Festa Junina une legado de pertencimento e prosperidade
Com origem pagã e em tradições de povos indígenas, o arraial no Brasil conserva até hoje o espírito de resistir, festejar, se alimentar e amar de forma coletiva

Junho chegou com o seu característico friozinho. A tendência é a temperatura diminuir cada vez mais daqui para frente: o inverno se aproxima. Com esse cenário, já dá para sentir o calor da fogueira e do quentão, o cheirinho de comida típica que dá água na boca e o som do triângulo, da sanfona e da zabumba que faz o corpo dançar no ritmo único do forró. Na decoração, bandeirinhas e balões. No figurino, chapéu de palha, camisa xadrez e bota. É tempo de Festa Junina. Você conhece a origem deste festejo amado pelo brasileiro?
Essa época do ano é marcada pelas tradicionais celebrações de Santo Antônio, São João e São Pedro. No entanto, nem sempre foi assim. A Festa Junina tem origem pagã em rituais de povos da Europa pré-cristã, como os celtas, germânicos, eslavos e romanos.
Se aqui o São João é realizado no frio, antigamente as celebrações marcavam a chegada do solstício de verão – o dia mais longo do hemisfério norte. Eram rituais para pedir uma colheita farta na estação que se aproximava. Reuniões de fertilidade, fartura, e comunhão com a natureza. Tudo em comunidade. Antes, verão para celebrar. Hoje, frio para também se unir e se esquentar.
Transformação cultural
De lá para cá, muita coisa mudou desde a origem da Festa Junina, principalmente por interferência do cristianismo. No entanto, também é necessário valorizar as referências dos povos indígenas. No final, o nosso famoso arraial é um grande sincretismo de séculos que moldou o que temos hoje. Mas não tudo. A essência permanece: celebrar o pertencimento e a prosperidade de forma coletiva. Outras características também ficaram, como contato com a natureza, o casamento simbólico e o ato de dançar.
Professora de história do Colégio Marista São José Barra, Fernanda Marcello explica que dois símbolos recorrentes nas celebrações da origem pagã da Festa Junina eram a fogueira, que representava o calor, a luz e a vida, além da dança em roda, símbolo de união e movimento cíclico. “Esses elementos se mantiveram nas festas juninas atuais e continuam como marcas centrais no Brasil.”
A psicanalista Ana Lisboa contextualiza com a seguinte visão: toda festa ancestral tem fogo porque ele é “vida e morte” ao mesmo tempo. Ele aquece, consome e transforma. “Na Festa Junina, a fogueira não é só decoração. É símbolo de purificação e passagem. No inconsciente, ela representa o desejo de recomeçar, de queimar o que não serve mais e se aquecer no que realmente importa. É um portal para pertencer à roda da vida”, explica.
Em relação à interferência cristã, Fernanda afirma que a igreja ressignificou os costumes dos povos da Europa pré-cristã como estratégia de cristianização. “Esse processo, conhecido como sincretismo cristão ou aculturação religiosa, permitiu à igreja ampliar sua influência sem enfrentar resistência direta. Um exemplo claro é a transformação da fogueira pagã em símbolo da anunciação do nascimento de São João, e dos ritos de fertilidade, que passaram a ser associados a Santo Antônio, o santo casamenteiro.”
(Foto: Rafael Lima/Prefeitura de Caruaru) Fogueira é um dos principais símbolos da Festa Junina
Referências indígenas
O que aconteceu na origem da Festa Junina na Europa foi apenas um passo da metamorfose do festejo antes dos portugueses pisarem em solo brasileiro. “As festas foram profundamente transformadas pelo contato com a cultura indígena. Também com a cultura africana, visto hoje nas brincadeiras. Dessa fusão, nasceu a festa junina brasileira, marcada por sua diversidade e riqueza simbólica”, ressalta Fernanda.
Assim como na origem pagã, os indígenas também possuíam uma celebração em junho ligada diretamente à prosperidade. A socióloga e pesquisadora indígena Silvia Muiramomi afirma que a celebração está relacionada ao aparecimento do helíaco das Plêiades — o primeiro surgimento da constelação no céu ao amanhecer com a possibilidade de ser vista a olho nu.
“Esse evento ocorre uma vez por ano. Portanto, é a forma que os povos indígenas, há milênios, marcam o início de um novo ciclo. Eles escolhem seus parceiros sexuais e celebram um novo ciclo com o nascimento de crianças para a comunidade. Com a chegada dos jesuítas, as festas passaram a ser sincretizadas”, explica.
A socióloga também comenta sobre outro aspecto da Festa Junina que permanece até hoje: os alimentos. “Esse novo ciclo também ficou marcado pela colheita do milho crioulo em São Paulo. Um alimento milenar trazido dos Andes pelos povos indígenas que faz parte da nossa alimentação tradicional. Nesta época, todos os alimentos são feitos à base de milho.”
(Foto: Andréa Rêgo Barros/PCR) Muda a dança, mas ela continua no cerne da celebração
Ou seja, não é à toa que boa parte das comidas típicas tem como base o milho. “Inclusive, a pamonha, o curau e a própria pipoca são alimentos tradicionais indígenas”, diz Silvia. O povo Guayana-Muiramomi, cujo nome a socióloga carrega em seu sobrenome, é originário do território de Ca’aguassu, que hoje abrange cidades do ABC Paulista, na Grande São Paulo.
A psicanalista Ana Lisboa também acrescenta que a alimentação nos festejos proporciona o sentimento de pertencimento. “Comida nunca é só comida. É afeto, memória e cuidado. Lá no início, partilhar alimentos era um pacto de confiança, de segurança. Hoje, um prato de canjica ou bolo de milho ainda carrega essa memória emocional. Comer junto é dizer: ‘você faz parte’. Por isso toca tão fundo, desperta lembranças, nutre vínculos e cura silêncios”, ressalta.
“O ser humano carrega um vazio e um desejo que atravessam séculos. A Festa Junina teve origem para celebrar a fartura, pedir proteção e fortalecer os laços. E o mais bonito é que, mesmo mudando o país, a estação ou o figurino, a essência permanece: todos querem pertencer, prosperar e se sentir cuidados. No fim das contas, é isso que nos move: comida no prato, abraço garantido e um sentido pra viver.”
Identidade regional nordestina
Se em São Paulo a Festa Junina é aguardada ansiosamente pela população, no Nordeste ela é ainda mais importante porque representa o reforço da identidade regional e a valorização da cultura sertaneja. O São João de Caruaru, em Pernambuco, é um dos exemplos da magnitude dos festejos na região.
A força das celebrações no Nordeste resulta da combinação de fatores históricos, religiosos, sociais e culturais. De acordo com especialistas, a forte religiosidade popular da região, aliada ao modo de vida rural e sertanejo, contribuiu para a consolidação das festas.
“Há também uma relação com o ciclo agrícola. O Nordeste era predominantemente rural e isso dialogava com a vida e com os anseios da população. Portanto, havia um enraizamento e associação das colheitas às festividades religiosas para que houvesse êxito e sucesso na colheita”, explica Felipe de Costa Mello, professor de história do colégio Oficina do Estudante. Pode até mudar o hemisfério, a estação, a cultura e o idioma, mas a essência continua.
“A relação com as danças típicas, como o coco e o arrasta-pé, as simpatias e o simbolismo de São João — frequentemente associado à chegada das chuvas — reforçam essa conexão. A festa cumpre um papel fundamental na afirmação da identidade regional”, complementa Fernanda.
(Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil) Festejo reforça identidade regional nordestina
Jeitinho único de celebrar a Festa Junina
Mergulhamos pelo povos da Europa pré-cristã, pela interferência da Igreja Católica, pelas tradições milenares dos povos indígenas e pela identidade regional do Nordeste. Depois de tanto sincretismo, temos hoje uma época de festejos amada pelo brasileiro. Uma festa esperada ansiosamente por alguns. Por outros, nem tanto. Mas não dá para negar: é uma marca registrada do Brasil.
“A Festa Junina é nossa pausa encantada. Assim como o Carnaval, ela ativa o arquétipo coletivo da celebração e resistência. O brasileiro espera por ela porque sabe que ali há riso, dança, sabor e encontro. A gente sofre junto, mas também sabe festejar, e isso é nossa forma mais genuína de sobreviver, de resistir e de amar”, diz Ana Lisboa.
“Essas festas ainda são um respiro afetivo. Elas regulam a alma e organizam o caos cotidiano. É durante elas que lembramos quem somos, abraçamos quem amamos e nos permitimos brincar, rir e simplesmente estar. E isso salva emocionalmente, espiritualmente e coletivamente”, completa a psicanalista.
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