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O que é a vida? Vivendo o luto em tempos de COVID-19
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“Há quem fale que a vida da gente é um nada no mundo. É uma gota, é um tempo que nem dá um segundo”, foram com essas palavras que Gonzaguinha compôs uma das músicas mais bonitas do Brasil

 

As memórias mais remotas que tenho da minha infância são com a minha avó materna. Na época, eu devia ter uns 4 anos de idade e passava a maior parte do tempo numa escola que ela fundou e esteve à frente como diretora por quase 30 anos. Todos os aluninhos a chamavam de “vovó Gercina”, confesso que eu até sentia ciúmes.

Sua maior paixão era pelas crianças. Um amor materno infinito! Quem tem esse carinho na infância, tem mais força nos percursos da vida. Amor, cuidado e afeto são fundamentais na primeira infância e eu fui sempre privilegiada neste sentido. É por meio das trocas afetuosas que a criança desenvolve as relações, aprende a interagir, consegue se expressar e fortalece a capacidade de empatia.

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Me lembro quando pequena passando horas fazendo rabiscos, abrindo livros e reconhecendo algumas palavras – em todos esses momentos ela sempre esteve por perto. Eu sentia segurança ao seu lado e aprendi a ser uma boa comunicadora por conta dos seus estímulos: ela me ensinou as primeiras palavras, me elogiava sempre e usava palavras de acolhimento quando algo dava errado – isso me gerava mais confiança para falar e ser desinibida desde pequenininha.

Sobre a brevidade da vida

Minha avó era a idosa mais saudável da família. No início deste ano ela travou batalha contra a dengue e logo em seguida, em abril contra o COVID-19. Foram 14 dias de muita luta até o fim. Ela nunca deixou de lutar, até mesmo em seu leito de morte.

Talvez viver seja sobre deixar marcas e ela soube deixá-las permanentemente. Foi a maior matriarca da família: aos 31 anos ficou viúva e junto de seus 6 filhos (a caçula ainda com 1 ano de idade) buscou caminhos para seguir a vida. Autônoma e independente, teve vários pequenos negócios, mas a escola de ensino infantil foi o seu melhor empreendimento. Ela amava o que fazia. Foi uma mulher à frente de seu tempo.

Não reclamava da vida e detestava brigas ou discussões descabidas. Valorizava a liberdade: amava viajar e estar nos ares conhecendo novos destinos. Era teimosa. Ninguém mandava nela. Mulher de personalidade forte (acho que sei pra quem puxei). Vivia como queria. Viveu cada dia de sua existência com muita luta e propósito. Topava qualquer desafio.

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A última vez que a vi foi em São José dos Campos. Ela passou um final de semana todinho comigo e me lembro que tive uma sensação estranha de que poderia ser uma despedida. Assistimos filme com pipoca, fizemos bolo juntas (eu, ela e a minha mãe), caminhamos pelo parque e colocamos as conversas em dia. A verdade é que nunca queremos nos despedir das pessoas que amamos. Dói profundamente.

O luto

Eu nunca havia perdido alguém próximo de mim até os meus 31 anos e confesso que não esperava um luto em meio a este cenário – sem despedidas, sem um último beijo. Ela ficou isolada durante todo o período em que ficou hospitalizada, não pudemos estar juntas. Um dia melhor nos enchia de esperança, um dia pior nos colocava no inferno.

Receber a notícia que ela não resistiu foi ainda mais angustiante. Ela queria viver mais um pouco, mas talvez o Universo saiba o real momento em que devemos partir.

Os primeiros dias de luto estão sendo bastante difíceis e fico pensando sobre a possibilidade de universos paralelos existirem. Imaginei um mundo onde não existiu o COVID-19, em que a vovó seguia feliz e radiante. Talvez seja meu inconsciente buscando uma versão alternativa e não real para anular a morte.

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Em tempos de pandemia, não há despedidas. Seu velório foi na estrada à caminho do cemitério da família no interior de São Paulo. Vovó tinha rodinha nos pés e adorava uma rodovia. A última filha que ela viu foi a mais nova – que a levou ao hospital e quem recebeu o seu corpo sem vida foi o seu filho mais velho – que vive no interior. Quanta simbologia!

Não temos a imagem dela sem vida em nossas memórias, só guardaremos boas lembranças de uma senhora lúcida que chegou aos 82 anos vivendo como bem queria. Ela foi feliz e marcou nossas vidas. A morte não é o fim. Vovó Gercina segue viva em nossos corações.

 

Beatriz Bevilaqua é jornalista e está vivendo o luto de sua avó materna. Após a pandemia, pretende fazer mais uma graduação, desta vez em psicologia – um grande sonho antes adiado. Seu Instagram é @beatrizbevilaqua

 

*Os textos de nossos leitores são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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