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Comida em trânsito
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Roy Choi Chegou a Los Angeles ainda criança, no começo dos anos 70. Para o recém-egresso da Coreia do Sul, os Estados Unidos eram uma promessa de vida. Criado na vizinhança de Koreatown, “onde a fumaça dos churrascos coreanos gruda no seu cabelo, não importa o xampu caro que você use”, como diz, ele teve uma infância ligada às ruas. Na época, as crianças ainda faziam do asfalto palco para brincadeiras. Foi ali que aprendeu a comer: os ramens ao norte de Hollywood, os tacos e burritos em Boyle Heights, os noodles do Vale de San Gabriel. Não foi por acaso que, em um estalo, assistindo a um programa de TV, percebeu que sua vocação estava ligada à gastronomia – de rua, evidentemente. Com um amigo, pegou um caminhão e saiu pelo trânsito de Los Angeles vendendo tacos de churrasco coreano. Em pouco tempo, já tinha uma frota de food trucks (espaço móvel que transporta e vende comida) e uma leva de clientes que formavam filas para saborear suas delícias. Sobre quatro rodas, ele estava transformando a maneira de almoçar dos americanos. O Koji, nome de sua rede, não foi o precursor dos food trucks, que tomaram as vias americanas nos últimos anos, mas Roy Choi se tornou o rei desse gênero em L.A. Mais do que um movimento local, Choi ajudou a propagar a revolução que ganhou espaço nas grandes cidades do mundo ? de Los Angeles a Paris, de Roma a São Paulo. Um renascimento da gastronomia de rua e um jeito de se conectar com as pessoas ao ar livre.

Mobilidade democrática

“Eu tenho rodas e um tanque cheio de combustível. E assim consigo chegar a qualquer um. Esse é meu grande diferencial”, diz Choi no livro L.A. Son (Filho de L.A., ainda sem tradução por aqui). A frase diz muito do caráter democrático das ruas ? do executivo engravatado aos estudantes saindo da escola, da mãe de mãos dadas com a filha ao senhor em passos calmos, todo mundo circula e se alimenta.

Juntar uma coisa à outra é unir, literalmente, a fome com a vontade de comer. A questão é que alguns fatores fizeram com que esse movimento gastronômico, típico das grandes cidades, se desenvolvesse ainda mais nos dias de hoje. E, nesses tempos em que o deslocamento se torna cada vez mais complicado, as ruas emergem como uma boa alternativa para quem está passando: pegar uma pipoca doce do pipoqueiro, garantir um cachorro-quente no ambulante, ou responder aos encantos da jabuticaba madura na banca de frutas.

Portland, no Oregon (EUA), viu suas vias serem tomadas pelos chamados food carts, ou carrinhos de comida, transformando a cidade em uma das maiores referências de comida de rua no mundo. São mais de 500 deles espalhados por áreas onde a concentração de pessoas é maior – praças ou universidades, por exemplo. O governo local facilitou muito todo esse movimento ao criar regulamentos para a iniciativa. No entanto, o que favoreceu tudo isso foi o fato de seus moradores usarem muito a bicicleta como meio de transporte, além também de caminharem bastante. ?Se você pegar um mapa, vai perceber que os food carts estão onde o fluxo de gente é maior, nas rotas de bicicletas e vizinhanças em que é possível fazer tudo a pé. As pessoas vão de casa ao trabalho e encontram esses carros de comida no caminho?, afirma Kelly Rodgers, autora de Cartopedia – Portland’s Food Cart Revolution (Cartopedia – A Revolução dos food carts de Portland, sem edição no Brasil).

Com mais chefs se dedicando a criar carrinhos de comidas variadas (de receitas da Etiópia a delícias da culinária tailandesa), a cidade também ganhou em uso do espaço público. “Eles despertaram tanto interesse que todo mundo faz fila para comer, ocupando as ruas”, diz Kelly. Para guiar moradores e turistas, foram criados até aplicativos para celulares que dão endereços e horários de funcionamento dos tais carrinhos.

Pegando carona

Por aqui, também estamos seguindo esse movimento. Isso começou há pouco mais de um ano, com a alta dos preços dos ingredientes e dos custos para manter os restaurantes. Foi quando chefs e empresários armaram barracas, ao pé da letra, e investiram nos food trucks. Ganhou o público, que pode provar receitas de gente consagrada e de cozinheiros de mão cheia por preços mais módicos. E, ainda, ter um lugar alternativo para fazer uma refeição rápida fora das praças de alimentação dos shoppings.

Em São Paulo, as chamadas feirinhas gastronômicas são agora eventos regulares, servindo de acarajés a massas, de sorvetes artesanais a brigadeiros. Dessa forma, a cidade mostrou seu potencial para esse tipo de gastronomia e despertou chefs para a ideia. Alguns deles, donos de restaurantes conhecidos, começaram a “botar a banca” na porta de seus estabelecimentos para servir alguns pratos que não necessariamente estavam no cardápio. A chef Mara Salles, do Tordesilhas, abriu precedente ao usar a varanda para servir tacacá na calçada, resgatando uma tradição de Belém e de outras cidades amazônicas – que servem em barracas o potente caldo com camarão seco, jambu, tucupi e goma de tapioca. “Percebemos que nosso alpendre poderia ser aproveitado para um serviço que atendesse quem está apenas caminhando pela calçada. Essa informalidade tem a cara do Brasil”, diz.

Desejo manifesto

A partir disso, outros restaurantes passaram a usar também esses espaços para servir delícias e se organizaram para criar o movimento Botando Banca, que tem até manifesto. ?Além de uma alternativa acessível de alimentação fora de casa, essa é uma forma de resgate da cidadania. Decidimos, assim, oferecer produtos de boa qualidade para serem consumidos em pé, despretensiosamente, de forma a promover essa cultura, tão difundida por todo o mundo?, diz o documento, que reúne restaurantes como o Obá, AK Vila e Suri Ceviche Bar. O chef deste último, Dagoberto Torres, começou a carreira vendendo cachorro-quente nas ruas da Colômbia, país em que nasceu.

Quando veio para cá, percebeu que a prática não era tão valorizada no Brasil. ?No meu país, temos uma relação muito forte com isso. As ruas servem como uma forma de manter as tradições de receitas como arepas, caldos, empanadas e sucos energizantes que quase nunca estão à venda em restaurantes. A cultura é mantida dessa forma?, explica. Além de servir ceviche em frente ao Suri ? sempre no último domingo de cada mês ?, Torres abriu, no final de junho, outra casa especializada em quitutes de rua latino-americanos. O Maíz (que, em espanhol, significa milho) oferece arepas, tacos e empanadas a preços justos em um modelo de serviço no qual os clientes fazem e retiram seus próprios pedidos e depois saboreiam no balcão, nas mesas do salão ou saem comendo.

“As pessoas estão interessadas nesse formato não apenas pelo preço, mas pela experiência que oferece: de ser servido por quem faz sua comida, de poder petiscar de forma casual, sem carta de vinhos”, contextualiza o chef Torres.

O Buzina Food Truck, um furgão criado pelos chefs e empresários Márcio Silva e Jorge Gonzalez para servir hambúrgueres e pratos como cuscuz marroquino ou frango com curry, foi um dos primeiros a ganhar os espaços públicos do País. Mas é preciso ficar atento: cada dia eles param em um endereço diferente (informado por meio de suas redes sociais).

“Queríamos sair das quatro paredes da cozinha tradicional, ter liberdade e o contato direto com quem servíamos”, afirma Silva. Tem dado certo. Tanto que, três vezes por mês, eles já têm um endereço fixo: o recém-inaugurado Butantan Food Park, um estacionamento para trailers, carrinhos, barracas e até bicicletas que servem comida em São Paulo.

Os cozinheiros mudam todos os meses, os preços não passam de dois dígitos e as mesas são comunitárias. O sucesso prova que há interesse por uma gastronomia sem afetações e mais ligada ao prazer de comer.

Rafael Tonon é nosso assíduo colaborador de gastronomia e come fora com frequência. Muitas vezes, na rua mesmo.

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