicional namoro ou casamento fechado entre duas pessoas. No entanto, não se baseia somente em um relacionamento aberto apenas para relações sexuais. A não monogamia abrange diversas formas de relações que fogem do padrão social. Ela pode ser definida como a construção de uma rede de apoio afetiva que se distancia da forma de pensar o amor como algo exclusivo e idealizado.
“A ideia do amor romântico, tão presente na cultura ocidental, costuma ser vista como uma conexão profunda, apaixonada e idealizada entre duas pessoas. Hoje em dia, ela se manifesta de várias formas nos relacionamentos, mas também é questionada e reinterpretada. Por isso, muitas pessoas buscam relacionamentos mais livres, igualitários e baseados na amizade, respeito e autonomia”, explica Cristiano de Jesus Andrade, professor de psicologia da Universidade Brasil.
Com perspectiva sociológica sobre o tema, Andrade afirma que a prevalência da monogamia como modelo dominante de relacionamento em muitas sociedades ao longo da história pode ser explicada por uma interação complexa entre estruturas sociais, culturais e religiosas. No entanto, ele ressalta que a sociedade sempre passa por transformações.
“Essa busca por liberdade revela o desejo de autonomia, autenticidade e expressão individual nas relações, algo que desafia os modelos rígidos e traz maior diversidade de escolhas. Sociologicamente, ela também evidencia a transformação das estruturas sociais. O indivíduo busca maior controle sobre sua vida afetiva ao romper com expectativas convencionais”, diz o docente.
(Foto: Freepik) Não monogamia também é forma de construir redes de apoio
Forma coletiva de ver o mundo
A professora Potira Ventura, de 35 anos, tem um relacionamento não monogâmico há quase dez anos com o cozinheiro Vinícius Rodrigues, 34. Ela conta que buscou essa forma de relação a partir do “entendimento político da monogamia como uma estrutura social”.
“Essa estrutura, que oprime principalmente as mulheres, traz uma falsa sensação de segurança nas relações. Somos educados para depender emocionalmente de uma única pessoa ou relação. Quando criamos a expectativa de que apenas um indivíduo vai suprir tudo o que precisamos na vida, essa expectativa geralmente é quebrada. É quase impossível que alguém atenda exatamente tudo o que você precisa. Isso gera frustração”, diz
Para ela, a não monogamia representa uma forma mais coletiva de enxergar o mundo e de construir redes de apoio para enfrentar diferentes questões da vida. Potira acredita que esse movimento amplia a forma de pensar as relações sem excluir a possibilidade de envolvimentos profundos com outras.
“Buscamos tratar as relações românticas e não românticas de forma mais igualitária dentro das possibilidades de cada pessoa e da relação. Ao mesmo tempo, esse rompimento estrutural precisa ser feito com muito cuidado. É necessário respeitar os limites pessoais de cada pessoa para que não se torne algo traumático ou desrespeitoso.”
Ao refletir sobre os quase dez anos de um relacionamento não monogâmico, ela afirma que a experiência contribuiu para seu amadurecimento e para a construção de uma rede de apoio sólida.
“Sou cuidada e acolhida por essa múltipla rede de apoio quando necessário. Para mim, ter diferentes pessoas que me apoiam e até me ajudam com tarefas cotidianas é maravilhoso. Não sinto que estou sobrecarregando apenas uma pessoa. Ao mesmo tempo, são formas de se relacionar e se cuidar diferentes que se complementam”, explica.
“A não monogamia me ajuda a encarar e lidar com meus próprios sentimentos. Olhar para os meus comportamentos em diferentes relações me ajuda a ter uma perspectiva maior sobre mim mesma.”
E o ciúmes na não monogamia?
Assim como relacionamentos monogamicos, outras formas de amar e construir relações também carregam desafios. Afinal, nenhum relacionamento é perfeito. No entanto, é no diálogo e respeito que as questões são resolvidas, independente do formato da relação. Mas quando o assunto é não monogamia, é inevitável não citar o ciúmes.
“É sempre uma questão muito recorrente para quem lida com uma rede de afetos. Acho que não tem como esse sentimento não existir. O ciúme nos atormenta várias vezes e é difícil. A diferença é que escolho encarar de uma maneira mais saudável. Olho para minhas inseguranças e tento entendê-las. Depois, vejo como trabalhar isso para que não seja algo que prive a liberdade de outras pessoas”, explica Potira.
“Não é uma escolha simples e muitas vezes mexe com sentimentos dolorosos.”
A psicanalista Ana Lisboa concorda que esse sentimento é uma expressão interna da insegurança. “Eu projeto no outro o medo de perdê-lo, quando na verdade já me perdi de mim mesma. Quando a pessoa depende do outro para se sentir segura, mostra que ainda não sabe quem é. E quem não sabe quem é, acredita que só existe por meio do outro.”
Ela também acrescenta que, ao buscar apenas o desejo nas relações, o indivíduo age de forma impulsiva em uma tentativa de escapar da dor.
“Se a pessoa entra numa relação achando que isso vai suprir seu desejo de ser amada ou vai evitar a repetição de feridas, ela continua infantilizada. Isso vale para qualquer modelo: monogâmico ou não. Sem consciência emocional, a pessoa só transfere seus traumas de um lugar para outro”, explica.
Quatro gerações em movimento
A psicanalista observa que também há um movimento no sentido contrário: jovens da Geração Z buscam retorno à estrutura familiar, à presença nas igrejas e ao conservadorismo. Para ela, essa parcela da população “tenta resgatar valores tradicionais”.
“Essa polaridade convive com a outra que se abre mais à não monogamia. Isso reflete a ruptura que estamos vivendo. Temos mais de quatro gerações em convívio ao mesmo tempo, com princípios e valores diferentes.”
“A tecnologia, as comparações, a falta de sentido coletivo e a anestesia emocional — que alguns chamam de normose, outros de amor líquido — faz com que muitos jovens não compreendam o que é uma relação saudável e duradoura”, diz Ana.
Andrade ressalta que mudanças nas dinâmicas sociais, econômicas e políticas exigem o enfrentamento de obstáculos constantes. “Mesmo com diferentes estilos de vida e realidades, há uma necessidade de promover comunicação aberta, respeito mútuo e compreensão”, afirma.
As cartas do amor estão embaralhadas. É diante deste cenário que cada pessoa tenta encontrar, com consciência e respeito, sua própria forma de amar. Seja em casal, a três ou coletivamente.
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