Por que Clarice Lispector fascina tanta gente?
Da máquina de escrever às redes sociais, escritora conquista gerações como símbolo de atemporalidade, seja por dar nome aos afetos ou por provocar reflexões existenciais de forma única
“Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.”
“Passei a vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar.”
“Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece.”
Ao bater os olhos nessas frases é quase impossível não reconhecer a autora: Clarice Lispector. Seja pelo jeito único da escritora de passar mensagens reflexivas em pequenos trechos ou por ser replicada incansavelmente nas redes sociais.
Se houvesse uma enquete para votar no autor ou autora com mais citações na internet, provavelmente Clarice Lispector estaria na liderança. Talvez ao lado de Caio Fernando Abreu? Não sabemos. Inclusive, muitas frases que ela não escreveu ou disse são espalhadas com sua assinatura (mas essa polêmica fica para depois).
Por que Clarice Lispector é esse fenômeno?
Obra de Clarice atravessa gerações e continua atual
A rica literatura brasileira tem nomes atemporais. Clarice é, sem dúvidas, um deles. Um espectro de pensamentos e divagações que atravessa gerações e resiste ao tempo. A escritora morreu em 9 de dezembro de 1977 — quase meio século atrás. Um dia antes do seu aniversário, quando completaria 57 anos. Logo Clarice, que sempre entrelaçou a vida e a morte em palavras.
“Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranquila. O beijo no rosto morto. Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos.” – trecho de “Um Sopro de Vida” (1978), livro escrito entre 1974 e 1977 e publicado após sua morte.
Seus romances e contos atingem um lugar muito íntimo e inquietante dentro de cada pessoa ao despertar reflexões sobre esse pequeno espaço de tempo entre nascer e morrer: a existência. Clarice também escreveu livros para o público infantojuvenil e um vasto número de crônicas. Uma obra que mistura cotidiano e profundidade. Afinal, é no dia a dia que a vida acontece e se desdobra interna e externamente.
A atriz Natalia Barros encena o monólogo “Água Viva Clarice: Um Ato Poético”, nos dias 13, 14 e 15 de junho, no Reag Belas Artes, em São Paulo. O roteiro da peça é inspirado no livro “Água Viva” (1973).
Em entrevista à Vida Simples, a artista afirma que a obra da escritora atravessa gerações por causa da sua abordagem. “Os temas que ela trata — ao mesmo tempo cotidianos e profundamente humanos, como a morte e a saúde — não estão presos a uma época, década ou geração. São questões universais que acompanham a existência de todo ser humano”, diz.
“Também tem a maneira como ela escreve, se colocando na linha de frente. Isso faz com que, mesmo usando um personagem, pareça que aquela mulher está falando diretamente com a gente. Isso transforma a escrita dela em algo capaz de colecionar leitores apaixonados.”
A estrategista editorial Dany Sakugawa reafirma essa força que Clarice Lispector tem em fazer o leitor questionar temas existenciais. “Liberdade, culpa, vazio, frustração, expectativas, solidão, pertencimento. Todos esses conflitos internos são extremamente atemporais. O ser humano, por natureza, sente, questiona, anseia.”
Além disso, Dany faz uma observação sobre como a escritora conversa com o leitor contemporâneo, que está cercado de estímulos o tempo todo, seja das redes sociais, de anúncios, da variedade de opções no streaming ou de mensagens por diferentes canais de comunicação.
“Esse excesso de estímulo cria uma necessidade de respiro, de pausa. A escrita de Clarice tem uma peculiaridade: não acelera o leitor, ela o traz para um lugar de pausa, de respiro, de reflexão. É quase que um processo meditativo para quem engaja na leitura. E, por isso, escritores com essas características têm sido tão buscados”, explica.
Nomear os afetos, mas nem sempre
Escritora também respeita o que não conseguimos nomear
A atriz Natalia Barros, que também é escritora, ressalta que a obra de Clarice Lispector possui outra particularidade: atinge a forma que o leitor interpreta os próprios sentimentos. Na visão dela, isso prende o público jovem ao gerar identificação, o que também colabora com a atemporalidade da autora.
“Clarice tem uma ética afetiva. Ela nos ensina a distinguir emoções porque sai do raso e cria novas possibilidades de nomear os afetos. Não só nomear, mas também distingui-los em suas mínimas expressões. Ela consegue mexer com essas dinâmicas internas. É como se ela conseguisse perceber os matizes das cores. Entre o amarelo e o laranja, por exemplo, existem milhares de variações. Ela faz isso com os afetos.”
Por outro lado, nem tudo precisa ser entendido, pelo menos não naquele momento particular da vida de cada pessoa enquanto lê Clarice. A angústia que um dia será explicada — ou não. Ela usava e abusava de metáforas e mistérios na escrita para deixar entrelinhas suspensas.
“A escritora também respeita o ‘sem nome’. Respeita o que a gente não consegue nomear. Nos ensina a aguentar o tempo certo para brotar uma nomeação. Ao mesmo tempo, mostra os sentimentos nas suas nuances. Ensina a gente a distinguir os afetos em suas miudezas. Esses dois lados são importantes”, afirma Natalia.
“A Paixão Segundo G. H.” (1964) e “A Hora da Estrela” (1977) — da famosa personagem Macabéa —, são dois dos romances mais emblemáticos de Clarice Lispector.
“Mas o vazio tem o valor e a semelhança do pleno. Um meio de obter é não procurar, um meio de ter é o de não pedir e somente acreditar que o silêncio que eu creio em mim é a resposta a meu — a meu mistério.” – trecho de “A Hora da Estrela”.
“Sou silêncio gravado numa parede, e a borboleta mais antiga esvoaça e me defronta: a mesma de sempre. De nascer até morrer é o que eu me chamo de humana, e nunca propriamente morrerei.” – trecho de “A Paixão Segundo G. H.”.
Vida, morte, reflexão, saber ou não. Tudo em dois trechos de apenas um fragmento da extensa obra de Clarice Lispector.
Além disso, os dois livros “captam o instante da ruptura com o cotidiano, o momento em que uma mulher ‘acorda’ para si mesma”, acrescenta André Luís Dolencsko, coordenador de pós graduação da Universidade Brasil. “Ela explora a subjetividade feminina em um nível profundo. Suas personagens frequentemente vivem conflitos internos e descompassos entre o que sentem e o que o mundo espera delas.”
Para Natalia Barros, a escritora era corajosa e radical diante do contexto cultural e social da sua época, quando teve dois filhos e se separou, deixando de ser esposa de um diplomata e se assumindo como artista.
Esses fatores inspiram a atriz. “Os temas que ela aborda são sempre, de alguma maneira, biográficos. Não é exatamente uma biografia da forma como ela apresenta, mas a gente percebe que ela está totalmente implicada no texto. A arte nos exige coragem. E ela mostra isso”, diz.
“Porque há o direito ao grito. Então eu grito.” – trecho de “A Hora da Estrela”.
Frases curtas com impacto duradouro: o poder de viralizar nas redes sociais
Cada um tem a sua própria Clarice
A atemporalidade da escritora, nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira, vem da máquina de escrever, passa por diversos tipos de mídia e chega na época de redes sociais dominadas por algoritmos. Mas afinal, o que explica esse fenômeno das suas frases na internet?
Natalia afirma que “todo mundo tem a sua própria Clarice”. E isso reflete na popularidade da autora que resiste aos tempos digitais. Na verdade, não só resiste como ganha ainda mais fôlego.
“Eu até coloco isso no texto do monólogo. Parece que cada pessoa se relaciona e se aproxima dela de um jeito muito particular. Mais do que se identificar, é como se a leitura tocasse tão de perto que cada um constrói sua própria autora. E acho que ela, como escritora mulher, carrega e soma muitas outras vozes — desde a época em que viveu até os dias de hoje.”
“Suas frases carregam intensidade emocional e filosófica. É quase natural que ganhem força nas redes sociais, onde o impacto rápido de uma frase pode gerar identificação imediata. Para as novas gerações, essas frases funcionam como um espelho de sentimentos difíceis de nomear”, acrescenta Dolencsko.
Para Dany Sakugawa, esse fenômeno tem dois pontos principais: “O primeiro, é a sua habilidade de construir frases curtas e extremamente impactantes. Dizer muito, falando pouco, pois fisga a audiência em poucos segundos. O segundo elemento é a forte identificação.”
“Quanto mais houver de Clarice ecoando por aí, mais identificação haverá”, pontua Pedro Bezzoco, professor de literatura do Colégio Marista São José Barra.
“Sabemos que a literatura, assim como toda a arte, serve para refletir uma realidade, um contexto, um mundo. Dizer que a literatura de Lispector ainda é consumida e admirada hoje é afirmar que ela ainda reflete as inquietações e questões de um mundo contemporâneo”, complementa.
No entanto, é necessário muito cuidado para manter o legado da escritora fiel ao que ela realmente sentiu, escreveu e transmite até hoje.
“Clarice virou um signo de intensidade emocional e intelectual e, por isso, há quem use seu nome para dar mais ‘peso’ em frases que viralizam. O problema é que isso desinforma e banaliza sua obra. Valorizar Clarice é também respeitar o que, de fato, ela escreveu”, ressalta Dolencsko.
“O mundo não tem ordem visível e eu só tenho a ordem da respiração. Deixo-me acontecer.” – trecho de “Água Viva”.
É necessário cuidado para manter o legado da escritora fiel ao que ela realmente escreveu
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