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O que aprendi com a morte do meu pai
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Saber conviver com a finitude é entender que o dia a dia precisa ser intenso e amoroso sempre. O processo de luto não é fácil, mas olhar para a dor faz parte do caminho

Há duas semanas, minha mãe telefonou e disse: “Papai está morrendo”. Voei para o armário, coloquei uma roupa e falei para o Chico, meu marido: “Meu pai tá morrendo. Vem me encontrar o mais rápido possível. Não se desespera, por causa das meninas”. Já no táxi, pedi: “Moço, pode ir bem rápido? É que meu pai está passando mal”. Desci na Urca (bairro carioca) e corri na rua. Corri mesmo, como já vinha fazendo nos últimos 40 dias. Corri sem saber o que iria encontrar, com o coração disparado. A cuidadora abriu a porta. Havia nove dias meu pai estava em casa e precisava de cuidadoras durante 24 horas. Entrando, ouvi minha mãe dizer: “Aqui está a meia para botar nele”. Meu pai estava sem cor e com a boca aberta. Perguntei: “Mãe, ele ainda tá aqui?”. E ela respondeu com tristeza e uma leve irritação: “Papai morreu, Ana”.

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Não explodi em lágrimas, não me desesperei, pensei nas meias que a cuidadora estava vestindo nele. Passei minha mão no braço dele e segurei sua mão, como fazia quando o visitava. Lembrei que sempre antes de ir embora, eu falava “te amo” e olhava firme para ele na tentativa de gravar seu rosto e nunca mais perder. Meu pai morreu em casa, na cama dele, olhando para a estante de livros e para algumas fotos nossas. Mais cedo, no dia em que morreu, comentei com ele e com a cuidadora: “Quando eu era criança e ficava doente, vinha pra essa cama, ficava olhando pra esses livros”. Depois minha mãe relatou exatamente como foi. Dando a mão para ela, tomando uma sopa, uma ânsia de vômito, o rosto que mudou de cor.

Não sei se é melhor morrer em casa ou no hospital. Nos dias em que visitei meu pai em casa, fiquei feliz em vê-lo ali, com os barulhos de sempre e sem os bip-bips assustadores do CTI. Esperando o ônibus em frente ao prédio, um dia, ouvi um bebê chorar no primeiro andar e pensei no meu pai doente, no quinto.

Chegadas e partidas

Por um minuto a vida fez sentido, em seu ciclo de chegadas e partidas. Mas, em casa, estamos à frente de tudo: gotas de remédio, troca de fraldas e lençóis, pratos de sopa. Ao mesmo tempo, no hospital, eu certamente não teria ficado tão próxima dele. E foi em casa, também, que vi que a morte não é algo distante, uma história que nos contam, uma cena qualquer de um filme. Meu pai estava quente quando passei a mão no braço dele, e frio e com a ponta dos dedos arroxeando quando eu e Chico nos despedimos.

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Na quarta-feira em que meu pai morreu, resolvi vê-lo na hora do almoço. Mandei uma mensagem para meu irmão, que mora do outro lado do mundo, dizendo que estava com medo. Ele respondeu: “Não fique com medo”. E eu fui com um pouco de coragem.

Quando cheguei, meu pai estava deitado, a respiração ofegante e barulhenta. O pior de tudo é que não conseguia falar. Três dias antes havia tido um AVC, que comprometeu o movimento do lado direito e a fala. Meu pai sem falar não dá, porque comecei a falar por ele. A janela do quarto estava aberta e ventava. Falei: “Pai, vou fechar um pouco a janela”. Ele me olhou. Continuei falando: “Pai, estou falando com o Joca (irmão), ele disse que te ama”. Ele sorriu e assentiu com os olhos. Depois os fechou para descansar e tirei uma foto dele. Mandei para meu irmão: “Papai ia me matar se soubesse que tirei essa foto”. Ele abriu novamente os olhos e falei: “Pai, tá muito ruim?”. Ele fez um olhar contrariado, meio conformado, meio “tá uma merda”, e moveu um pouco a mão esquerda para cima, num gesto tipicamente seu. Falei: “Pai, acho que o tempo vai mudar, tá ventando bastante lá fora”.

A cuidadora estava de pé, em frente a uma mesinha que antes apoiava o computador e agora abrigava uma infinidade de remédios e materiais para curativos. Ela não saía dali. Falei: “Pode ir almoçar, que fico com ele”. Ela saiu, mas voltou logo. Esperei meu pai comer para voltar ao trabalho. Fiquei uma hora com ele, e essa agora me parece ter sido a decisão mais sábia que fiz nos últimos tempos. Antes de ir embora, falei: “Chico vem aqui no sábado. As meninas estão bem. Te amo”. Ele assentiu com os olhos. Olhei para ele para gravar, novamente, o rosto dele na minha cabeça e fui embora.

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Tempo verbal passado

O resto do dia foi de agonia, os últimos 49 dias haviam sido de agonia. No hospital, meu pai passou por diversas fases e tive bons momentos com ele. No CTI, quando ele filosofou sobre a vida. Já no quarto, quando disse a ele que estava cansada e não ia fazer nada que ele me pedisse, só ia deitar no sofá ao lado dele. Fiquei olhando para fora da janela pensando que estávamos num avião. Nos momentos de idas e vindas do CTI quando meu pai falou coisas engraçadas sobre pastilhas Valda, soro para o nariz e quando perguntou por que é que meu irmão estava usando a expressão “óquei” para tudo. Eu me emocionei em todos os momentos em que estive ao seu lado.

Meu pai era um paciente difícil. Foi entubado, arrancou o tubo no meio da noite. Precisava usar máscara de ventilação, se recusava e exigia tirar. Colocou um acesso profundo, arrancou esse também e precisou levar pontos. Amarraram as mãos dele na cama, minha mãe desamarrou. “Vigiar e punir”, ela disse algumas vezes sobre o tempo passado no hospital.

Meu pai não sabia bem o que estava fazendo ali, mas esse era ele e sempre será. Aliás, desde quarta-feira à noite, precisei aprender a usar o tempo verbal passado para falar sobre ele. Papai gostava. Papai era. Pai fazia. Depois de ir para casa, quando já tinha me despedido dele, mandei uma mensagem para minha tia, que estava com minha mãe,  perguntando: “Meu pai ainda está aí?”. E ela respondeu: “Já levaram o corpo”. Isso doeu. Meu irmão me aconselhou: “Não pense que a vida é um filme de terror. Não é”.

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Saudades

Sinto saudades do meu pai e gostaria de discutir com ele questões sobre a vida e a morte. Quem vai me dizer justo o oposto do que eu espero ouvir? Quem vai falar coisas doidas e verdadeiras? Alguém vai me mostrar o caminho certo com linhas tortas? No dia em que ele foi cremado, levantei da cama sentindo uma tristeza profunda. Como acordar num mundo em que meu pai não está mais presente? Só ele mesmo poderia responder a essas perguntas. Provavelmente, ele diria algo como: “Você vai dar conta do recado, morrer faz parte da vida”.

O cemitério pareceu um lugar mais agradável do que eu esperava. O Caju tem um jardim bem cuidado. E meu pai adorava jardins. Na hora de o levarem para a fila de cremação, fomos andando atrás. Minha família não gosta de solenidades ou rituais, mas este mostrou sua importância pra mim. Andando atrás do caixão, notei uma etiqueta com o nome dele impresso.

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Tantas vezes vi o nome do meu pai escrito, tantas vezes ele assinou no papel, nas telas de suas pinturas. Meus pais não se casaram. Viveram uma grande história de amor. Um dia, falei para minha mãe na porta do hospital: “Mãe, quando o amor é intenso, a dor é intensa também”. E, então, aquela etiquetinha colada no caixão pareceu simples, modesta, digitada e impressa por alguém sentado numa salinha refrigerada. O moço que veio tirar o caixão para levá-lo era baixinho e humilde. Meu irmão mais velho o ajudou, segurando na alça com vontade, e achei o gesto bonito. Do jeito que meu pai sempre falava: “O mais simples é sempre o mais sofisticado”.

Tempos depois, mexendo nos documentos dele, encontrei seus trabalhos escritos, vi que fez estágio em um manicômio judiciário, trabalhou em casa de saúde mental, consultório. Olhei seu diploma azul de medicina, encontrei a oferta de estágio na França que ele recusou, porque minha mãe estava grávida do meu irmão. Passei diversas vezes os olhos por algumas fotos dele criança, com a mãe e o irmão. Li bilhetes frugais que meu avô escreveu para ele. Me vi por muitos momentos apreciando os quadros de sua autoria, muitos pendurados na casa dele e alguns na minha. E, principalmente, após sua morte, eu me pegava pensando no meu pai e na psicanálise, e em todas as conversas que tivemos. Ser aberto, ser honesto, ser verdadeiro amar, odiar, viver e morrer. Ter a coragem de ser quem se é. Meu pai sempre dizia: “A morte revela a vida”, mas, para mim, estava sendo difícil.

Vai daí

Hoje recordo, com frequência, as conversas que tínhamos, principalmente quando meu pai estava internado no hospital. Ele gostava de falar sobre as coisas da vida: o amor, a amizade e a criatividade; sua identificação com as pessoas mais humildes, o porteiro, o feirante, o mendigo; e a família que conquistou. Falou sobre minha mãe e o amor infinito que sente por ela – apesar disso, durante esse tempo no hospital, ele brigou muito com ela. Perguntou por que ninguém ali sabia quem era o meu irmão atleta. Falou para eu cuidar do Chico. Questionou se nunca mais ia ver as netinhas. Disse a um enfermeiro que eu tinha 35 anos e nenhuma cárie. Disse que eu estava bonita. Chateou  meus irmãos e procurou por eles.

Não quero escrever um texto de conclusão, quero escrever textos para minhas filhas acharem quando eu já não estiver aqui. Ainda penso que meu pai vai voltar, reclamando e perguntando o que é que fizemos com ele, dizendo que ele não precisa de hospital e que médico não sabe nada. Olho no espelho e vejo meu pai em mim. No nariz, nas pintas pelo corpo, na força de uma estrutura óssea grande e pesada. Na força de quem contradisse todos os prognósticos médicos e melhorou quando era para piorar, e piorou quando era para melhorar.

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Meu pai e a liberdade de ser quem se é. Meu pai e suas limitações. Ele me mostrando que a vida é o que ela é. Em um e-mail para mim meu pai diz: “Não queria me transformar em um pangaré alquebrado, que estaria dentro dos padrões, dos ditos mais civilizados. Sempre lutei para me tornar livre e ao mesmo tempo comprometido com a vida e com aquilo que os poetas chamam de Amor. Afinal, fiz assim. Sempre lutei por uma educação completa da vida. Vai daí, que é a isso que chamo de ‘dever cumprido’. A sensação de que não está faltando nada”. Te amo, pai.

Ana Signorini mora no Rio de Janeiro e escreveu esse texto como parte do seu processo de luto e, assim, continuar a viver intensamente.

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